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Além da Taprobana! : Bill Viola e "Stop the Pounding Heart"

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Além da Taprobana! : Bill Viola e "Stop the Pounding Heart"

“Além da Taprobana” (Camões) é uma “metáfora viva” (Ricoeur) que traduz de algum modo a força do trabalho de Bill Viola e de Roberto Minervini. Mesmo sem conhecerem os versos de Camões, ambos os artistas ousam atravessar a Taprobana com duas metáforas de grande força antropológico-espiritual.

“Se Deus é Deus […] Ele é presença de uma ausência” escrevia Merleau-Ponty. A obra de Bill Viola (Grand Palais-Paris) e a parábola Stop the Pounding Heart de Roberto Minervini manifestam o paradoxo radical da “presença de uma ausência”. Bill Viola (n. 1951, New York) é um génio da prática metafísica da realização videográfica. Stop the Pounding Heart (de Roberto Minervini, 2013) é o silêncio místico do cinema contemporâneo.

Mas serão estas duas propostas anateistas um reencontro cultural com o cristianismo e de interpretação da existência humana na sua confrontação com o Absoluto? É contranatura pretender que a arte contemporânea seja simplesmente aquilo que fora outrora a criação artística de espectro litúrgico-cultual. Tanto a arte de Bill Viola como de Stop the Pounding Heart não têm uma intenção edificante, cultual ou moralizante. Manifestam a “presença de uma ausência” e celebram “o enigma do visível” (Ponty). Ambas exprimem uma “cultura/espiritualidade da autenticidade” (Charles Taylor) prévia a todo o “assentimento nocional/doutrinal” (Henry Newman). A autenticidade é já de si um assentimento real da consciência existente que se repete, relenta e se expande no tempo da imaginação possível. Tudo se joga no modo novo de percecionar a geografia espiritual contemporânea. “Se as portas da perceção estiverem abertas, então tudo aparecerá ao homem tal e qual – infinito” (Bill Viola).

 

Esculpir

Bill Viola é um “escultor do tempo” que se repete exaustivamente até que emerja a essência das coisas. Um esculpir para criar uma carnalidade semântica das imagens, silenciosa e antepredicativa. O artista procura um horizonte de resposta para a tríade Quem sou? Donde venho? Para onde vou? (Nine Attempts to Achieve Immortality e The Quintet of the Astonished). A procura da resposta não é imediata. A procura expande-se no tempo e no mergulho da interioridade. Para Viola o tempo é um relentar repetente que retém obstinadamente a pergunta. Ele trabalha metodicamente o tempo no qual emerge o corpus da realidade e da sua transcendência. Uma escultura do “tempo da consciência interna” que procura uma fenomenologia essencial que vá de encontro às coisas em si mesmas. Uma imersão emergente do corpo que excede a visibilidade das coisas porque as transfigura do nascer ao renascer (Four Hands).

Sendo o mais célebre representante contemporâneo da arte vídeo, Viola aproxima-se da conceção teórica de Peter Greenaway, realizador britânico, para quem a palavra textual tem uma relevância minimal nos seus filmes pictóricos. O elemento consagrante que os relaciona é a desvelação do corpo, a nudez física e interior que a imaginação do sonho proporciona ao sujeito (Man searching for immortality/Woman searching for eternity). Nesta desvelação se revela a hermenêutica pensante da corporeidade e da voz como elementos constitutivos do humano e do seu relacionar-se com a transcendência.

A pretensão de Viola é de “criar as condições de uma “imersão” na imagem, símbolo expresso pela metáfora recorrente do corpo imerso na água […]”. Nas suas obras figuram relevantemente a vida, a morte, o renascimento, a transfiguração, a consciência, a corporalidade, a espiritualidade cristã (cf. Catherine’s Room) e oriental (cf. Going Forth by Day, 2002), sobretudo budista, a interioridade e a exterioridade, a protologia (princípio) e escatologia (ulterioridade). A sua obra é uma teologia plural de Deus, do homem e do mundo. Na sua conceção não existe uma metafisica abstrata mas uma metafísica da realidade experienciada ou vivida das relações intersubjetivas.

É na última parte da exposição do Grand Palais, intitulada Going Forth by Day, que o artista apresenta do modo imponente os grandes temas da existência humana: a individualidade, a sociedade, a morte e o renascimento. A sua obra é “[…] um convite a mergulhar em todas as etapas e facetas da fascinante viagem espiritual que dá visibilidade a este imaginário” (Catálogo de apresentação da exposição Bill Viola au Grand Palais – Paris). A essas relações intersubjetivas Cyrulnik apelida de “confinamento afetivo” que nos afetam e estruturam individual e coletivamente.

 

Visionar

É na exploração desta complexidade da vida afetiva que a extraordinária visão parabólica Stop the Pounding Heart (a tradução francesa é bem conseguida: Coeur battent) de Roberto Minervini se torna uma obra de arte da autenticidade. Uma parábola visionária da complexidade crente do cristianismo, na linha de Corpo Celeste, superando-o, sem dúvida. Nem é documentário nem filme na sua conceção tradicional. Visão parabólica!

