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Leitura: "Deus não se cansa - A misericórdia como forma eclesial"

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Imagem Capa (det.) | D.R.

A poucas horas do encerramento, no Vaticano, do Ano Santo da Misericórdia, é tempo dos muitos balanços possíveis, mas também de perspetivar as raízes que esta iniciativa do papa Francisco poderá criar na Igreja.

Sobre este aspeto, Stella Morra, autora do livro "Deus não se cansa - A misericórdia como forma eclesial", recentemente lançado pela Editorial A.O., não tem dúvidas: «A “misericórdia” deve ser usada e percorrida, hoje, como categoria teológica, isto é, como uma estrutura fundamental, uma forma da fé da Igreja».

«Neste momento histórico, ela é colocada diante de nós, não tanto como uma virtude individual ou uma questão espiritual, mas como um possível lugar de visibilidade da experiência cristã e do seu ser vivível», defende a teóloga italiana, professora na Pontifícia Universidade Gregoriana e no Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em Roma, nesta obra.

O volume, de que transcrevemos a introdução, vai ser apresentado, com a presença da autora, esta sexta-feira, em Lisboa, às 21h15, no Centro Universitário Padre António Vieira (CUPAV), no dia 20 no Porto, à mesma hora, no Centro de Reflexão e Encontro Universitário (CREU) e no dia 21 em Braga, no Auditório Vita, às 21h00, sessão esta que assinala o encerramento do Ano da Misericórdia na arquidiocese e contará com a presença do arcebispo, D. Jorge Ortiga.



A diversos níveis, existe, de facto, um uso quase retórico do termo «misericórdia» para ocupar um espaço vazio, entre o espiritual e o sentimental. Não creio que este termo sirva como um "passepartout" para desativar os contrastes ou para encobrir os problemas, para fingir que, simplesmente nomeando-o, «tudo está bem» e «todos os nossos problemas se resolvem».



Introdução
Stella Morra
In "Deus não se cansa - A misericórdia como forma eclesial"

1. O objetivo deste livro

O nó de que nos ocupamos neste livro nasce de uma urgência particular, ditada pelas condições deste nosso tempo histórico. Efetivamente, enfrentamos uma passagem decisiva, ou pelo menos a sua possibilidade. Creio sinceramente que nós, os teólogos, devemos dedicar os próximos anos – talvez os próximos decénios – a repensar a forma como dizemos, pensamos e vivemos a fé no seu conjunto, ou então perderemos uma ocasião que o Espírito nos está a oferecer, ou mesmo, de algum modo, impelindo-nos a usufruir. Este livro quer ser um contributo, por pequeno que seja, para esta passagem histórica.

Este livro nasce essencialmente a fim de reagir aos repetidos pedidos e indicações do magistério do Papa Francisco: a proclamação do Jubileu de 2015-2016 sobre o tema explícito da misericórdia, as muitas reflexões evocadas pelo sínodo extraordinário sobre a família, do ano de 2014, a propósito da medicina da misericórdia, de memória joanina, o debate de preparação para a assembleia ordinária de outubro de 2015, para citar apenas algumas macro-questões às quais se poderiam acrescentar outras intervenções sobre os temas da imigração, da doutrina social, do caráter sinodal da Igreja, em que a misericórdia aparece como um estribilho contínuo.

Por outro lado, este livro nasce também porque muitas realidades eclesiais já se ocuparam destes temas nos últimos decénios, mas só nestes anos parecem achar as palavras para dizer e para se dizerem naquilo que, até agora, só embrionariamente estava presente ao nível de práticas e de pensamentos. Em particular, este livro é fruto das discussões derivadas de algumas sessões ocorridas no mosteiro cisterciense Dominus tecum de Pra’d Mill (Cuneo) em fevereiro de 2015 e em alguns seminários dos últimos anos com os e as estudantes da Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma. A explicação do tom coloquial que este texto por vezes assume está nesta sua génese.



A novidade não está no conteúdo daquilo que tradicionalmente chamamos misericórdia, mas no facto de ser a primeira vez, do ponto de vista da experiência cristã, que esta pode ser usada como categoria geratriz da própria experiência cristã. É outra dimensão. Este livro procura mostrar esta diferença



2. Alguns equívocos a evitar

O tema desta reflexão é a misericórdia, mas gostaria de, primeiramente, esclarecer alguns equívocos. Em primeiro lugar, não falaremos dela como de algo indefinido e indistinto. A diversos níveis, existe, de facto, um uso quase retórico do termo «misericórdia» para ocupar um espaço vazio, entre o espiritual e o sentimental. Não creio que este termo sirva como um "passepartout" para desativar os contrastes ou para encobrir os problemas, para fingir que, simplesmente nomeando-o, «tudo está bem» e «todos os nossos problemas se resolvem». Falar de misericórdia significa ativar mecanismos penosos e problemáticos.

