Oração à Sagrada Família
Jesus, Maria e José,
em Vós contemplamos
o esplendor do verdadeiro amor,
a Vós, com confiança, nos dirigimos.
Santa Família de Nazaré,
tornai também as nossas famílias
espaços de comunhão e cenáculos de oração,
autênticas escolas do Evangelho
e pequenas Igrejas domésticas.
Santa Família de Nazaré,
que nunca mais nas famílias se faça experiência
de violência, egoísmo e divisão:
quem ficou ferido ou escandalizado
depressa conheça consolação e cura.
Santa Família de Nazaré,
que o próximo Sínodo dos Bispos
possa despertar, em todos, a consciência
do caráter sagrado e inviolável da família,
a sua beleza no projeto de Deus.
Jesus, Maria e José,
escutai, atendei a nossa súplica.
Amém.
Papa Francisco, 28.12.2013
Praça de S. Pedro, 28.12.2013. Foto: EFE/EPA/FABIO FRUSTACI
Oração do Papa Francisco a Maria Imaculada
Virgem Santa e Imaculada,
a Ti, que és a honra do nosso povo
e a solícita guardadora da nossa cidade,
nos dirigimos com confiança e amor.
Tu és a Toda Bela, ó Maria!
Em Ti não há pecado.
Suscita em todos nós um renovado desejo de santidade:
na nossa palavra resplandeça o esplendor da verdade,
nas nossas obras ressoe o canto da caridade,
no nosso corpo e no nosso coração habitem pureza e castidade,
na nossa vida torne-se presente toda a beleza do Evangelho.
Tu és a Toda Bela, ó Maria!
A Palavra de Deus em Ti se fez carne.
Ajuda-nos a permanecer na escuta atenta da voz do Senhor:
o grito dos pobres nunca nos deixe indiferentes,
o sofrimento dos doentes e de quem passa por necessidade não nos encontre distraídos,
a solidão dos idosos e a fragilidade das crianças nos comovam,
toda a vida humana seja por todos nós sempre amada e venerada.
Tu és a Toda Bela, ó Maria!
Em Ti está a alegria plena da vida feliz com Deus.
Faz com que não percamos o significado do nosso caminho terreno:
a gentil luz da fé ilumine os nossos dias,
a força consoladora da esperança oriente os nossos passos,
o calor contagioso do amor anime o nosso coração,
os olhos de todos nós permaneçam bem fixos em Deus, onde está a verdadeira alegria.
Tu és a Toda Bela, ó Maria!
Escuta a nossa oração, acolhe a nossa súplica:
seja em nós a beleza do amor misericordioso de Deus em Jesus,
seja esta divina beleza a salvar-nos, a nossa cidade, o mundo inteiro.
Papa Francisco
Oração à imagem de Maria Imaculada
Roma, 8.12.2013
Foto: REUTERS/Tony Gentile
Que diremos nós ao Anjo do Advento?
Que o Teu Anjo Senhor
possa testemunhar como trazemos cravada
a necessidade da Tua mão,
a absoluta necessidade de sentir a Tua mão funda,
capaz de nos acolher tal qual somos
tal qual nos encontramos;
Que o Teu Anjo relate este desejo que temos
de sentir o roçar, mesmo que leve,
da Tua imensidão
no precipitado, no precário, no incerto
das nossas quotidianas rotas;
Que o Teu Anjo descreva o que viu em nós:
a fome e o desejo
o labor e a imperfeição
o silêncio e a prece com que dizemos
com que Te dizemos:
Vem!
Texto: José Tolentino Mendonça
Imagem: Rui Aleixo
Luís Miguel Cintra lê a Carta de S. Paulo a Filémon (23.º Domingo do Tempo Comum)
Irmã Tsegué-Maryam Gebru (Adis Abeba, 1923)
Sobre a morte de Maria
I
O mesmo grande Anjo que outrora
lhe trouxera a mensagem da conceção,
ali estava, aguardando a sua atenção,
e disse: o tempo do teu aparecimento é agora.
E ela perturbou-se como antes e mostrou
ser de novo a serva, assentindo profundamente.
Mas ele irradiava e, aproximando-se infinitamente,
desapareceu como que no rosto dela e mandou
aos Apóstolos que se tinham afastado
que se juntassem na casa da encosta,
a casa da Ceia derradeira. Eles vieram a passo pesado
e entraram cheios de temor: ali se encontrava posta
sobre estreito leito, aquela que tinha mergulhado
misteriosamente no declínio e na eleição,
imaculada, como criatura de indiviso coração,
escutando o coro angelical com ar maravilhado.
Então, quando os viu atrás das suas velas,
expectantes, arrancou-se ao excesso de harmonia
das vozes e ofereceu-lhes ainda as duas vestes belas,
de todo o coração, as únicas que possuía,
e ergueu a sua face para este aqui e aquele além...
(Ó fonte de inomináveis lágrimas em caudais!)
Mas ela reclinou-se nos seus requebros finais
e atraiu os céus para tão perto de Jerusalém
que a sua alma, ao escapar,
apenas teve de um pouco se elevar:
e já a levava Aquele que tudo dela sabia
para a Natureza divina a que ela pertencia.
II
Quem poderia pensar que até à sua chegada
o vasto Céu imperfeito era?
O Ressuscitado ocupara a sua morada,
porém a seu lado, havia vinte e quatro anos, estivera
um trono vazio. E todos já começavam
a habituar-se à pura ausência
que estava como que fechada, pois a ofuscavam
os raios de luz do Filho em permanência.
E assim ela também, ao entrar no Céu naquele dia,
não se dirigiu a Ele, por muito que o desejasse;
ali não havia ligar, só Ele lá se encontrava e resplandecia
numa claridade que a ela lhe doía.
Porém, como agora essa figura comovente
aos bem-aventurados se juntasse
e discretamente, luz na luz, um lugar viesse ocupar,
expandu-se então do seu ser um brilho incandescente
de tal intensidade que o Anjo que ela estava a iluminar
gritou, ofuscado: quem é esta?
Houve um silêncio de espanto. Depois todos viram em festa
Deus Pai nas alturas Nosso Senhor deter
de modo a, envolto na luz do amanhecer,
o lugar vazio, como um pouco de compunção,
se mostrar, uma réstia de solidão
como algo que ainda suportava, um nada
de tempo terreno, uma cicatriz sarada.
Olharam para ela: o seu olhar com receio aí pousou,
profundamente inclinado, como se sentisse: eu sou
a sua dor mais longa; e, de súbito, caiu para diante.
Mas os Anjos consigo a tomaram
e a apoiaram e cantaram de felicidade exultante
e a elevaram e no lugar cimeiro a colocaram.
III
Porém, diante do Apóstolo Tomé, chegado
já demasiado tarde, apareceu
o rápido Anjo, há muito para tal compenetrado,
e junto ao lugar da sepultura a ordem deu:
afasta a pedra para o lado. Queres saber
onde está aquela que comove o teu coração?
Vê: como almofada de alfazema, a jazer
se encontrou ali, em breve posição,
para que a Terra tivesse o seu odor
nas dobras, como um pano raro.
Tudo o que está morto (tu o sentes), toda a dor
Estão envoltos no seu aroma claro.
Olha para a mortalha: onde está a brancura
que a torne mais deslumbrante, sem a alterar?
A luz que emana desta morta pura
mais a iluminou do que a luz solar.
Não te admiras de quão suavemente lhe escapou?
Quase como se ela ainda aí estivesse, nada saiu do lugar.
Porém todo o Céu nas alturas se agitou:
Homem, ajoelha-te, segue-me com o olhar e começa a cantar.
Rainer Maria Rilke
In A Vida de Maria, ed. Portugália
Trad.: Maria Teresa Dias Furtado
«Vivo sem viver em mim, / E tão alta vida espero, / Que morro por não morrer.»: Santa Teresa de Jesus por Cleia Almeida
«Foi um tempo branco»: poesia de Daniel Faria, por Carminho
Evocação de Bernardo Sassetti, no dia do seu aniversário (24.6.1970)
Alfredo Teixeira
O Rei
O Rei, cuja coroa de oiro é luz
Fita do alto do throno os seus mesquinhos.
Ao meu Rei coroaram-O de espinhos
E por throno Lhe deram uma cruz.
O olhar fito do Rei a si conduz
Os olhares fitados e visinhos
Mas mais me fitam, e mortas sem carinhos,
As palpebras descidas de Jesus.
O Rei falla, e um seu gesto tudo prende,
O som da sua voz tudo transmuda.
E a sua viva majestade esplende;
Meu Rei morto tem mais que majestade:
Falla a Verdade nessa bocca muda;
Suas mãos presas são a Liberdade.
Fernando Pessoa
31.7.1935
[Mãe de Deus]
Mãe de Deus, porque tu a Deus creaste,
Filha de Deus, pois Elle te creou,
Irmã de Deus, pois Elle te enviou,
Sposa de Deus, pois virgem tu ficaste,
Eterna, transcendente e fragil haste
Que abre ao alto em Mulher, na que baixou
Á terra, a dar á Eva que peccou
A seiva do carinho que lhe achaste.
És tu que dás ás mães o - afago
És tu -
Tu és a alma da Mulher -
E se o que penso é com amor affim,
E em minha inspiração sinto o teu beijo,
Mãe, mãe de Deus, mãe do Divino em mim.
Fernando Pessoa
Sonetos inéditos até 2000
Edição: Jerónimo Pizarro, Carlos Pittella-Leite
In Granta (Portugal), n. 1
Passam hoje 100 anos sobre a estreia de uma criação musical de Igor Stravinsky, Le Sacre du Printemps [A Sagração da Primavera], obra seminal, certamente um dos marcos singulares na biblioteca musical do Ocidente. Neste vídeo é apresentada uma reconstituição da coreografia original de Vaslav Nijinsky. Foi no dia 29 de maio de 1913, numa produção de Sergei Diaghilev para a companhia Ballets Russes.
