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Virtudes a redescobrir e a viver

Ágape (a grande aurora)

A reciprocidade é a lei de ouro da socialidade humana. Mais do que qualquer outra palavra – como sejam indignação, vingança ou intermináveis ações em tribunal – a reciprocidade traduz muito melhor a gramática fundamental da sociedade. O ADN do animal político é uma hélice que entrelaça dar e receber. Mesmo o amor humano é essencialmente uma questão de reciprocidade desde o primeiro instante ao último, em que, muitas vezes, se deixa esta terra apertando a mão de alguém que se ama; ou, se ausente, apertando-a dentro com as últimas energias da mente e do coração. Esta dimensão de reciprocidade do amor, com a qual se ama quem nos ama, foi expressa de vários modos e com muitas palavras pelas diferentes culturas.

Na Grécia as mais conhecidas eram eros e philia, duas formas de amor diversas, mas que têm em comum a reciprocidade, a necessidade fundamental da resposta do outro. O eros é uma reciprocidade direta, biunívoca, exclusiva, na qual o outro é amado porque nos preenche uma indigência, nos sacia, reacendendo um desejo vital. Na philia grega (que se assemelha ao que hoje chamamos amizade), a reciprocidade é mais elaborada: tolera-se a falta de resposta do outro, não se fazem sempre contas de dar e haver, e pode-se perdoar muitas vezes. É por isso que, enquanto o eros não é uma virtude, a philia pode sê-lo, porque requer fidelidade ao amigo que, de tempos a tempos, trai ou não responde ao amor. Mas o amor–philia não é um amor “incondicional”, já que termina quando o outro ou outra me faz entender com a sua não–reciprocidade que já não quer ser meu amigo.

O eros e a philia são essenciais e esplêndidos para toda a vida boa, mas não bastam. A pessoa é grande porque não lhe basta a já grande reciprocidade; quer o infinito. Assim, a um certo ponto da história, quando o tempo se tornou maduro, nasceu a necessidade de uma outra palavra para dizer uma dimensão do amor não limitada naquelas duas semânticas do amor, já ricas e elevadas. Esta nova palavra foi agape, não inteiramente inédita no vocabulário grego, mas novos foram o uso e o significado que lhe foi atribuído por "aqueles da via", o primeiro (belíssimo) nome dos cristãos. Mas o agape não foi uma invenção; foi a revelação de uma dimensão presente, em potência, no ser de toda a pessoa, mesmo quando sepultada e à espera de alguém que lhe diga “vem para fora”.

O agape não é uma forma de amor que começa quando terminam as outras, não é o não–eros ou a não–philia, porque é a sua presença que torna pleno e maduro todo o amor. Porque é o agape que doa ao amor humano aquela dimensão de gratuidade que não é garantida pela philia, e muito menos pelo eros; e que, abrindo-as, cumpre (assim) todas as virtudes, que na sua ausência não passam de subtil egoísmo. Também por esta razão quando os latinos traduziram o agape, escolheram charitas, que nos primeiros tempos se escrevia com h, uma letra que é tudo menos muda, porque dizia muitas coisas. Para começar, dizia que aquela charitas não era nem amor nem amicitia, era algo diverso. Depois, que aquela charitas já não era a caritas dos mercadores romanos, que a usavam para exprimir o valor dos bens (o que custa muito, que é “caro”). Mas aquele h queria também recordar que charitas reportava ainda a uma outra grande palavra grega: charis, graça, gratuidade (”Ave Maria, cheia de charis”). Não existe agape sem charis, nem charis sem agape. Então, a philia pode perdoar até sete vezes, o agape até setenta vezes sete; a philia doa a túnica, o agape doa também a capa; a philia percorre uma milha com o amigo, o agape duas, e fá-lo também com o não–amigo. O eros suporta, espera, cobre pouco; a philia cobre, suporta, espera muito; o ágape espera, cobre e suporta tudo.

