Somos entes vivos. Desde que nos conhecemos que somos entes vivos. Desde que Deus nos conhece somos entes vivos. Antes de esta vida ser o que somos, não éramos conhecidos. Não éramos, simplesmente. No eterno amor de Deus por nós, somos metafísicas coisas vivas em seu seio. Nada em nós é compatível com coisa alguma mais do que a vida. O que não é vida não nos é contrário, é-nos contraditório. Ou somos vida ou não somos coisa alguma. A morte, em seu negativo esplendor, é a aniquilação do que somos como vida, por isso nos é contraditória.
Nada em nós é compatível com a morte.
Costuma dizer-se que a morte é algo de natural. Nada mais natural do que a morte, pois, entre outras razões para tal se considerar, nada mais certo. Mas a morte só é natural como antítese absoluta da vida e isto de um modo meramente lógico. Nada mais na morte é natural. O pseudo-sentido da falsa naturalidade da morte serve para que se evite encarar de modo radical, olhos nos olhos, a questão da possível aniquilação que a morte representa. O grito em que a alma humana explode o terror que vive pelo absoluto, não da perda, sentimento aburguesado, mas pela impossibilidade de renovação da presença do ente que se ama: «nunca mais o/a vou ver!» não é apenas manifestação de egoísmo insaciável por uma posse definitivamente frustrada, é, sobretudo, é, muito mais, a confissão da evidência quer da aniquilação mundana do absoluto da presença do amado quer da evidência, agora materializada na negatividade da “impresença” incontornável de tal pessoa, da minha própria possibilidade de aniquilação mundana.
Como em Job, em qualquer um de nós, tudo o que não é essencial e substancial é substituível. Mas tudo o que é essencial e substancial é insubstituível; absolutamente, passe a redundância. Não se pode substituir isso que, em Job, é o absoluto da sua fidelidade ao Deus de bondade em que acredita, mais do que em si próprio. Não se pode substituir cada um dos filhos que teve de morrer para que a provação exterior do pai pudesse ser efetivada.
Tudo isso, como tudo o que de fundamental se perde, é irresgatável. Assim o absoluto próprio da vida. A vida de Job, levada ao extremo da sua essência e substância próprias, de tudo independentes, menos do ato de fé do próprio, é contraditória de tudo o que se lhe deparou, mesmo do falso deus – deus de morte – que se lhe revela antes de Deus se lhe revelar.
Job é a prova teórica de que a vida propriamente humana é um ato de fé e nada mais. O mais, sem fé, é antitético da vida. A fé é o supremo ato de caridade para consigo próprio e para com Deus. Fé e caridade extremas. Mas extremas porque extrema é a esperança com a qual Job se confunde em todo o seu ato. Esperança numa vida em que Deus se lhe possa revelar digno da promessa que em si tem, no seu interior mais profundo. Vida como esperança. Vida como fé. Vida como caridade. Nada mais.
Ora, a leitura do livro de Job pode deixar um travo de imprecisão: esperança exatamente em quê? Em Deus, está bem? Mas como? Qual o pormenor?
Em Job, nada é sem o pormenor da carne. Carne sofredora, isto é, homem pleno em pleno sofrimento, construindo a sua relação com Deus e com os outros seres humanos através da mostração em carne da dor de seu espírito. A carne de Job, paradigmática, não é um pedaço de matéria com alma aposta, mas a dimensão completa da realidade finita e mundana de Job em ato. A sua progressiva redução é a redução da sua carne, até que já quase nada mais resta do que a transparência mundana do espírito na forma pessoal exterior distintiva do que é mundanamente irredutível em Job. A sua carne é a sua forma ontológica, que o distingue do demais, que é o seu verdadeiro nome segundo o mundo e o tempo de se ser finito, limitado, que constitui a sua identidade política na terra dos homens, face sensível da sua identidade transmundana que apenas Deus e ele conhecem. Isto tudo é a carne de Job. E Job é só isto tudo. Só Job e Deus sabem o sabor da carne de Job. Agridoce fidelidade em ato; refeição primeira e última em que o espírito se prova e, provando-se, se impõe como única realidade.