Texto e seleção vídeo: Alfredo Teixeira
até cada objecto se encher de luz e ser apanhado
por todos os lados hábeis, e ser ímpar,
ser escolhido,
e lampejando do ar à volta,
na ordem do mundo aquela fracção real dos dedos juntos
como para escrever cada palavra:
pegar ao alto numa coisa em estado de milagre: seja:
um copo de água,
tudo pronto para que a luz estremeça:
o terror da beleza, isso, o terror da beleza delicadíssima
tão súbito e implacável na vida administrativa
Herberto Helder
In Servidões, ed. Assírio & Alvim
João Villaret nasceu há 100 anos: "Isto", de Fernando Pessoa
«A paz sem vencedores e sem vencidos», de Sophia de Mello Breyner, por Maria Barroso, na Capela do Rato
Glosa sobre o vinho
Vinho cor do dia,
Vinho cor da noite.
O vinho faz mover a primavera,
E cresce como uma planta da alegria.
Vinho da vida, tu és também
Amizade entre os seres,
Transparência, abundância de flores.
Que o bebam, que o recordem
Em cada gota dourada
Ou taça de topázio,
Que o outono trabalhou até
Encher as vasilhas de vinho,
E que o homem obreiro aprenda
A recordar a terra e os seus deveres,
A propagar o cântico fruto!
Glosa sobre o pão
Pão como tu és simples e profundo
Conjunção de gérmen e de fogo
Tu és a ação do homem
Milagre repetido, vontade da vida.
Semearemos de trigo
A terra e os planetas,
O pão de cada boca, de cada homem.
O pão, o pão para todos os povos,
Tudo o que tem forma e gosto de pão:
A terra, a beleza e o amor.
Tudo nasceu para ser partilhado,
Para ser dado,
Para se multiplicar...
A vida terá também a forma de pão,
Será simples e profunda,
Inumerável e pura.
Todos os seres terão direito
À terra e à vida,
E assim será o pão de amanhã,
O pão de cada boca, sagrado, consagrado,
Porque será o produto da mais longa
E da mais dura luta humana.
Fr. José Augusto Mourão, OP
Francisco e Bento XVI: o vídeo do abraço e da oração comum, num encontro para a História
São Francisco de Assis
Poeta do Redentor
Poeta do Criador
Procuraste
A inocência primeira que a Redenção reergue
Amaste o Criador não apenas em sua Transfiguração e Palavra
Mas também no temporal jardim das coisas criadas
Saudaste o emergir e a frescura do visível
O teu poema celebra o inaugural
Para lá da morte da lacuna da perca e do desastre
O teu poema saúda a verdade primeira de toda a criatura
A inteireza do dia inicial
E o mar se vê em seu primeiro espelho
Sophia de Mello Breyner Andresen
O sorriso do papa Francisco
A personalidade de Jorge Mario Bergoglio na saudação aos cardeais a 15 de março, um dia depois de ser eleito papa.
Felizes os pobres (Beati voi poveri)
Felizes os pobres, porque deles é o Reino de Deus
Felizes os pobres em espírito, deles é o Reino do Céu.
Felizes os que choram, porque serão consolados.
Felizes os mansos, porque possuirão a terra.
Felizes os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados.
Felizes os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia.
Felizes os puros de coração, porque verão a Deus.
Felizes os pacificadores: serão chamados filhos de Deus.
Felizes os que são perseguidos por causa da justiça, porque deles é o Reino do Céu.
Música e interpretação: Comunidade ecuménica de Taizé
Tem um coração e serás salvo
John Wolf
- Quem apenas quer a meta não viaja.
Peter
- Eu sou apenas um estranho à beira de um bosque.
John Wolf
- Um dia os homens deixarão os aviões, os transatlânticos, os comboios de alta velocidade, os automóveis para regressar aos caminhos do bosque.
Peter
- E que oferecem aos homens esses caminhos? Por alguma razão foram abandonados.
John Wolf
- Preferimos o sacrifício mais absurdo. O progresso técnico, e só técnico... cada vez mais sofisticado. Mas em relação aos caminhos interiores não é assim. Tem um coração e serás salvo.
Peter
- Mas isso é o passado. Saímos dos bosques há milhares de anos. Donde virá o novo?
John Wolf
- O mundo ficou sombrio e severo.
Jacob
- As tuas palavras assustam-me.
John Wolf
- O falcão deixou de contar conosco para que o ensinemos a voar.
Peter
- Enigmas e mais enigmas.
John Wolf
- Não tens de escutar. Tens de te escutar.
Peter
- Mas pode um homem escutar a sua escuridão?
John Wolf
- Tudo é caminho.
Jacob
- Por isso viemos até ao bosque, para que nos conduzas.
José Tolentino Mendonça
In O Estado do Bosque
B Fachada é um dos cantautores da presente geração. Não falta quem o encoste já à linhagem dos José Afonso, José Mário Branco, Sérgio Godinho, Jorge Palma e por aí fora. Com menos de 30 anos, produziu 12 reluzentes caixas de música que desarrumaram a música portuguesa e a infestaram de talento, ironia e más maneiras. (...) Porém, no final do ano de 2012 (...) o músico anuncia que se despede para uma estação de silêncio. (...) Fiquei a pensar na escolha de B Fachada, no que é essa necessidade de parar para a qual a vida, num momento ou noutro nos encaminha; nos fins que nos temos de impor se quisermos crescer, mesmo quando os ventos correm de feição; na urgência fundamental que representa escutar-se a si mesmo, perfurando camadas de distração e automatismo. Diria isto: por vezes o que nos aproxima da autenticidade é o continuar, por vezes é o parar. E só o saberemos no exercício paciente e inacabado da escuta. Mas esta audição a nós próprios não se faz sem coragem e sem esvaziamento. Não podemos estar à espera de condições ideais. (...) Falta-nos uma nova gramática que concilie os termos que a nossa cultura tem por inconciliáveis: razão e sensibilidade, eficácia e afetos, individualidade e compromisso social, gestão e compaixão... (...)
José Tolentino Mendonça
Expresso, 19.1.2013
Nas torres, olhando os astros,
que viajam pelos céus,
os Reis Magos viram rastros
do avatar de um grande Deus.
Leram em livros profundos,
que a Caldeia e a Assíria têm,
que estava a descer dos mundos
um deus a Jerusalém.
Cheios de assombro, à janela,
mudos ficam os seus lábios!
De pé olhando uma estrela,
velam noites os reis sábios.
Não querem mais alimento,
nem com rainhas dormir.
Não tomam ao trono assento!
Não mais volvem a sorrir!
Somente olham, sem cessar,
a branca estrela brilhante,
como o ceptro dominante
do rei que vai a reinar.
Abraçam a esposa amada.
Dão as chaves aos herdeiros.
Mandam vir seus escudeiros,
os seus bordões de jornada.
Despejam os seus erários,
cheios de alvoroço imenso.
Carregam seus dromedários,
d’ouro, de mirra, de incenso.
Passam rios e cidades
cheias de estátuas guerreiras,
palácios, campos, herdades,
cisternas sob as palmeiras.
Seguem a luz do astro belo,
que as estradas lhes clareia,
até chegar ao castelo
do rei que reina em Judeia.
Chegados ao rei cruel,
que de Herodes nome tem,
bradam: «O Rei de Israel
nasceu em Jerusalém?...»
Fica assombrado o Tetrarca.
Diz-lhes tal nova ignorar.
- «Mas, em nome da Santa Arca!
voltai, reis, ao meu solar!»
Seus olhos ficam sombrios:
vê perdido o seu tesouro,
soldados, terras, navios,
da Judeia o ceptro de ouro!
Tomam os reis seus bordões.
Levantam as suas tendas
Carregam suas of’rendas.
Demandam novas regiões.
Passam rios e cidades
cheias de estátuas guerreiras,
palácios, campos herdades,
cisternas sob as palmeiras.
Passam colinas, rebanhos,
campos de louras searas,
quando a luz faz desenhos
no chão das estradas claras.
Passam o quente areal,
que a palmeira não conforta.
Eis que a estrela pára à porta
de um decrépito curral.
Descem dos seus dromedários,
cheios de pó, os reis sábios.
Descarregam seus erários.
- Mas estão mudos seus lábios.
Rojam as barbas nevadas
sobre o deus que adormecera
com as mãozinhas rosadas
da Mãe nos seios de cera.
Seus olhos sentem assombros,
e nadam cheios de choro.
- Rasgam seus mantos dos ombros.
- Dão lhe mirra, incenso e ouro.
Esquecem sua nação,
mais seus carros de batalha.
- Seus ceptros rolam na palha!
- seus diademas no chão!
E erguendo os seus olhos graves,
perguntam então – olhando
as pombas voando, em bando,
os aldeões, mais as aves:
«É este o rei dos senhores?
Tábua da Lei das rainhas?
Por archeiros – tem pastores.
Por pajens – as andorinhas.»
Gomes Leal
in História de Jesus, ed. Assírio & Alvim
Eu caminhei na noite
E entre o silêncio e frio
Só uma estrela secreta me guiava.
Grandes perigos na noite me apareceram:
Da minha estrela julguei que eu a julgara
Verdadeira sendo ela só reflexo
Duma cidade a néon enfeitada.
A minha solidão me pareceu coroa.
Sinal de perfeição em minha fronte.
