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Através da bênção, os tempos tornaram-se ocasiões para o encontro pessoal «com as marcas de Deus e com um futuro vivível e promissor, para escavar nas vastas profundezas da solidão e da comunhão entre os homens, para acompanhar a génese de uma biografia, para enfrentar fecundamente o caráter tragicómico da existência, para viver o aspeto abissal e místico-consolador da fé e para compreender o mistério cristão como arte de tradução entre Céu e Terra, Deus e Mundo, pecado e santidade, entre tempos e culturas, entre profetas e sacerdotes».
Por isso, «a bênção transforma escolhos em passagens, desfiladeiros em caminhos», escreve Elmar Salmann, monge beneditino e teólogo alemão na introdução ao novo livro "A vitalidade da bênção", recentemente lançado pela Editorial A.O.
"Sementes e esboços para um futuro Cristianismo", "A pedagogia divina: paternidade e filiação", "A dialética aberta entre distanciamento e envolvimento" e "Um Deus risonho" são alguns dos temas desenvolvidos pelo autor.
«Num Ocidente esquecido de Deus, ao sacerdote, mais do que os grandes discursos, pede-se a humildade silenciosa da bênção, que torna a vida abençoada e vivível, mesmo nos espaços onde Deus parece já não ter lugar», refere o resumo da obra, que conta com prefácio do responsável máximo dos Jesuítas em Portugal, texto que reproduzimos seguidamente.
O conforto da bênção num tempo incerto
José Frazão Correia, sj
In "A vitalidade de bênção"
«A bênção é a razão de ser da religião, a sua força e o seu charme». Nesta frase está condensado o que este livro diz. Quando a tantos a fé cristã parece já dizer tão pouco acerca da trama intricada que a vida é e quando os grandes mistérios cristãos – a trindade e a criação, a encarnação e a redenção, a graça e a vida eterna – já pouco se compreendem e mais dificilmente se conjugam com a experiência banal de cada dia, Elmar Salmann aponta a bênção como lugar promissor para viver, para compreender e para dizer a experiência crente e, nela, o ministério sacerdotal. A bênção exprime a força vital da fé cristã, que é digna de ser vivida, porque atravessa as entranhas da existência, as suas graças e desgraças, encantos e pesadelos, realizando as aspirações mais íntimas da alma, as vibrações mais fortes da existência. E é expressão e forma – o tal charme – da vida crente, desenhando espaços humanos e modos fecundos de os habitar. Num ambiente cultural que já não se reconhece imediatamente cristão, entre uma fé, talvez, demasiado forte e intimidatória, sacral e expiatória, e uma fé, talvez, demasiado leve e simpática, humanista e liberal, a experiência de se reconhecer abençoado e de poder abençoar inicia à possibilidade de um outro estilo cristão.
Só por si, a palavra bendizer já é verdadeira bênção, recorda-nos, noutro momento, o autor do presente livro. Há um encanto próprio em qualquer início – no dar à luz e no nascer, quando se semeia ou se abre um livro novo, no casar e no reconciliar-se, na primavera e no Ano Novo. Com renovada esperança, evoca-se e renova-se a bênção dos inícios, a palavra amorosa e fecunda que tudo trouxe à vida e que tudo mantém em vida. À luz de um Deus que nos quer bem e nos bendiz, dizer bem e falar bem, das pessoas e das suas circunstâncias, do tempo que se vive e dos lugares que se habitam, já assinala a presença da graça divina que, graciosamente, aquece e ilumina, conforta, eleva, sustenta. Reconhecer e viver a vida e a sua contingência como bênção, ainda que difícil, realiza a fé num Deus encarnado. Possivelmente, este será um Deus mais humilde do que outrora, mas nem por isso será mais fraco; será mais pobre e mais modesto do que nos tempos em que o Cristianismo regia o centro das culturas e das consciências, mas, ainda assim, não cessa de se expor, em liberdade, à nossa finitude – Deus em contínuo e paciente ato de gerar vida nas vidas reais que são as nossas.