Isto tudo, que parece muito pouco, é todo o Job que interessa: que interessa ao próprio, que interessa a Deus. Nada mais interessa, nada mais é Job. O que foi acrisolado, não é carne de Job, mas cadáver de Job.
Ora, é este homem, que foi despojado de seu cadáver próprio em vida, quem eleva a ode mais bela concebível à carne em sua relação com Deus.
Transcrevemos, da versão portuguesa da “Nova Bíblia dos Capuchinhos” (1998): «Eu sei que o meu redentor vive / e prevalecerá, por fim, sobre o pó / da terra; / e depois de a minha pele se des- / prender da carne, / na minha própria carne verei a / Deus. / Eu mesmo o verei, / os meus olhos e não outros o hão- / de contemplar!» (19, 25-27).
A redenção de Job está na vida de alguém que vive, duplamente, no seio mais profundo do ser de Job e também do amor que este lhe dedica. Job já nada é mais do esta dupla presença, do que este duplo amor. Há o ato de amor de Job por Deus, seu redentor, e há a esperança nesse mesmo redentor, posta pela fé de Job na sua presença. A solidão de Job acontece em meio de um ato de amor que sobreleva todas as formas de redução do absoluto da vida.
Assim, Deus prevalece sobre o pó da terra no e por meio do ato de amor com que ergueu e ergue a criatura, mas, “impresente” a esta, tal permanência acontece apenas através do ato da criatura que se recusa a ser pó, não em nome de seu orgulho, mas em nome do bem de esse que acredita ser a fonte possível de sua salvação. Esta fonte não é um deus longínquo, uma ideia ou um ídolo, mas isso que é o paradigma do amor com que se ama, com que Job ama, isso sem o que Job não poderia amar. Deste ponto de vista, Deus permanece junto do mundo no ato de amor de Job: nele, este ama Deus e o mundo. O pó da aniquilação é vencido pelo amor de Job em nome do amor de um redentor que não há-de falhar. Eis como a fé salva o mundo.
De algum modo, sempre se viveu de maneira a que a mera “pelicularidade” da pele marcasse o fundamental do nosso ser e do nosso estar no mundo: a pele é símbolo do superficial, do que se esgota na “improfundidade” ontológica das relações sem densidade de gente sem substância e falha de cumprimento de sua essência. Job viu «a pele desprender-se da carne». Perder a pele – paixão horrível –, significa estar verdadeiramente em «carne viva», totalmente exposto, mas sem modo possível de esconder a sua essência e a sua substância. Job é posto na transparência da sua carne.
Mas esta transparência é o seu espírito e, nele, Deus, como carne da sua carne, absoluto da intimidade genésica em si incoativamente posta. Carne de Job é, em sua transparência total, a carne de Deus como dado absoluto, como fermento de bem, isso que vai ser pleno na carne de Deus chamada Cristo. A carne é a totalidade do ato do ser humano, liberta da intransparência do pecado: assim em Job, assim em Cristo.
Ora é nesta carne que se vê a Deus. Melhor, esta carne é a visão de Deus, é Job que contempla Deus em si, mas também Deus que contempla o bem de Job, que se contempla a si próprio no bem que Job é como fidelidade a Deus. Em e com Job, opera-se teoricamente a redenção da carne, que Cristo irá pôr em ato prático.
Que carne é esta, que vê a Deus?
Eu mesmo: a carne que sou, lugar da visão do redentor, logo, da redenção. Job pode dizer: contemplam Deus os meus olhos, os olhos da carne de quem se transformou na carne essencial, lugar do espírito, superada coincidência tópica do espírito com o pó da terra, em que eu, Job, que nunca deixou de contemplar Deus, na fé, se ergue como Deus se ergue. Mas, para que a carne de Job contemple Deus, Deus tem de se fazer carne sobre o pó da terra. Assim sendo, a carne definitiva de Job é semelhante à carne provisória de Deus, isto é, uma e a outra são a presença substantiva da essência própria de cada um. Isso a que chamamos espírito, mas em forma de relação. A carne é a forma essencial e substancial da relação entre pessoas. A carne é o absoluto do amor. No tempo como na eternidade.
Américo Pereira