Mas vi quando no vento me humilhava
Que a coroa que eu levava era dum ferro
Tão pesado, que toda me dobrava.
Do frio das montanhas eu pensei:
“Minha pureza me cerca e me rodeia”.
Porém meu pensamento apodreceu
E a pureza as coisas cintilava
E eu vi que a limpidez não era eu.
E a fraqueza da carne e a miragem do espírito
Em monstruosa voz se transformaram:
Pedi ás pedras do monte que falassem
Mas elas como pedras se calaram.
Sozinha me vi, delirante e perdida.
E eu caminhei na noite; minha sombra
De gestos desmedidos me cercava
Silêncio e medo
Nos confins dos desertos caminhavam:
Então vi chegar ao meu encontro
Aqueles que uma estrela iluminava
E assim me disseram: “Vem connosco
Se também vens seguindo aquela estrela”.
Então soube que a estrela me seguia.
Era real e não imaginada.
Grandes e humanas miragens nos mostraram
Em direcções distantes nos chamaram
E a sombra dos três homens sobre a terra
Ao lado dos meus passos caminhava.
E eu espantada vi que aquela estrela
Para cidade dos homens nos guiava.
E a estrela do céu parou em cima
duma rua sem cor e sem beleza
Onde a luz tinha o mesmo tom que a cinza
Longe do verde-azul da Natureza.
Ali não vi as coisas que eu amava
Nem o brilho do sol nem o da água.
Ao lado do hospital e da prisão
Entre o agiota e o templo profanado
Onde a rua é mais negra e mais sem luz
E onde tudo parece abandonado
Um lugar pela estrela foi marcado.
Nesse lugar pensei: Quando deserto
Atravessei para encontrar aquilo
Que morava entre os homens tão perto.
«No meio de vós está Alguém que vós não conheceis» (Evangelho do III Domingo do Advento)
Nós todos, todos nós precisamos de Ti, só de Ti e de ninguém mais.
Só Tu que nos amas, só Tu podes ter, para nós que sofremos, a compaixão que nós por nós próprios sentimos.
Só Tu podes saber como é grande, imensamente grande, a necessidade de Ti neste mundo, neste momento do mundo.
Ninguém mais, ninguém entre os que vivem, ninguém entre os que dormem já no sono da glória, ninguém nos pode dar a nós, que de tudo precisamos, a nós, mergulhados nesta penumbra atroz, nesta miséria de alma que é de todas a mais horrível, ninguém nos pode dar o alimento que salva.
Todos nós precisamos de Ti, mesmo os que Te ignoram; muito mais os que Te ignoram que os que Te conhecem.
O que tem fome pensa que tem fome de pão, e tem fome de Ti; o que tem sede pensa ter sede de água, e tem sede de Ti; o que está doente pensa desejar a saúde, e o seu mal vem da Tua ausência.
E todos os que neste mundo procuram a beleza, sem o saber, é a Ti que procuram, a Ti que és a inteira e perfeita beleza;
e todos os que neste mundo tentam alcançar a verdade é a Ti que tentam alcançar, a Ti que és a única verdade digna de ser conhecida;
e os que tendem com todo o seu coração para a paz, é para Ti que tendem, para Ti que és a única paz que repousa os corações.
Giovanni Papini
Ave, generosa, gloriosa e intacta virgem.
Tu pupila de castidade,
tu matéria santa,
que agradou a Deus.
Pois celeste graça
em ti foi infusa,
o Verbo celeste
fez-se carne em ti.
Tu cândido lírio,
que Deus mais que qualquer criatura
contemplou.
Ó belíssima e cheia de doçura,
quanto em ti Deus se deleitava,
quando te possuía
na amplidão do seu calor,
seu filho seria amamentado por ti.
Teu ventre provou grande alegria,
quando toda a sinfonia celeste
de ti ressoou,
pois, ó Virgem, transportaste o Filho de Deus,
enquanto em Deus tua castidade resplandecia.
Tuas vísceras provaram a alegria,
erva sobre a qual cai o orvalho,
e se lhe reaviva o vigor.
Assim também em ti se operou,
ó Mãe de toda a alegria.
Agora toda a Igreja esplenda de alegria
e cante em sinfonia
pela dulcíssima e louvável Virgem
Maria, Mãe de Deus. Amen.
Santa Hildegarda de Bingen
A Graça de Ser
Oração: P. José Tolentino Mendonça
Vídeo: Colégio Pedro Arrupe (Lisboa)
Hino do Átrio dos Gentios (Guimarães e Braga, 16-17.11.2012)
Coração, átrio do mundo
onde cada abraço espera
a surpresa do encontro
sintonia da viagem
com a cor da primavera
no calor das nossas mãos.
Os crentes e os não crentes
partilham o caminho
e encontram de mãos dadas
os sonhos e as sementes
as dores e as alvoradas
o amor, o pão e o vinho.
Se eu não tiver amor
sou bronze que ressoa.
Por muito que eu conheça,
por muita fé que eu tenha,
se eu não tiver amor,
até que o amor me doa.
Não há judeu nem grego,
não há escravo nem livre,
nem homem nem mulher.
O amor é a nossa paz.
De dois povos faz um
Quando a gente quiser.
Agora é confuso.
E como num espelho
Da nossa imperfeição.
Depois, então, veremos,
em mais perfeito amor,
face a face o nosso irmão.
Hino do Átrio dos Gentios (Portugal)
Coração, átrio do mundo
onde cada abraço espera
a surpresa do encontro
sintonia da viagem
com a cor da primavera
no calor das nossas mãos.
Os crentes e os não crentes
partilham o caminho
e encontram de mãos dadas
os sonhos e as sementes
as dores e as alvoradas
o amor, o pão e o vinho.
Se eu não tiver amor
sou bronze que ressoa.
Por muito que eu conheça,
por muita fé que eu tenha,
se eu não tiver amor,
até que o amor me doa.
Não há judeu nem grego,
não há escravo nem livre,
nem homem nem mulher.
O amor é a nossa paz.
De dois povos faz um
Quando a gente quiser.
Agora é confuso.
E como num espelho
Da nossa imperfeição.
Depois, então, veremos,
em mais perfeito amor,
face a face o nosso irmão.
Portugal precisa de uma renovação cultural
A superação da crise supõe uma renovação cultural. A Igreja quer contribuir para esta renovação com os valores que lhe são próprios: a dignidade da pessoa humana, a solidariedade como vitória sobre os diversos egoísmos, a equidade nas soluções e na distribuição dos sacrifícios, atendendo aos mais desfavorecidos, a verdade nas afirmações e análises, a coragem para aceitar que momentos difíceis podem ser a semente de novas etapas de convivência e de sentido coletivo da vida.
Conselho Permanente da Conferência Episcopal Portuguesa, 17.9.2012
It's time to be clear
Os que falam de mim dizem que sou pobre
Existo à maneira de uma árvore
Tenho diante e atrás de mim a noite eterna
Vacilo, duvido, resvalo
E sei: a maior parte das vezes o amor nasce do erro
transcreve-se a azul ou a negro
sobre passagens, casas inacabadas, alturas remotas
Observá-lo apenas serve
Para tornar contundente a sua forma nunca exactamente igual
A sua incrível velocidade destacada no meio do nada
enquanto a noite se desmorona
sempre mais bela
José Tolentino Mendonça
In Estação central
A Pietà da Catedral de Bragança
Carregas a nossa humanidade até ao fundo do teu colo
As cidades íngremes por onde passamos, as sirenes empastadas de alarme,
O peso do corpo anoitecido
Não há árvore do horto de Deus que ao alto mais pura se eleve
Mas é doloroso trabalho o do amor em que inteira brilhas
Ó Mãe indefesa como um fogo
Passas por nós devagar as mãos protetoras
E o tempo desse amor transparente e íntimo
torna brandas as tempestades em que nos consumámos
Chovemos no teu regaço a nudez dos nossos sonhos
tatuados a cinza trémula e a vazio
Mas degrau a degrau, cambaleantes subimos
Quando inclinas para nós o manto, espaço da visão aberta
Consola-nos o abraço do teu silêncio em flor
E a canção do teu sorriso nos reergue
O milagre se faz ver no fruto do teu ventre
Em ti começa a palavra prometida e plena
Por isso festejamos a roda do teu colo
José Tolentino Mendonça
Poema lido na bênção da Pietà de José Rodrigues, catedral de Bragança, 22.08.2012
Para saber mais: Catedral de Bragança recebe "Pietà" de José Rodrigues e poema inédito de Tolentino Mendonça
Completam-se hoje 25 anos sobre a morte do poeta brasileiro Carlos Drummond de Andrade (1902-1987). «Acho que a literatura, tal como as artes plásticas e a música, é uma das grandes consolações da vida, e um dos modos de elevação do ser humano sobre a precariedade da sua condição». Três poemas.
Procura da poesia
Não faças versos sobre acontecimentos.
Não há criação nem morte perante a poesia.
Diante dela, a vida é um sol estático,
não aquece nem ilumina.
As afinidades, os aniversários, os incidentes pessoais não contam.
Não faças poesia com o corpo,
esse excelente, completo e confortável corpo, tão infenso à efusão lírica.
Tua gota de bile, tua careta de gozo ou de dor no escuro
são indiferentes.
Nem me reveles teus sentimentos,
que se prevalecem do equívoco e tentam a longa viagem.
O que pensas e sentes, isso ainda não é poesia.
Não cantes tua cidade, deixa-a em paz.
O canto não é o movimento das máquinas nem o segredo das casas.
Não é música ouvida de passagem: rumor do mar nas ruas junto à linha de espuma.
O canto não é a natureza
nem os homens em sociedade.