A bênção aponta para um Cristianismo possível em tempos indeterminados e incertos e que lhe impõem maior humildade. E aponta, também, para um ministério sacerdotal que reencontre no gesto da bênção um lugar privilegiado, sobretudo quando a aura sacral do passado talvez já não reja ao tempo dessacralizado de hoje, e o ativismo pastoral e comunicativo moderno talvez ainda não convença plenamente – A Vitalidade de Bênção foi publicado originalmente, em Itália, em 2010, no contexto do ano sacerdotal, dirigindo-se, em primeiro lugar, aos sacerdotes. Como o leitor poderá confirmar, já quase no final do livro, dirá E. Salmann que a bênção é a linfa vital, o âmago, o gesto primordial dos sacramentos, da mística, da gestualidade sacerdotal. Invocado, provocado, enviado, o sacerdote passará a dar voz e gesto – a sua voz própria, verdadeira, não de falsete; os seus próprios gestos, ajustados e justos, ternos ou fortes, segundo mais convier – à profundidade, à altura e à largura do mistério que habita toda a existência e o mundo inteiro. E fá-lo-á com paixão e competência, profundidade e leveza, esforço e graciosidade, deixando que a sua própria vida chegue a testemunhar o que significa o silêncio, a oração, a ascese, a contemplação, a ousadia profética, quando for o caso. Por isso, terá pudor em falar de cor de Deus, como se O pudesse reduzir ou esgotar numa formulação fechada, num código certo, num arrebatamento de momento. Acenará, antes, para uma sarça que arde sem se consumir, diante da qual se tira o calçado, a mesma através da qual ele próprio é chamado pelo nome e o leva a ficar descalço. O mistério de que fala e que representa como bênção da vida é aquele que lhe atravessa a existência.
O que seria, pois, reler o ministério sacerdotal à luz da bênção? Significaria situar-se, algures, entre a função que se exerce, sem se tornar funcionário, e o mistério que se serve, sem se tornar um homem estranho ou desligado. E o que seria o poder sacerdotal à luz da bênção? Não seria, seguramente, a autoridade autoritária e castradora, paternalista ou moralista, que tira benefícios pessoais da missão recebida e da suposta supremacia sacral, mas, antes, a arte de ser pequeno pontífice, na medida em que cria pontes entre céu e terra, graça e liberdade, natureza e cultura, acolhimento gratuito e esforço empenhado. Seria autoridade que autoriza, promove e sustém a liberdade de outros; o saber aproximar-se e o saber afastar-se; a sabedoria de exigir com firmeza e de esperar com paciência. O que seria o pastor que se compreendesse como bênção? Não seria, de todo, o dono e senhor do redil, que se serve das ovelhas, como sua propriedade, motivo para a sua realização pessoal, instrumento para os seus caprichos e manias, destinatário das suas frustrações. Seria, antes, o servo que assiste – observa e acompanha – o caminho, por vezes, lentíssimo, de cada homem e mulher, com empatia, lucidez, paciência e tenacidade, inventividade e afeto. E o rito, como ganharia se não ficasse aquém dessa mesma força e charme da bênção! Seria realizado no horizonte do Espírito que incide na matéria, porque a verdade que Deus é manifesta-se como palavra-carne, palavra-gesto – Jesus Cristo, caminho da verdade da vida, não é só palavra que ensina, mas é timbre, musicalidade, ressonância. É silêncio e é gesto. É rosto e é toque. É aproximação e é afastamento, é luz forte do meio-dia e luz ténue do entardecer. Por isso, o rito que representa a ação da graça deverá ser bem-dito e bem-feito, para chegar a ser reconhecido e acolhido como bênção que toca a vida. À luz da bênção, o rito é, de facto, ação do Espírito a incidir e a agir no tecido da vida.
Respirar a bênção é mais, bem mais, do que compreendê-la ou dizê-la. Será saboreá-la, senti-la, fazê-la sua. Também este livro poderá ser respirado, como uma bênção, exigente, por vezes, como costuma ser a bênção. O seu autor, Elmar Salmann, é monge beneditino, da Abadia de Gerleve, na Alemanha. Nasceu em 1948 e, ao longo de mais de trinta anos, ensinou filosofia e teologia, em Roma, marcando, com a sua originalidade e liberdade de espírito, a sua vastíssima erudição e sentido de humor único, várias gerações de alunos. Mestre no ofício de pensar e senhor de uma escrita refinada, é particularmente conhecido em Itália, dentro e fora da Igreja, pela arte de ler os contornos do nosso tempo e de reler, nele, lugares possíveis – humanamente honestos e dignos – para o Cristianismo e a Igreja. Por todas as razões, é, também, uma bênção que a Editorial AO nos tenha tornado acessível, em língua portuguesa, este livro-aperitivo à obra de E. Salmann. Poderemos ler cada uma das suas sete partes como sete exercícios de respiração. Porque a bênção respira-se.