A forma de amor do ágape é também uma grande força de ação e de mudança económica e civil. Todas as vezes que uma pessoa age para o bem, e encontra na ação mesma e dentro de si recursos para andar para diante mesmo sem reciprocidade, entra em ação o ágape. O ágape é o amor típico dos fundadores, os iniciadores de um movimento, de uma cooperativa, que não podem contar com a reciprocidade dos outros, e cuja ação exige fortaleza e perseverança em longos períodos de solidão. O ágape não condiciona a escolha de amar à resposta do outro mas, quando tal resposta falta, sofre porque o ágape é pleno na reciprocidade («dou-vos um mandamento novo: amai-vos!»); mas não fica incomodado a ponto de interromper o seu amor não amado.

A plenitude da reciprocidade agápica exprime-se também numa relação ternária: A doa-se a B, e B doa-se a C; uma transitividade do ágape que não está presente nem na philia, nem, ainda menos, no eros. Aliás, esta dimensão de “ternariedade” e de abertura é essencial para que se dê ágape. Até mesmo o amor materno e paterno para com um filho não seria agápico, e portanto maduro e pleno, se se esgotasse na relação A =» B, B =» A, sem a dimensão B =» C …, que ultrapassa as tentações de amor incestuoso ou narcisista. Esta necessidade de reciprocidade, o avançar ainda que não exista resposta, tornam o agape uma experiência relacional simultaneamente vulnerável e fértil. O ágape é uma ferida fecundíssima. É o ágape que transforma as comunidades em lugares acolhedoras e inclusivas, com portas escancaradas e que nunca se fecham, que desmonta hierarquias sacrais, ordens e castas, e toda a tentação de poder.

O ágape, além disso, é essencial para todo o Bem comum, porque conhece também um tipo de perdão capaz de anular o mal recebido. Quem quer que tenha sido vítima do mal, de qualquer mal, sabe que esse mal feito e recebido não pode ser plenamente compensado ou reparado com penas e indemnizações civis. Continua a operar, é uma ferida que permanece; a menos que um dia se encontre com o perdão do agape que, diferentemente do perdão do eros e da philia, tem a capacidade de sanar todas as feridas, ainda que mortais e de as transformar na aurora de uma ressurreição.

Existe, porém, uma tese que atravessou a história da nossa cultura. O ágape – diz-se – não pode ser uma forma de amor civil porque, devido à sua vulnerabilidade, tal não seria prudente. Poderá ser vivida apenas na vida familiar, espiritual, talvez no voluntariado; mas na praça pública e nas empresas teremos que nos contentar apenas com os registos do eros (incentivos) e, na melhor hipótese, da philia. Uma tese muito radicada, porque se baseia sobre a evidência histórica de muitíssimas experiências nascidas do ágape que retrocederam depois para mera hierarquia ou comunitarismo.

É a história de tantas comunidades que começaram com o ágape e que diante das primeiras feridas se transformaram em sistemas muito hierárquicos e formalistas. Ou experiências que nasceram abertas e inclusivas e que, após os primeiros fracassos, fecharam as portas expulsando os diversos. A história é também o repetir destes “retrocessos” que, porém, não reduzem o valor civil do ágape e que deveria impelir-nos a introduzir mais ágape, não a retirá-lo, na política, nas empresas, no trabalho. Porque sempre que o ágape surge na história humana – mesmo se por pouco, pouquíssimo, tempo – não deixa nunca o mundo como estava. Eleva para sempre a temperatura do humano, crava um novo prego na rocha, e quem amanhã retomar a escalada partirá um metro, ou centímetro, mais acima.

Nenhuma gota de ágape se perde na terra. O ágape abre o horizonte de possibilidades de bem do humano, é o fermento e o sal de todo o bom pão. O mundo não morre, e a vida recomeça cada manhã, porque existem pessoas capazes de ágape: «Agora existem três coisas: fé, esperança, e ágape. A maior de todas é o ágape».

 

Luigino Bruni
In Avvenire
Trad.: P. António Bacelar
© SNPC | 11.02.14

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