Para ele, chuva e noite, fadiga e esperança nada significam.
A poesia (não tires poesia das coisas)
elide sujeito e objeto.
Não dramatizes, não invoques,
não indagues. Não percas tempo em mentir.
Não te aborreças.
Teu iate de marfim, teu sapato de diamante,
vossas mazurcas e abusões, vossos esqueletos de família
desaparecem na curva do tempo, é algo imprestável.
Não recomponhas
tua sepultada e merencória infância.
Não osciles entre o espelho e a
memória em dissipação.
Que se dissipou, não era poesia.
Que se partiu, cristal não era.
Penetra surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
Estão paralisados, mas não há desespero,
há calma e frescura na superfície intata.
Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.
Convive com teus poemas, antes de escrevê-los.
Tem paciência, se obscuros. Calma, se te provocam.
Espera que cada um se realize e consuma
com seu poder de palavra
e seu poder de silêncio.
Não forces o poema a desprender-se do limbo.
Não colhas no chão o poema que se perdeu.
Não adules o poema. Aceita-o
como ele aceitará sua forma definitiva e concentrada
no espaço.
Chega mais perto e contempla as palavras.
Cada uma
tem mil faces secretas sobre a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta
pobre ou terrível, que lhe deres:
Trouxeste a chave?
Repara:
ermas de melodia e conceito,
elas se refugiaram na noite, as palavras.
Ainda úmidas e impregnadas de sono,
rolam num rio difícil e se transformam em desprezo.
Conversa informal com o Menino
Menino, peço-te a graça
de não faze mais poema
de Natal.
Um dois ou três, inda passa.
Industrializar o tema,
eis o mal.
Como posso, pergunto, o ano
inteiro, viver sem Cristo
(por sinal,
na santa paz do gusano)
e agora embalar-te: isto
é Natal?
Os outros fazem? Paciência,
todos precisam de vale.
Afinal,
em sua reta inocência,
diz-me o burro que me cale,
natural.
E o boi me segreda: Acaso
careço de alexandrino
ou jornal
para celebrar o caso
humano quanto divino,
hem, jogral?
Perdoa, Infante, a vaidade,
a fraqueza, o mau costume
tão geral:
fazer da Natividade
um pretexto, não um lume
celestial.
Por isso andou bem o velho
do Cosme Velho, indagando,
marginal,
no seu soneto-cimélio,
o que mudou, como, quando,
no Natal.
Mudei, piorei? Reconheço
que não penetro o mistério
sem igual.
Não sei, Natal, o teu preço,
e te contemplo, cimério,
a-pascal.
Vou de novo para a escola,
vou, pequenino, anular-me,
grão de sal
que se adoça ao som da viola,
a ver se desperto um carme
bem natal.
Não será canto rimado,
verso concretista, branco
ou labial;
antes mudo, leve, agrado
de vento em flor no barranco,
diagonal.
Não venho à tua lapinha
pedir lua, amor ou prenda
material.
Nem trago qualquer coisinha
de ouro subtraído à renda
nacional.
Nossa conversa, Menino,
será toda silenciosa,
informal.
Não se toca no destino
e em duros trechos de prosa
lacrimal.
Não vou queixar-me da vida
ou falar (mal) do governo
brasilial.
Nem cicatrizar ferida
resultante do meu ser-no-
mundo atual.
Deixa-me estar longamente
junto ao berço, num enleio
colegial.
(Aquele que é menos crente,
um anjo leva a passeio:
é Natal.)
Prosterno-me, e teu sorriso
sugere, menino astuto
e cordial:
Careço de ter mais siso
e vislumbrar o Absoluto
neste umbral.
Sim, pouco enxergo. Releva
ao que lhe falta a poesia,
e por al.
Gravura em branco, na treva:
a treva se aclara em dia
de Natal.
Visões
O Apóstolo São João foi realmente
um poeta extraordinário como igual
não houve depois –
nem Dante
nem Blake
nem Lautréamont.
Teve todas as visões antes da gente.
Viu as coisas que são e as que serão
no mais futuro dos tempos, e que resta
a prever, a como –ver, aos repetentes míopes
que somos e não vemos o Dragão
e nem mesmo o besouro?
Viu animais cheios de olhos em volta e por dentro,
glorificando Alguém no trono, semelhante
ao jaspe e à sardônica.
Viu a mulher, sentada na besta escarlate
de sete cabeças e dez chifres
e na fronte da mulher leu a inscrição: Mistério.
Viu o Nome que ninguém conhece
nem saberia inventar, pois se inventou a si mesmo.
Os surrealistas não puderam com ele.
Viu a chave do abismo
que Mallarmé não logrou levar no bolso.
Viu tudo.
Viu principalmente o supertrágico, a explosão nuclear, e nisto me afasto dele
Não, não gostaria de predizer o fim do mundo,
como sete taças de ouro repletas da ira de Deus
despejando-se sobre a Terra.
Quero ver o mundo começar
a cada 1.º de janeiro
como o jardim começa no areal
pela imaginação do jardineiro.
Desculpe, São João, se meu Apocalipse
é revelação de coisa simples
na linha do possível.
Anuncio uma lâmpada, não Setembro(e nenhuma trombeta)
a clarear o rosto amante:
são dois rostos que, se contemplando,
um no outro se vêem transmutados.
Pressinto uma alegria
miudinha, trivial, embelezando
em plena via pública o passante
mais feio, mais deserto
de bens interiores.
Profetizo manhãs para os que saiba,
haurir o mel, a flor, a cor do céu.
O mar darei a todos, de presente,
junto à praia, e o crepúsculo sinfônico
pulsando sobre os montes. Um vestido
estival, clarocarne, passará,
passarino, aqui, ali, e quantos ritmos
um pisar de mulher irá criando
na pauta de teu dia, meu irmão.
Oráculo paroquial, a meus amigos
e aos amigos de outros ofereço
o doce instante, a trégua entre cuidados,
um brincar de meninos na varanda
que abre para alvíssimos lugares
onde tudo que existe, existe em paz.
E mais não vejo, e calo, que as pequenas
coisas são indizíveis se fruídas
no intenso sentimento de uma vida
(são 20 ou 70 anos?)
limitada e perene em seu minuto
de raiz, de folha dançarina e fruto.
Carlos Drummond de Andrade
Oração pelas férias
Dá-nos, Senhor,
depois de todas as fadigas
um tempo verdadeiro de paz.
Dá-nos,
depois de tantas palavras
o dom do silêncio
que purifica e recria.
Dá-nos,
depois das insatisfações que travam
a alegria como um barco nítido.
Dá-nos,
a possibilidade de viver sem pressa,
deslumbrados com a surpresa
que os dias trazem pela mão.
Dá-nos
a capacidade de viver de olhos abertos,
de viver intensamente.
Dá-nos
de novo a graça do canto,
do assobio que imita
a felicidade aérea
dos pássaros,
das imagens reencontradas,
do riso partilhado.
Dá-nos
a força de impedir que a dura necessidade
esmague em nós o desejo
e a espuma branca dos sonhos
se dissipe.
Faz-nos
peregrinos que no visível
escutam a melodia secreta
do invisível.
José Tolentino Mendonça
Balada dos Aflitos
Irmãos humanos tão desamparados
a luz que nos guiava já não guia
somos pessoas – dizeis – e não mercados
este por certo não é tempo de poesia
gostaria de vos dar outros recados
com pão e vinho e menos mais-valia.
Irmãos meus que passais um mau bocado
e não tendes sequer a fantasia
de sonhar outro tempo a outro lado
como António digo adeus a Alexandria
desconcerto do mundo tão mudado
tão diferente daquilo que se queria.
Talvez Deus esteja a ser crucificado
neste reino onde tudo se avalia
irmãos meus sem valor acrescentado
rogai por nós Senhora da Agonia
irmãos meus a quem tudo é recusado
talvez o poema traga um novo dia.
Rogai por nós Senhora dos Aflitos
em cada dia em terra naufragados
mão invisível nos tem aqui proscritos
em nós mesmos perdido e cercados
venham por nós os versos nunca escritos
irmãos humanos que não sois mercados.
Manuel Alegre
Nada está escrito, ed. Dom Quixote
Manoel de Oliveira: O Pintor e a Cidade (1956)
Documentário sobre a cidade do Porto através das aguarelas de António Cruz. Música do padre Luis Rodrigues.
Quem está cheio do Espírito Santo fala várias línguas. As várias línguas são os vários testemunhos sobre Cristo, como a humildade, a pobreza, a paciência e a obediência; falamo-las, quando mostramos aos outros estas virtudes na nossa vida. A linguagem é viva, quando falam as obras. Cessem, portanto, as palavras e falem as obras. De palavras estamos cheios, mas de obras vazios; por este motivo nos amaldiçoa o Senhor, como amaldiçoou a figueira em que não encontrou fruto, mas somente folhas. Diz São Gregório: «Há uma norma para o pregador: que faça aquilo que prega». Em vão pregará os ensinamentos da lei, se destrói a doutrina com as obras.
Santo António
O Portugal Futuro
O portugal futuro é um país
aonde o puro pássaro é possível
e sobre o leito negro do asfalto da estrada
as profundas crianças desenharão a giz
esse peixe da infância que vem na enxurrada
e me parece que se chama sável
Mas desenhem elas o que desenharem
é essa a forma do meu país
e chamem elas o que lhe chamarem
portugal será e lá serei feliz
Poderá ser pequeno como este
ter a oeste o mar e a espanha a leste
tudo nele
será novo desde os ramos à raiz
À sombra dos plátanos as crianças dançarão
e na avenida que houver à beira-mar
pode o tempo mudar será verão
Gostaria de ouvir as horas do relógio da matriz
mas isso era o passado e podia ser duro
edificar sobre ele o portugal futuro.
