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Em memória de Ana Vieira (1940-2016)

Imagem Ana Vieira | D.R.

Em memória de Ana Vieira (1940-2016)

Ana Vieira: A poética da perda - uma reflexão sobre o político

As obras de Ana Vieira são anacoréticas (1) . Não por se retirarem do contacto com outros, mas por parecerem estar em retirada de si mesmas. São dádivas no modo de perda. Em abandono, em fuga, em exílio. Não é o Vazio ou o Nada – com a sua absolutidade mística -, antes o sentimento de que algo se perdeu. Que estamos num lugar fora do lugar. Aqui, num quarto que quer deixar de o ser. De móveis que parecem escapar ao seu destino - como escreveu Ana Vieira: «móveis a fugirem do seu desígnio». E mesmo, «móveis a assumirem a sua inutilidade».

O trabalho do negativo (2) é, em Ana Vieira, o contraponto necessário à ilusória transparência da obra. Os objetos negam-se em apagamento e desaparição que aparece. A negação está em obra na obra. É a falta como motor, que se revela numa poética da perda: a materialização da suspeição brechtiana «Aber etwas fehlt - mas falta algo» (3). Neste caso, os objetos vão perdendo a sua função e tornam-se inúteis - que é também uma reflexão profunda sobre a própria obra de arte.

 

ImagemArte da Fuga | Ana Vieira | D.R.

Neste quarto sente-se uma inquietação e mal-estar. Os móveis são fantasmas que fogem, desaparecem afundando-se no chão ou entrando pelas paredes. Uma estranheza introduzida no mundo. Palco de um drama ou relato de uma situação de crise. Um desequilíbrio.

Ainda que imediatamente não se perceba, este trabalho mais recente de Ana Vieira, surgiu como resposta à inquietação sentida com a situação política e económica dos últimos anos. Ancorada na realidade, não a quer mimetizar nem fazer um discurso moralista ou imediatamente panfletário ou ideológico. A sua linguagem é outra, o seu campo é distinto: não o de uma “arte política” mas o da arte politicamente comprometida.

 

ImagemMuros de Abrigo | Ana Vieira | D.R.

Sobre as instalações que surgiram desta inquietação, onde os objetos vão perdendo a sua função e assumindo a inutilidade, e que começou a realizar em 2014, escreveu a artista:

«Geralmente funciono, no campo da arte, quando as imagens que me vão surgindo se tornam obsessivas - e que resultam geralmente de vivências, e raramente de memórias. Desta vez foram imagens e títulos, o que não era habitual.

Estamos a viver uma das crises mais longas e penosas, de total desmoronamento e tensão, e sem saída à vista, o que nos deixa pouco espaço para podermos ser pessoas inteiras. (…) toda a Europa vai ter que alterar o seu atual sistema estrutural e de funcionamento, que não se sabe como será, e quanto tempo irá demorar.

Talvez por tudo isso, senti que era altura de atuar, desviando a minha atenção para a arte, através da minha última obsessão, a da crise, a última que tenho vivido - e assim poder observá-la de uma maneira mais distanciada.»

 

ImagemMuros de Abrigo | Ana Vieira | D.R.

(1) Do grego anakhôrein: retirar-se.
(2) A expressão «Arbeit des Negativen» surge em G.W.F.Hegel, Werke 3. Phanomenologie des Geistes. Frankfurt: Surkamp – 1986; p.24, trad francesa: Phénomenologie de l´esprit. Trad. J. Hyppolite. Paris: Aubier – 1995; p.18. O trabalho do negativo é a expressão que resume, no pensamento hegeliano, a essencial presença ativa do negativo na estrutura do mundo e no desenrolar da vida do espírito. A negatividade é para Hegel a força motriz da manifestação paciente da Verdade na História. Mediação necessária.
(3) «Mas algo falta», falta alguma coisa, afirmação do personagem Jimmy Mahoney na ópera com libreto de Bertolt Brecht e música de Kurt Weil, Aufstieg und Fall der Stadt Mahagonny.

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A primeira imagem apresentada é a última obra de Ana Vieira, para a qual o curador Paulo Pires do Vale escreveu este texto; foi apresentada a semana passada no stand da Galeria Graça Brandão, na Feira de Arte ARCO, em Madrid. Chama-se "Arte da Fuga".

As outras duas imagens referem-se à exposição "Muros de Abrigo", no Museu Carlos Machado, Ponta Delgada, comissariada em 2010 por Paulo Pires do Vale.

Hoje, 1 de março, a partir das 17h00, quem assim o desejar pode evocar e rezar por Ana Vieira, na capela do Rato, em Lisboa, à sombra do anjo da Lourdes Castro.

Pelas 21h00 a vida, amizade, influência, memórias e histórias deixadas por Ana Vieira serão oportunidade para a partilha, por quem o quiser, de um poema, história, música, imagem, palavras, ou silêncio.

Na quarta-feira, pelas 15h30, será celebrada missa, antes do cortejo para o cemitério.

 

Texto "Ana Vieira: A poética da perda - uma reflexão sobre o político": Paulo Pires do Vale
Curador
Publicado em 01.03.2016

 

 

 
Imagem Ana Vieira | D.R.
Ancorada na realidade, não a quer mimetizar nem fazer um discurso moralista ou imediatamente panfletário ou ideológico. A sua linguagem é outra, o seu campo é distinto: não o de uma “arte política” mas o da arte politicamente comprometida
Estamos a viver uma das crises mais longas e penosas, de total desmoronamento e tensão, e sem saída à vista, o que nos deixa pouco espaço para podermos ser pessoas inteiras. (…) toda a Europa vai ter que alterar o seu atual sistema estrutural e de funcionamento, que não se sabe como será, e quanto tempo irá demorar
Talvez por tudo isso, senti que era altura de atuar, desviando a minha atenção para a arte, através da minha última obsessão, a da crise, a última que tenho vivido - e assim poder observá-la de uma maneira mais distanciada
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