Em Stop the Pounding Heart o texto em si não é o mais importante. Num dos seus ensaios sobre cinema, a escritora americana Virginia Woolf anotava que a relação texto/romance e imagem é uma “aliança não natural”. O poder da imaginação não-escrita é de outra ordem. A essência da imagem está em captar a sensibilidade dos gestos e dos atos, no fundo a sua transcendência, o sublime, a espiritualidade das coisas.

Stop the Pounding Heart apresenta uma visão sobre a fé de uma família cristã texana, devotamente protestante, que pratica a sua crença com a base numa interpretação literal da escritura (criação de Adão e Eva e submissão da mulher ao homem, uma visão dualista entre bem e mal sugerido pela divisão entre comboys armados e a família Carlson refugida no mundo bucólico da pastorícia, a pregação moral de um dos elementos comboy que enfatiza a luta entre bem e mal…). O dabar divino permeia os atos do quotidiano, como agradecimento e entrega fiducial. Tipicamente protestante. Uma fé fiducial que passa pela relação profunda entre Criador e criatura, pais e filhos, entre indivíduo e sociedade.

Na parte final, Sara (filha) e LeeAnne Carlson (mãe) protagonizam um dos momentos mais sublimes desta “visão” poética de Roberto Minervini. À debilidade da pergunta da filha, a mãe responde com a presença do afeto que transfigura a dúvida. É ela mesma “presença de uma ausência”. Corresponde presentando-se a uma outra presença (como a Visitação de Jacopo Pontormo que se distingue pela intensa gestualidade afetiva/emotiva do toque além das palavras). O seu coração crente não é só batente mas amorosamente combatente como a luta de Jacob/Sara com o Anjo/Deus (cfr. Jacob luttant avec l’Ange de Eugène Delacroix, Eglise de Sant Sulpice-Paris). Entre muitas outras possibilidades, esta “visão” parabólica mereceria uma análise cristológica mais detalhada…

 

Aos ombros dos gigantes

Tanto Viola como Minervini criam a partir de um substrato crente, de uma tradição de longos séculos e das figuras proeminentes dessa história. Um inspira-se nas grandes figuras da pintura renascimental e da mística medieval (veja-se, por exemplo, Emergence – The Passions baseado na Pietà do pintor florentino Masolino, 1424, onde Viola refigura a Ressurreição de Cristo); o outro inspira-se na Escritura eloquente, para a colocar como fundamento da existência humana. Duas hermenêuticas conjuntivas, uma fundada sobre o liber Corporis, outra sobre o liber Scripturae. Dois modos contemporâneos para falar de e a Deus, de meditar e orar, bem no centro da alta cultura europeia. Bill Viola no Grand Palais de Paris e Stop the Pounding Heart no Festival de Cinema de Cannes!

Estas duas presenças culturais do cristianismo contemporâneo são de algum modo uma crítica involuntária quer ao esteticismo artístico quer ao pietismo edificante que nas suas amplas e variadas formas procuram o imobilismo da ação do Espírito na criatividade humana. Bill Viola coloca-se aos ombros dos gigantes da arte e da espiritualidade humanista sem deixar de os interpretar e propor a sua própria originalidade. A sua pretensão de “entrar no interior das imagens (como aquelas de Bartolo, Goya, Bosch ou Masolino), incarná-las, habitá-las, senti-las respirar” eleva-o ao nível da excelência da grande tradição cultural e espiritual do Ocidente.

Não deixaria de ser imaginativamente subversivo para a liturgia cristã contemporânea a tentativa de integrar este novo modo interpretativo e meditativo da Revelação e da sua manifestabilidade. Paradoxo para muitos e incredulidade para tantos outros, muito recentemente a igreja anglicana de St. Paulo em Londres comissariou a obra Martyrs by Bill Viola, tornando-a uma peça de altar evocativa dos elementos essenciais da vida em sua absoluta excedência. Também aqui se abre uma possibilidade de passar ou de ir além das diversas taprobanas da nossa contemporaneidade!

 




João Paulo Costa
Publicado em 25.09.2014 | Atualizado em 29.04.2023

 

 

 
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Bill Viola é um “escultor do tempo” que se repete exaustivamente até que emerja a essência das coisas. Um esculpir para criar uma carnalidade semântica das imagens, silenciosa e antepredicativa
"Stop the Pounding Heart" apresenta uma visão sobre a fé de uma família cristã texana, devotamente protestante, que pratica a sua crença com a base numa interpretação literal da escritura
Estas duas presenças culturais do cristianismo contemporâneo são de algum modo uma crítica involuntária quer ao esteticismo artístico quer ao pietismo edificante que nas suas amplas e variadas formas procuram o imobilismo da ação do Espírito na criatividade humana
Não deixaria de ser imaginativamente subversivo para a liturgia cristã contemporânea a tentativa de integrar este novo modo interpretativo e meditativo da Revelação
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