Ruy Belo
Ave Verum Corpus
Oração à Santíssima Trindade
Ó Trindade sobrenatural
Divina e Amável como ninguém
protetora da divina sapiência dos cristãos.
Conduz-nos para lá da luz, sim
mas também para lá da nossa ignorância
até ao mais alto cimo
das místicas Escrituras,
lá onde os mistérios simples,
absolutos e incorruptíveis da teologia,
se revelam na sombra
mais que luminosa
do silêncio.
No silêncio se aprendem os segredos desta sombra
da qual bem pouco é dizer que brilha
qual luz deslumbrante
no seio da extrema obscuridade.
Mesmo se permanece
intocável nessa perfeição que não vemos
enche dos esplendores mais belos da beleza
as inteligências que sabem fechar os olhos.
Esta é a minha oração.
Dionísio, o Areopagita (atrib.)
Algumas proposições sobre crianças
A criança está completamente imersa na infância
a criança não sabe que há de fazer da infância
a criança coincide com a infância
a criança deixa-se invadir pela infância como pelo sono
deixa cair a cabeça e voga na infância
a criança mergulha na infância como no mar
a infância é o elemento da criança como a água
é o elemento próprio do peixe
a criança não sabe que pertence à terra
a sabedoria da criança é não saber que morre
a criança morre na adolescência
Se foste criança diz-me a cor do teu país
Eu te digo que o meu era da cor do bibe
e tinha o tamanho de um pau de giz
Naquele tempo tudo acontecia pela primeira vez
Ainda hoje trago os cheiros no nariz
Senhor que a minha vida seja permitir a infância
embora nunca mais eu saiba como ela se diz.
A rua é das crianças
Ninguém sabe andar na rua como as crianças. Para elas é sempre uma novidade, é uma constante festa transpor umbrais. Sair à rua é para elas muito mais do que sair à rua. Vão com o vento. Não vão a nenhum sítio determinado, não se defendem dos olhares das outras pessoas e nem sequer, em dias escuros, a tempestade se reduz, como para a gente crescida, a um obstáculo que se opõe ao guarda-chuva. Abrem-se à aragem. Não projetam sobre as pedras, sobre as árvores, sobre as outras pessoas que passam, cuidados que não têm. Vão com a mãe à loja, mas apesar disso vão sempre muito mais longe. E nem sequer sabem que são a alegria de quem as vê passar e desaparecer.
E tudo era possível
Na minha juventude antes de ter saído
de casa de meus pais disposto a viajar
eu conhecia já o rebentar do mar
das páginas dos livros que já tinha lido.
Chegava o mês de maio, em tudo florido
o rolo das manhãs punha-se a circular
e era só ouvir o sonhador falar
da vida como se ela houvesse acontecido.
E tudo se passava numa outra vida
e havia para as coisas sempre uma saída.
Quando foi isso? Eu próprio não sei dizer.
Só sei que tinha o poder de uma criança,
entre as coisas e mim havia vizinhança
e tudo era possível era só querer...
Poemas de Ruy Belo
Apresentaram-lhe, então, umas crianças, para que lhes impusesse as mãos e orasse por elas, mas os discípulos repreenderam-nos. Jesus disse-lhes: «Deixai as crianças e não as impeçais de vir ter comigo, pois delas é o Reino do Céu.» E, depois de lhes ter imposto as mãos, prosseguiu o seu caminho. (Mateus 19, 13-15)
Como crianças recém-nascidas, ansiai pelo leite espiritual, não adulterado, para que ele vos faça crescer para a salvação, se é que já saboreastes como o Senhor é bom. (1 Pedro 2, 1)
Curta-metragem sobre a música composta por Bernardo Sassetti para o filme "Alice", de Marco Martins. A curta foi realizada por Cláudia Varejão, premiada pela Igreja Católica com o prémio Árvore da Vida no IndieLisboa 2012 pelo filme "Luz da Manhã".
A presença mais pura
Nada do mundo mais próximo
mas aqueles a quem negamos a palavra
o amor, certas enfermidades, a presença mais pura
ouve o que diz a mulher vestida de sol
quando caminha no cimo das árvores
«a que distância da língua comum deixaste
o teu coração?»
A altura desesperada do azul
no teu retrato de adolescente há centenas de anos
a extinção dos lírios no jardim municipal
o mar desta baía em ruínas ou se quiseres
os sacos do supermercado que se expandem nas gavetas
as conversas ainda surpreendenetemente escolares
soletradas em família
a fadiga da corrida domingueira pela mata
as senhas da lavandaria com um «não esquecer» fizado
o terror que temos
de certos encontros de acaso
porque deixamos de saber dos outros
coisas tão elementares
o próprio nome
Ouve o que diz a mulher vestida de sol
quando caminha no cimo das árvores
«a que distância deixaste
o coração?»
José Tolentino Mendonça
A Beleza
Intervenções de Jorge Silva Melo, João Bénard da Costa e D. José Policarpo (cardeal patriarca de Lisboa) na 3.ª sessão do ciclo "Eis o Homem", organizado pelo Departamento de Comunicação e Cultura do Patriarcado de Lisboa. Sé Patriarcal, 24 de maio de 2007.
Poema
A poesia está guardada nas palavras - é tudo que eu sei.
Meu fado é o de não saber quase tudo.
Sobre o nada eu tenho profundidades.
Não tenho conexões com a realidade.
Poderoso para mim não é aquele que descobre ouro.
Para mim poderoso é aquele que descobre as
insignificâncias (do mundo e as nossas).
Por essa pequena sentença me elogiaram de imbecil.
Fiquei emocionado e chorei.
Sou fraco para elogios.
Manoel de Barros
S. José, obtém-nos o silêncio
Quando as ferramentas são guardadas no seu lugar e o trabalho do dia termina,
Quando do Carmelo ao Jordão, Israel adormece no trigo e na noite,
Como antigamente quando ele era jovem e ficava muito escuro para ler,
José conversa com Deus com um grande suspiro.
Ele preferiu a Sabedoria e é ela que lhe é trazida para a desposar.
Ele é silencioso como a terra à hora do orvalho,
Ele está na abundância e na noite, ele está bem na alegria, ele está bem na verdade
Maria está na sua posse, e ele a rodeia de todos os lados.
Não foi num só dia que aprendeu a nunca mais estar só
Uma mulher conquistou cada parcela do seu coração agora prudente e paternal
Está de novo no Paraíso com Eva!
Este rosto de que todos os homens precisam, volta-se com amor e submissão para José.
Já não é a antiga prece e já não é a antiga espera depois de que ele sente subitamente um braço sem ódio,
o apoio deste ser profundo e inocente.
Já não é a fé nua na noite, é o amor que explica e opera.
José está com Maria e Maria está com o Pai.
E nós também, para que Deus finalmente seja permitido
Suas obras ultrapassam a nossa razão,
Para que a sua luz não se apague por outras luzes,
E as suas palavras pelo nosso ruído,
Para que cesse o homem
E para que venha o vosso reino,
E se cumpra a vossa vontade,
Para que reencontremos a origem com profundas delícias,
Para que o mar se acalme e Maria comece,
Ela que tem a melhor parte,
E que do antigo Israel abate a resistência,
José, Patriarca interior, obtém-nos o silêncio
Paul Claudel (1868-1955)
«(...) Nós, os crentes, acreditamos que temos algo a dizer ao mundo, aos outros, que a questão de Deus não é uma questão privada entre nós, de um clube que tem os seus interesses e faz o seu jogo. Pelo contrário, estamos convencidos de que o homem precisa de conhecer Deus, estamos convencidos de que em Jesus apareceu a verdade, e a verdade não é uma propriedade privada de alguém, mas deve ser partilhada, deve ser conhecida. E, por isso, estamos convencidos de que justamente neste momento da história, de crise da religiosidade, neste momento de crise inclusive das grandes culturas, é importante que não vivamos apenas no recinto das nossas aquisições e das nossas identidades, mas estejamos realmente expostos às perguntas dos outros. E com esta disponibilidade e esta franqueza, tentemos fazer compreender tudo o que a nós nos parece razoável, mais ainda, necessário ao homem.»
Card. Joseph Ratzinger (Bento XVI)
transfiguração
entremos mais dentro da espessura,
façamos uma tenda, uma pausa breve
que antecipe a Páscoa
e nos esclareça
acerca do segredo e da glória de Deus inacessível
na face do Cristo, ícone de Deus
vinde, escalemos a montanha do Senhor,
o universo inteiro foi santificado
pela luz que o resgatou da transfiguração:
hoje o Cristo foi transformado na glória do Tabor
que nos ilumine a luz do seu conhecimento
nos carreiros da vida
e nos purifique do que a sombra
em nós escureceu
que a coluna de fogo que revelou a Moisés
o Cristo transfigurado
nos purifique desta sombra e deste escuro
pratiquemos este lugar e esta hora
porque este é o tempo da ficção do rosto,
o tempo de repensar feridas
e refigurar o chão das coisas,
o seu uso e a sua banalidade
vinde, conversai com o Espírito
e a brisa ligeira vos refresque o rosto
vinde, conversai com Maria,
o paraíso místico
ela nos ensine a beleza do canto
e a beleza desta hora
Fr. José Augusto Mourão
23.2.2012
Bento XVI inicia a Quaresma de 2012
«[A liturgia de Quarta-feira de Cinzas é um] convite à penitência, à humildade, a ter presente a condição mortal, não para acabar no desespero mas para acolher, precisamente nesta nossa mortalidade, a impensável proximidade de Deus que, mais além da morte, abre passagem à ressurreição (...).» (Bento XVI, 22.2.2012)
Bento XVI recebe cinzas sobre a cabeça na missa de Quarta-feira de Cinzas (22.2.2012), primeiro dia da Quaresma, na basílica de Santa Sabina, Roma (Reuters Pictures)
Revisitação de Zeca Afonso (2.8.1929 - 23.2.1987), criador singular de canções
Bombeiros retiraram uma imagem de Nossa Senhora de Fátima e do Menino Jesus do interior do paquete Costa Concordia, que adornou junto à ilha de Giglio, Itália, a 21 de janeiro. Imagens: Reuters Pictures, Getty Images
Salve Regina
«Isto já não tem melhoras» – acabou
por nos dizer Zulmira, referindo-se
à sua perna atropelada, à vida,
ao filho que há três anos lhe mataram,
embora se chamasse Epifânio.
