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Fé e cultura

São Paulo poeta

1.
(...) Falar de Paulo como poeta parece mais um título provocador e, de facto, não está nos esquemas habituais dos teólogos e exegetas falar de Paulo como poeta, mas antes como um judeu convertido, um pregador itinerante de Jesus morto e ressuscitado, um catequista de adultos, um organizador de comunidades cristãs, um apologista da mensagem cristã, um pensador, um homem da reflexão a tender para o sisudo. É verdade, mas também é verdade que, nas suas catequeses escritas ou cartas pastorais, Paulo inclui alguns textos poéticos de fina sensibilidade que a Igreja utiliza na «Liturgia das Horas» com o nome de «hinos» ou «cânticos». Alguns exegetas discutem se eles serão todos da iniciativa de Paulo ou recolhidos nas assembleias cristãs. Seja como for, a sua inclusão nas cartas revela a sensibilidade de Paulo e a força evangelizadora desses textos.

Ao falar de «hinos», não deve pensar-se em textos com rima. Essa nem é característica essencial da poesia. O texto poético traduz em poucas palavras, escolhidas e densas, o dinamismo interior de um acontecimento, de um gesto, de uma pessoa. Faz apelo ao rosto oculto das coisas e o texto releva o que está para além da sintaxe gramatical. A poesia ultrapassa a prisão da morfologia mas não a verdade das coisas e dos factos «Ser poeta é ser mais alto», «é ter sede de infinito e dar de beber». Aquilo que na poesia parece excessivo é, afinal, o espaço exigido pela abundância da Criação e dos gestos divinos. É esse mistério da abundância que Paulo exprime nesses textos, o «comprimento, largura, altura e profundidade» do amor de Cristo.

 

2.
Os mais utilizados são quatro: um na carta aos Efésios (1,3-10), o hino sobre o «Plano de Deus salvador» ou «Deus salvador», o projeto divino que vem a revelar-se na história; um na carta aos Filipenses (2,6-11), o hino sobre «a humilhação de Cristo» na Incarnação e na Redenção», o Messias que vira do avesso o sonhado messianismo judaico; um na carta aos Colossenses (1,12-20), o hino de «Cristo, Primogénito de entre os mortos» e «Primogénito de toda a criatura», a afirmação de Jesus como cabeça da Igreja e da própria Criação; um na carta a Timóteo (1Tim3,16), o hino sobre o «Mistério e glória de Cristo», glorificado pelos anjos e pelos homens. São todos hinos cristológicos e sublinham o mistério da existência eterna do Verbo (que o Papa referiu numa das suas catequeses como a «preexistência» de Jesus), a Incarnação, a Redenção e a Ressurreição.

Estes quatro hinos usam-se durante todo o ano, numas épocas mais que noutras. O mais utilizado é o da carta aos Efésios, 62 vezes, a maior parte delas no Advento e no Natal, pois é esse o tempo do começo da realização do plano de Deus acerca do mundo. Vem depois o hino da carta aos Filipenses, o hino da humilhação de Cristo. Usa-se 39 vezes, em todos os sábados à tarde, a anunciar a sepultura do Senhor, e na Quaresma. Em terceiro lugar, o hino da carta aos Colossenses. Reza-se 21 vezes ao longo de todo o ano, como uma rocha que segura a fluidez do tempo. O hino da carta a Timóteo aparece uma só vez, na festa da Transfiguração em 6 de agosto. Além destes quatro hinos, há mais dois: um hino muito breve sobre a «Sabedoria de Deus» ou a Providencia, na carta aos Romanos (11,13-36), considerado uma preciosidade paulina; o outro na carta aos Coríntios (1Cor 13), um hino muito conhecido sobre a Caridade ou o amor cristão. Estes dois textos são utilizados como leituras litúrgicas.