Em segundo lugar, gostaria de excluir, desde o começo, que «misericórdia» se deva entender aqui como um exercício ascético de caráter pessoal, graças ao qual uma pessoa, um pouco de cada vez, se torna melhor, mais cristã, mais misericordiosa. Não quero negar que esta dimensão exista, gostaria simplesmente de colocar a discussão noutro plano.

Quer dizer: gostaria de usar esta palavra de outro modo, mostrando uma riqueza e uma utilidade que estes dois primeiros modos correm o risco de não evidenciar, ou até de encobrir. A tese deste nosso trabalho é a de que a «misericórdia» deve ser usada e percorrida, hoje, como categoria teológica, isto é, como uma estrutura fundamental, uma forma da fé da Igreja. Neste momento histórico, ela é colocada diante de nós, não tanto como uma virtude individual ou uma questão espiritual, mas como um possível lugar de visibilidade da experiência cristã e do seu ser vivível. É o sinal mais evidente de que – esta é a tese de outros teólogos mais ilustres que faço minha – enfrentamos uma passagem epocal, como dizia antes. A novidade não consiste tanto no facto de, em épocas precedentes, o tema da misericórdia ter estado ausente da vida e da reflexão cristãs. É um tema central do Evangelho, tem raízes profundas no Antigo Testamento, é um tema caro aos Padres da Igreja. A novidade não está no conteúdo daquilo que tradicionalmente chamamos misericórdia, mas no facto de ser a primeira vez, do ponto de vista da experiência cristã, que esta pode ser usada como categoria geratriz da própria experiência cristã. É outra dimensão. Este livro procura mostrar esta diferença.



Tomemos como exemplo um mosteiro ou a vida de uma paróquia: o modo como se fazem as coisas (como se fala, como se tomam as decisões, como se organiza a vida quotidiana) funciona mais de uma maneira ou de outra, segundo o quadro no interior do qual o pensamos. A tese é que o quadro de referência destas práticas para a próxima época da história cristã deverá ser a misericórdia



3. A misericórdia como categoria geratriz

Que entendo por «categoria geratriz»? Em toda a história do Cristianismo, não existiram muitas. São as questões que deram o ponto de vista – a forma – à totalidade da experiência cristã, da sua visibilidade e da sua vivibilidade. São as categorias a partir das quais se organizam os outros conceitos e se enfrentam os problemas, como numa moldura.

O magistério do Papa Francisco retomou alguns temas centrais do Vaticano II que, contudo, não tinham uma categoria unificante que permitisse percorrê-los na sua complexa articulação, por motivos que historiadores e teólogos explicam. O bispo de Roma, vindo «do fim do mundo», individualizou, com força comunicativa e de modo poderoso, a categoria da misericórdia, também na sequência da receção do concílio Vaticano II por parte das Igrejas latino-americanas. O Papa Francisco conseguiu usar – e dizer – uma única palavra, para dar uma forma à complexa articulação das questões. Não é coisa de somenos, porque todos sabemos como nos sentimos quando não temos palavras capazes de o fazer. A categoria da «misericórdia» pode ser a chave, a nova moldura para repensar uma forma cristã radical.

É este o objetivo. Os níveis de aplicação e de verificação da tese são muitos. Alguns são mais teóricos, próprios sobretudo dos teólogos, outros, como veremos, são muito concretos. O nível decisivo, contudo, é o da pesquisa de formas congruentes ao nível de práticas concretas. Tomemos como exemplo um mosteiro ou a vida de uma paróquia: o modo como se fazem as coisas (como se fala, como se tomam as decisões, como se organiza a vida quotidiana) funciona mais de uma maneira ou de outra, segundo o quadro no interior do qual o pensamos. A tese é que o quadro de referência destas práticas para a próxima época da história cristã deverá ser a misericórdia. Ou melhor, algumas realidades eclesiais já vivem segundo um novo quadro, mas faltam as palavras para o dizer. Como efetivamente veremos já no próximo capítulo, a relação entre as categorias geratrizes e as práticas é ambivalente. Pensando uma categoria, dela derivam algumas práticas, mas também o oposto é verdadeiro: pensar uma categoria nova a partir da mudança de algumas práticas, porque, agindo de modo diferente, também se pensa de maneira diferente.



 

Publicado em 17.11.2016

 

Título: Deus não se cansa – A misericórdia como forma eclesial
Autora: Stella Morra
Editora: Editorial A.O.
Páginas: 196
Preço: 14,00 €
ISBN: 978-972-39-0823-7

 

 
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