E ficou assim, completamente sozinha,
deusa rude e resignada que veio
dos campos servir vinhos e cervejas
a uma «freguesia» que foi, em tempos,
tão imensa como é agora a sua solidão.
Uma quase mansa solidão, se virmos bem,
uma tristeza sem lágrimas, uma sabedoria
que se volta a confundir com o azul forte das paredes,
com o seu nome último e inquebrantável,
a «passar o tempo» entre os muros deste reino.
Tem agora a mesma idade que Maria,
abre só para ti uma garrafa de ginja
e assiste calmamente ao fim do mundo.
Manuel de Freitas
Rua do Século, 79
Os gradeamentos das janelas
negam a quem as contempla da rua
qualquer sugestão de vida
a ser vivida por trás das grades.
Os caixilhos em ferro forjado
sugerem locutórios de um convento
da mais ascética austeridade,
como se o espaço (cujo acesso
as grades peremptoriamente vedam)
fosse votado por inteiro a extremos
exacerbados de misticismo e penitência.
Mas também se pressentem salões escuros,
Onde paira sempre o cheiro fresco a encerado,
ou a perfume de rosas e noz-moscada;
paredes revestidas de damasco,
cobertas de grandes telas,
Paisagens campestres e naturezas mortas.
Medalhões de talha dourada, segurados
por fitas de seda listrada a duas cores;
silhuetas de damas coroadas de peruca,
Fantasmas da corte da Rainha Louca;
imóveis nas suas molduras de tartaruga e charão.
Frederico Lourenço
O som do silêncio
Devagar, como se tivesse todo o tempo do dia,
descasco a laranja que o sol me pôs pela frente. É
o tempo do silêncio, digo, e ouço as palavras
que saem de dentro dele, e me dizem que
o poema é feito de muitos silêncios,
colados como os gomos da laranja que
descasco. E quando levanto o fruto à altura
dos olhos, e o ponho contra o céu, ouço
os versos soltos de todos os silêncios
entrarem no poema, como se os versos
fossem como os gomos que tirei de dentro
da laranja, deixando-a pronta para o poema
que nasce quando o silêncio sai de dentro dela.
Nuno Júdice
Ruas polidas
«Na cidade quem olha para o céu?» (Carlos Queiroz)
Sou solteiro, as ruas são livres,
Minhas mãos nuas
De anéis,
Os músculos festivos
E há missa sobre o mundo.
Carlos Drummond de Andrade,
Virgílio brasileiro,
Sobe comigo aos ciclos das palavras,
Desce comigo às pedras públicas
Da cidade, que
Passos humildes, anónimos,
Pacientemente
Poliram, ao ponto de nelas
Podermos por vezes, discretos,
Patinar
E ousar voos.
Há missa sobre o mundo
(Teilhard).
Um outro Carlos
- Queiroz esse, disse em Sete
Caprichos para Ela
(Setenta vezes sete para o meu capricho):
Bendito seja o sex-appeal.
Ruas pela humildade ou o anónimo
- Na cidade quem olha para o céu,
Se nas ruas polidas fulgem estrelas
E um murmúrio de cântico geral?
Sim, há ruas em que podemos patinar,
Prontos para o discreto voo
De quem, lúcido ou bêbedo, ou banal,
Deseja por momentos o alto ar...
E desliza.
Há missa sobre o mundo
E eu encontro partículas
Inúmeras de uno
(Desde o moreno de Estela até à brancura de Elisa)
E de eterno feminino
(Goethe),
Que impelem para o alto
Voo.
Cristovam Pavia
O que, em breve, verei pela primeira vez
«Estou ainda _ na terra árida do mundo _ intuindo _
Claramente _ o ditoso encontro que me espera _
Gostaria de deixar _ sem mais _ as cinzas desta terra _
E contemplar _ face a face _ os Jardins de Maravilha _
Por vezes _ ao sonhar com a alegria que terei _ só
De vê-los _ o exílio, de súbito, _ se desvanece _
A verdade é que em breve _ à Pátria voltarei
Pela primeira vez _ voltarei à Pátria que deixei.
Jesus _ meu amigo _ dá-me asas _ brancas asas _
Quero lançar-me _ nos teus braços _ num voo alado _
Quero voar _ até às perguntas da eternidade _
Onde, finalmente _ te verei _ ó meu tesouro mudo _
Quero abandonar-me _ nos braços de Maria _
Descansar _ nesse regaço de eleição _
E _ pela primeira vez _ sentir-me beijada
Como filha _ por uma Mãe tão desejada.
Não te demores _ meu Amor amado _ dá-me
A ver _ depressa, os primeiros traços do teu rosto _
E deixa-me _ no meu delírio apaixonado _ esconder-me
No coração com que _ desde sempre _ me tens amado _
Não quero pensar _ não consigo imaginar _ o instante
Em que _ pela primeira vez _ ouvirei o som da tua voz _
E _ logo _ reconhecendo-a _ o teu rosto de adoração.
Não quero imaginar sequer _ o fulgor do teu olhar.
Como se não soubesses que _ o meu único martírio _
É o teu amor Jesus _ o do Coração sagrado _
Não quero ir para o céu _ por nada _ mas p’ra te amar _
Amar-te _ amar-te num crescendo inabalável _
Aspiro a esse Jardim _ como respiro _ inebriada
De ternura e de desejo _ amar-te desmedidamente
Fora de qualquer lei _ Não haverá vez segunda _
Sentirei que te amo _ sempre num começo.
Santa Teresa de Lisieux
Trad: Maria Gabriela Llansol
O homem é uma realidade religiosa. O problema é que essa referência possa aparecer como objeto, como se Deus fosse manipulador ou manipulável. Uma espécie de ser mágico de que todas as coisas dependem. Outra coisa é ser algo de que o homem se serve para dominar. A maioria das religiões são máscaras dessa vontade de poder, de dominar os outros, de os subordinar, de os humilhar. Aquilo que é o seu impulso mais puro, libertador, transforma-se no seu contrário. O que o cristianismo trouxe foi que Deus não é poder. É o não-poder. Mas não foi assim que a coisa foi traduzida.
Eduardo Lourenço, Expresso, 23.12.2011
Cada momento, na vida de Jesus, é uma porta que nos abre
ao inteiro sentido do Seu e do nosso destino.
Por isso, no Natal cantamos Aleluia.
E no nosso presente, por incerto e imperfeito que seja,
saudamos a emergência e os sinais
do tempo de Deus.
O Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura
deseja-vos um Santo Natal.
Fotografia: Rui Aleixo
Se o Advento não for, concretamente, tempo de preparação da vinda de Cristo, mentimo-nos como cristãos, traímos o anúncio da Boa-Nova. E preparar a vinda de Cristo implica tentar todos os dias, cada dia, pôr o Evangelho na vida. Nós cristãos contentámo-nos, com um sacramentalismo que não andou de par com a leitura da Escritura. Explico-me: a falta de leitura da Palavra não nos abre às exigências concretas contidas nos Evangelhos ou nas epístolas. Somos cristãos de prática religiosa, rotineira ou cristãos vagamente vocacionados para um anúncio teórico e utópico da BoaNova. Somos sociologicamente bons burgueses, como os outros, esquecidos da nossa condição de batizados ou seja de portadores de uma mensagem de salvação, que é a de Cristo. (...) Como vamos nós anunciar, hoje, em Portugal,
Maria de Lourdes Belchior
"Above and below": entre a morte e a vida
"Above and Below" de Stefan Werc.
Salvador Dali
Mãe nossa!
Neste lugar desejamos ao mesmo tempo falar-Te — assim como se fala à Mãe — de tudo o que forma o objeto das nossas esperanças, mas também das nossas preocupações; das nossas alegrias, mas também das nossas aflições; dos temores e até das grandes ameaças.
Somos porventura capazes de exprimir tudo isto e de chamar-lhe pelo seu nome? (...)
Tu, ó Mãe, sabes melhor quais são os problemas da Igreja e do mundo contemporâneo, com que vem aos Teus pés o Bispo de Roma, assim como cada um dos presentes. Então, aceita-os, tem a bondade de aceitá-los e de ouvir esta nossa oração sem palavras.
E, sobretudo, recebe as expressões da nossa ardente gratidão por estares connosco, por te encontrares connosco todos os dias e particularmente no dia solene de hoje.
E continua!
Continua connosco cada vez mais. Encontra-te connosco cada vez mais frequentemente, porque temos muita necessidade. Fala-nos com a tua Maternidade, com a tua simplicidade e santidade. Fala-nos com a tua Imaculada Conceição!
Fala-nos continuamente!
E obtém-nos a graça — mesmo quando estivermos muito longe — de não perdermos a sensibilidade da tua presença no meio de nós.
...