São Paulo

Paulo recorre ainda a algumas palavras cheias de poesia, como acontece na carta aos Romanos ao falar do batismo. Diz que pelo batismo somos «enxertados na morte» de Cristo, como traduziu do grego o grande biblista Shockel, formado anteriormente em cultura clássica, e comenta dizendo que a expressão «enxertar na morte» é um «paradoxo vital». De facto, enxertia transporta-nos para «vida», e, ao dizer enxertia «na morte», associa a vida à morte. É essa a verdade de qualquer enxerto: a enxertia supõe uma certa morte de um ramo e de um tronco e é da força e união dessas mortes que nascerá a vida mais perfeita. Tal como o batismo e a vida cristã em relação à Páscoa de Jesus!

 

3.
Esta necessidade de recorrer a formas «poéticas» para exprimir o mistério cristão desperta-nos para o lugar que a expressão artística deve ocupar na catequese, na educação, na oração e na liturgia. A poesia religiosa é a linguagem do inefável, das experiências mais profundas. Carl Grinberg advertiu que «não foram os sacerdotes, mas os poetas, que deram vida à religião». Entre os hebreus, todos os escritores recorreram à poesia para falarem de Deus. Ao lado dos Salmistas, recordemos os profetas Oseias, Isaías, Ezequiel e mesmo os livros do Génesis, do Êxodo e de Job, e S. João e o Apocalipse. Também recorreu à poesia o grande filósofo e teólogo S. Tomás de Aquino para falar da Eucaristia; o cardeal Newman para descrever a sua conversão ao catolicismo; João Paulo II para falar da sua vocação e do seu ministério petrino; e Bento XVI para falar de João Paulo II na homilia da missa exequial.

Quem lida de perto com o povo nota imediatamente a presença da poesia na chamada piedade popular, caindo às vezes no exagero. Quem viu com atenção a transmissão da Missa da multidão em Luanda presidida pelo Papa, pôde perceber-se do carácter educativo da celebração e do cuidado posto na mesma, aliando a sensibilidade musical africana com a contemplação e serenidade indispensáveis da oração litúrgica.

Os paramentos e outras alfaias litúrgicas, os gestos, os movimentos, o incenso, as flores, a água, o fogo e os outros símbolos litúrgicos, o toque dos sinos e campainhas, a apresentação do missal e dos outros livros litúrgicos, as cores litúrgicas, a luz e as velas, a disposição do espaço e a colocação dos bancos e cadeiras – tudo isso faz parte da linguagem evangelizadora. Não se destinam a «enfeitar» as celebrações e «aliviar» os fiéis, mas a exprimir melhor e fazer chegar ao coração o mistério de Jesus. Pelo seu carácter sacramental, têm de partir da verdade da fé, ser expressivos e precisos, não se transformando em ramaria para encobrir o vácuo.

 

4.
Neste Ano Paulino, vale a pena examinar o espaço que reservamos à «sensibilidade artística» no trabalho pastoral. Veja-se que textos ou «letras» se cantam na liturgia. A Igreja prescreve que sejam da Bíblia ou nela inspirados. Como herdeiros da cultura cartesiana, temos sempre a tentação de explicar demais, caindo no excesso racionalista e na busca de «coisas práticas e úteis». Tais comportamentos não passam muitas vezes de recursos inconscientes para encobrir a falta de piedade, para fugir ao apelo do Espírito de Deus e à interioridade da pessoa. Uma comunidade que descuida a expressão artística na liturgia, o canto e o silêncio, será uma comunidade «legalizada» sem piedade. O sacerdote católico é também profeta e, de certo modo, um poeta de Deus.

Vem aí a Semana Santa e a Páscoa. O leitor releia os hinos acima referidos e os textos da Semana Santa. Nenhuma celebração cristã é tão densa como essa, e, consequentemente, em nenhum tempo a Igreja recorre tanto à poesia dos textos, ao canto, à cor, à luz e aos gestos, como na Páscoa, a começar pelos Ramos. São esses os degraus mais apropriados para entrar no mistério da Páscoa.

 

D. Joaquim Gonçalves
Bispo de Vila Real
In A Voz de Trás-os-Montes
31.12.13

São Paulo
São Paulo (c. 1615) (det.)
Claude Vignon

















































































































































































 

 

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