Sê Tu quem orienta os seus filhos na peregrinação da fé, tornando-os cada vez mais obedientes e fiéis à Palavra de Deus.
Sê Tu quem acompanha cada cristão ao longo do caminho da conversão e da santidade, na luta contra o pecado e na busca da verdadeira beleza, que é sempre um sinal e um reflexo da Beleza divina.
Sê Tu, ainda, quem obtém a paz e a salvação para todos os povos. O Pai eterno, que te quis como Mãe imaculada do Redentor, renove também no nosso tempo, por teu intermédio, os prodígios do seu amor misericordioso.
Amém.
João Paulo II
8.12.1980, 8.12.2004
«O poeta, sensível e até mais sensível que os outros homens, imolou o coração à palavra, fugiu da autobiografia, tentou evitar a vida provada. Ai dele, se não desceu à rua, se não sujou as mãos nos problemas do seu tempo, mas ai dele também se, sem esperar por uma imortalidade incompatível com a sua condição mortal, não teve sempre os olhos postos no futuro, no dia de amanhã, quando houver mais justiça, mais beleza sobre esta terra sob a qual jazerá, finalmente tranquilo (...).»
Ruy Belo
Tu és a Igreja
Nadie me salvará [Madrigal], de Emilio Solé
Grupo Vocal Discantus
Meditação do Duque de Gandia sobre a morte de Isabel de Portugal, de Sophia de Mello Breyner
"Apesar", "Pudesse eu", "Se": três poemas de Sophia de Mello Breyner com música de Eurico Carrapatoso e interpretação do Grupo Vocal Olisipo
Grupo Vocal Olisipo interpreta "Virgem da Lapa" e "Senhora do Amparo, com música de Eurico Carrapatoso, Prémio Árvore da Vida - Padre Manuel Antunes 2011
Grupo Vocal Olisipo interpreta "Ave verum Corpus" e "O vos omnes", com música de Eurico Carrapatoso, Prémio Árvore da Vida - Padre Manuel Antunes 2011
O Sanctissima
Grupo Vocal Discantus
Fragmento do livro da Sabedoria
Coro Anonymus
Porque a morte tem o seu tempo
A ruína soma ruína, à cabeça
Equilibra a existência desmoronada e inteira.
Tu és o que edifica
Tu constróis mil vezes.
Porque o raio tem o seu tempo.
És o clarão, a lâmpada, a estrela
Somas luz à luz.
Não és a luz, és mais que a luz
Porque a noite tem o seu tempo.
Daniel Faria
«Fazei coisas belas, mas sobretudo tornai as vossas vidas lugares de beleza» (Discurso de Bento XVI ao mundo da cultura, 12 de Maio de 2010)
Na Sua Encarnação, Jesus tornou a humanidade um lugar para
a beleza de Deus.
Desenho de Rui Aleixo, construído sobre as palavras do Prólogo do Evangelho segundo São João
José
Dá Senhor à nossa vida a Tua sabedoria. Ajuda-nos a jejuar das palavras que Te escondem, das palavras onde o amor não emerge, das palavras confusas, extenuadas, atiradas como pedras ou como alarde, das palavras que muralham a comunicação, das palavras que nada mais permitem senão palavras. Que o nosso coração se abra ao silêncio activo e comprometido que é a marca da hospitalidade verdadeira, a marca do Advento verdadeiro. Dá-nos a força de insinuar, nos invernos gelados que interiormente vivemos, o ramo verde, a inesperada flor, o irreprimível convite que Tu fazes ao nosso renascer.
Desenho: Rui Aleixo
Texto: José Tolentino Mendonça
Comunidade da Capela do Rato, Lisboa
Um anjo à janela da Capela do Rato
Obra plástica de Lourdes Castro e Manuel ZImbro. Desde 10 de Dezembro na Capela do Rato, em Lisboa
Maria
A vida, Senhor, é um mistério tão grande! Por que há o tempo? Por que existimos nós? Por que se ama? Por que se chora? Porque há a noite e o dia, o silêncio e o som? Quem disse a primeira palavra ou fez a primeira pergunta? Por que buscamos todos coisas que não encontramos? Diante do enigma da vida, tantas questões permanecerão sem resposta! E contudo, Senhor, sei que ressoa em mim, desde sempre, a presença do Teu amor. Antes que tudo fosse, Tu eras. Desde sempre me viste. Escutaste os meus primeiros balbucios como se fossem palavras. E ainda hoje, quando o meu ser continua o caminho da sua maturação, com que desvelo me proteges, com que esperança Tu embalas o meu coração.
Desenho: Rui Aleixo
Texto: José Tolentino Mendonça
Comunidade da Capela do Rato, Lisboa
Estrela
Dá-nos Senhor, neste Advento, a coragem dos recomeços.
Não nos deixes acomodar ao saber daquilo que foi:
dá-nos largueza de coração para abraçar aquilo que é.
Afasta-nos do repetido, do juízo mecânico que banaliza a história,
pois a priva de surpresa e de esperança.
Torna-nos atónitos como os seres que florescem.
Torna-nos inacabados como quem deseja.
Torna-nos atentos como quem cuida.
Torna-nos confiantes como os que se atrevem
a olhar tudo, e a si mesmos, de novo
pela primeira vez.
Desenho: Rui Aleixo
Texto: José Tolentino Mendonça
Comunidade da Capela do Rato, Lisboa
Dois poemas de Adília Lopes (do livro "Apanhar ar", ed. Assírio & Alvim)
A poesia de cada dia
nos dai hoje
***
Reza escreve cisma sonha
tagarela sempre
Felix Mendelssohn Bartholdy (3.2.1809 - 4.11.1847)
Dir-se-á: a educação está em crise porque a sociedade está em crise. De acordo. Mas justamente por isso. Porque a sociedade está em crise de rotura, de mutação, de desorientação, importa procurar – e encontrar – os novos vínculos do pacto, as novas modalidades do convívio, as novas perspetivas de solidariedade. A educação oferece esse espaço e, em parte, esse poder. Porque não existe educação digna desse nome sem formas e sem normas, sem estruturas e sem conteúdos, sem métodos e sem valores.
Que princípios deverão orientar a nova educação do nosso Povo? (...) Ousamos esquematizar: os princípios que tenham em conta a aliança do cérebro, da mão e do coração; os princípios da liberdade, da igualdade e da dignidade de todos os homens; os princípios que possam unir o sentido científico, o sentido tecnológico e o sentido comunitário desde a célula familiar à Sociedade Mundial.
Padre Manuel Antunes (3.11.1918 - 18.1.1985)
O mundo foi da Poesia, nos primeiros séculos da nossa era. Repetir-se-á o milagre? Voltará o deus dos poetas contra os sábios, que só acreditam na matéria, e com ela fabricam explosivos, gases asfixiantes, máquinas pavorosas? Nesta orgia industrial moderna, paródia em ferro e vapor, da orgia pagã, o homem esta morto ou isolado do seu espírito. Existe, mas não vive. Existe a duzentos quilómetros à hora, mas com a vida parada, dentro dele. Vida inerte numa existência delirante. (...)
O homem, desviado do seu destino, que é tornar-se consciência universal, perante o Criador, mente à sua própria natureza e perde a razão de ser. Daí, a paralisia moral em que ele jaz e a velocidade que o desvaira, e leva para o túmulo. Pretende eliminar o espaço e o tempo, converter-se numa entidade fictícia, simples imagem abstracta, perpendicular a um solo vertiginoso. Pretende evaporar-se. Eis a grande sensação moderna, depois do sentimento antigo. Mas confiemos no espírito humano.
Esta civilização americana depende de materiais esgotáveis ou em quantidade limitada. A fábrica, esse templo moderno, há-de ser destruída, como o templo de Artemisa, em Éfeso, e o de Vénus, em Pafos. Templo quer dizer túmulo, casa dos mortos, que os mortos foram os primeiros deuses. Foram eles que dirigiram, para além do mundo, a atenção dos vivos. Destruída a fábrica pagã, teremos a igreja de Cristo, a confraria dos irmãos, o convívio universal e amoroso.
Confiemos no Deus de Paulo.
O autor deste texto, Teixeira de Pascoaes, nasceu a 2 de novembro de 1877, em Amarante.
Hoje é dia de todos os santos: dos que têm auréola
e dos que não foram canonizados.
Dia de todos os santos: daqueles que viveram, serenos
e brandos, sem darem nas vistas e que no fim
dos tempos hão-de seguir o Cordeiro.
Hoje é dia de todos os Santos: santos barbeiros e
santos cozinheiros, jogadores de football e porque
não? comerciantes, mercadores, caldeireiros e arrumadores
(porque não arrumadoras? se até
é mais frequente que sejam elas a encaminhar o espectador?)
Ao longo dos séculos, no silêncio da noite e à
claridade do dia foram tuas testemunhas; disseram sim/sim e não/não;
gastaram palavras, poucas, em rodeios, divagações. Foram teus
imitadores e na transparência dos seus gestos a
Tua imagem se divisava. Empreendedores e bravos
ou tímidos e mansos, traziam-te no coração,
Olharam o mundo com amor e os
homens como irmãos.
Do chão que pisavam
rebentava a esperança de um futuro de justiça e de salvação
e o seu presente era já quase só amor.
Cortejo inumerável de homens e mulheres que Te
seguiram e contigo conviveram, de modo admirável:
com os que tinham fome partilharam o seu pão
olharam compadecidos as dores do
mundo e sofreram perseguição por causa da Justiça
Foram limpos de coração e por isso
dos seus olhos jorrou pureza e dos seus lábios
brotaram palavras de consolação.
Amaram-Te e amaram o mundo.
Cantaram os teus louvores e a beleza da Criação.
E choraram as dores dos que desesperam.
Tiveram gestos de indignação e palavras proféticas
que rasgavam horizontes límpidos.
Estes são os que seguem o Cordeiro
porque te conheceram e reconheceram e de ti receberam
o dom de anunciar ao mundo a justiça e a salvação.
Maria de Lourdes Belchior
Cristianismo não é coisa fácil que se consiga a dormir. Ser cristão é empenhar-se profundamente, até às últimas consequências, na construção do Reino de Deus. É fazê-lo crescer em toda a parte, a toda a hora, em casa, na escola, no emprego, no convívio, em toda a parte onde estivermos e pudermos chegar. Como o Filho de Deus o fez, encarnado em Jesus Cristo, vivendo connosco o nosso drama. Ele não nos libertou comodamente. Da mesma maneira, o havemos de fazer aos nossos irmãos.
D. Manuel Clemente, bispo do Porto (1975)
Domenico Scarlatti nasceu em Nápoles a 26 de outubro de 1685. Permaneceu em Portugal durante cerca de nove anos. Compôs mais de 500 sonatas. Morreu em Madrid no ano de 1757.
Pablo Picasso, nasceu a 25 de outubro de 1881 em Málaga. Morreu com 91 anos em Mougins, França.
Santa Teresa e as prostitutas
Recebi hoje uma carta do José Bento
que dizia sentir-se um rato diante de Santa Teresa
eu gosto tanto dele, posso dizer o mesmo
mas temo seja o que for
de incalculável
Diante de um rato experimento
não exactamente repulsa para a qual sou demasiado fraco
mas uma tristeza submersa
dissimulada na própria forma
lembro-me no meu quarto há muitos anos
a ratoeira armada debaixo da cama
e o deslizante rumor quase inaudível
cortado por um clique mecânico
um cheiro a folhas mortas apoderava-se da superfície
como se alguma coisa mais longínqua
ficasse presa daquele artifício
Tenho também uma história cómica com ratos
que me custou hora e meia da maior vergonha
reuni em minha casa alguns técnicos de saúde
e voluntários dessas causas
para projectar uma ajuda às prostitutas
e um rato circundou, um por um, os sapatos dos presentes
e tentava subir os degraus da escada numa necessidade
que se diria invencível
as pessoas eram educadas e fizeram todas de conta
mas eu estava para ali
afundado num desespero
Quando por vezes vejo tombar
pelos altos degraus a minha vida
procuro pensar nos dois ou três interesses que me restam
entre eles Santa Teresa e o drama das prostitutas
José Tolentino Mendonça
Bento XVI recebe uma bandeira do Chile assinada pelos 33 operários soterrados desde 5 de agosto, a 700 metros de profundidade, na mina de San Jose. A bandeira, entregue como sinal de reconhecimento pelas orações do Papa, foi entregue a 7 de outubro pelo novo embaixador do Chile na Santa Sé.
Arvo Pärt nasceu a 11 de Setembro de 1935. Faz hoje 75 anos.
Sobre o Pai-nosso
Não digas «pai», se a cada dia não te comportas como um filho.
Não digas «nosso», se vives isolado no teu egoísmo.
Não digas «que estais nos céus», se só pensas nas coisas terrenas.
Não digas «santificado seja o vosso nome», se não o honras.
Não digas «venha a nós o vosso Reino», se o confundes com coisas materiais.
Não digas «seja feita a vossa vontade», se não a aceitas quando é dolorosa.
Não digas «o pão nosso de cada dia», se não te preocupas com quem passa fome.
Não digas «perdoai-nos as nossas ofensas», se manténs rancor contra o teu irmão.
Não digas «livrai-nos do mal», se não tomas posição contra o mal.
Não digas «ámen», se não compreendeste nem levaste a sério a palavra do Pai-nosso.
O erro nunca se mostra de facto tal qual é, com receio de que, colocado a nu, seja denunciado; antes se disfarça fraudulentamente sob uma veste de verosimilhança, de tal modo que pareça - coisa ridícula esta! - mais verdadeiro que a própria verdade, graças a esta aparência exterior e aos olhos dos ignorantes. Como dizia a propósito um homem superior a mim: 'a pedra preciosa, como a esmeralda, de grande valor aos olhos de alguns, vê-se insultada por um pedaço de vidro habilmente trabalhado, se não se encontra alguém capaz de proceder a um exame capaz de desmascarar a fraude...'"
"Participam da vida os que vêem a Deus, porque é o esplendor de Deus que dá a vida. Por isso, Aquele que é inacessível, incompreensível e invisível, torna-se visível, compreensível e acessível para os homens, a fim de dar vida aos que o alcançam e vêem. Porque é impossível viver sem a vida; e não há vida sem a participação de Deus, participação que consiste em ver a Deus e gozar da sua bondade."
"A glória de Deus é o homem vivo, e a vida do homem é a visão de Deus. Com efeito, se a manifestação de Deus, através da criação, dá a vida a todos os seres da terra, muito mais a manifestação do Pai, por meio do Verbo, dá vida a todos os que vêem a Deus."
Santo Ireneu (c. 130 - c. 200)
Já tenho uma certa idade. A natureza das minhas ocupações, nos últimos trinta anos, pôs-me em contacto estreito com o que seria de considerar uma interessante e algo singular classe de homens, sobre a qual, que eu saiba, nada se escreveu ainda - quero dizer, os escrivães, ou copistas do foro. Conheci muitos deles, quer profissional quer particularmente, e, se me apetecesse, podia contar variadas histórias, acerca das quais os cavalheiros de boa índole ririam, ao passo que as almas sensíveis verteriam lágrimas. Mas eu ponho de lado as biografias de todos os outros, em troca de algumas passagens da vida de Bartleby, que era escrivão, o mais estranho que conheci ou de que ouvi falar. Enquanto de outros copistas do foro, eu poderia escrever a vida completa, acerca de Bartleby tal não é possível. Creio não haver material existente de modo a fazer-se a biografia integral e capaz deste homem. É uma perda irreparável para a literatura. Bartleby era um desses seres acerca dos quais nada se pode concluir a não ser a partir de fontes originais, que, no seu caso, são mínimas. O que os meus próprios olhos, atónitos, viram de Bartleby, isso é tudo quanto sei dele, excepto, na verdade, determinado rumor, que aparecerá em devido tempo. (...)
- Vai ou não deixar-me? - perguntei-lhe então num acesso de súbita fúria, avançando para ele.
- Preferia não o deixar - retorquiu, acentuando delicadamente o não.
- Mas que direito tem o senhor neste mundo de permanecer aqui? Paga a minha renda? Paga os meus impostos? Ou isto é propriedade sua?
Nada respondeu.
- Está pronto para prosseguir, e escrever, agora? Já está bom dos olhos? Pode copiar-me um pequeno documento, esta manhã? Ou ajudar a conferir umas linhas? Ou ir ao Correio? Numa palavra, fará alguma coisa que justifique a sua recusa em partir desta casa?
Retirou-se silenciosamente para o interior do seu ermitério.
Eu estava agora num estado tal de excitação nervosa que julguei ser mais prudente abster-me de momento de mais manifestações. Bartleby e eu estávamos sós. (...)
[Foi então que] agarrei nele e lancei-o fora. Como? Pois simplesmente recordando a injunção divina: «Um novo mandamento vos dou, que vos ameis uns aos outros.» Sim, isto foi o que me salvou. À parte mais elevadas considerações, a caridade opera muitas vezes como princípio imensamente sábio e prudente — uma grande salvaguarda para o seu possuidor. Os homens têm cometido assassínios por causa do ciúme, do ódio, do egoísmo, da soberba; mas nenhum homem cometeu jamais, que eu saiba, um crime diabólico por causa da doce caridade. O simples interesse próprio, então, se melhor motivo se não arranjasse, deveria, especialmente nos homens que facilmente se encolerizam, levar todos os seres à caridade e à filantropia. De qualquer maneira, e no momento em questão, esforcei-me por abafar o meu sentimento de exasperação dirigido contra o escrivão, procurando interpretar com benevolência a sua conduta. Coitado! Coitado! - pensei. - Não faz de propósito; e além do mais, tem passado maus bocados, devemos ser indulgentes para com ele.
E tentei de imediato ocupar-me e ao mesmo tempo compensar o meu desalento. Procurei imaginar que no decurso da manhã, em determinada altura que julgasse conveniente, Bartleby, de sua livre vontade, emergiria do seu ermitério e tomaria a direcção da porta com um passo decidido. Mas não. Veio o meio-dia e meia; o rosto de Turkey começou a brilhar, entornou o tinteiro, tornando-se manifestamente turbulento; Nippers fez-se sossegado e cortês; Ginger Nut foi remoendo a sua maçã do meio-dia; Bartleby permanecia de pé diante da sua janela, num dos seus mais profundos devaneios em frente da parede cega. Seria de crer? Deveria eu admitir tal coisa? Nessa tarde abandonei o escritório sem lhe dizer uma palavra mais.
Passaram-se mais uns dias, durante os quais, quando me era possível, eu dava uma olhadela a On the Will, de Edwards, e On Necessity, de Priestley. Nas circunstâncias presentes, estes livros produziram um resultado salutar. Gradualmente fui-me convencendo de que estes problemas, no que concerne ao escrivão, tinham sido já predestinados de toda a eternidade e que Bartleby me havia sido destinado por qualquer oculto desígnio de uma omnipotente Providência, que não estava nas mãos de um simples mortal como eu perscrutar. Sim, Bartleby, fica aí por detrás do teu biombo, pensei eu; não mais te perseguirei; és tão inofensivo e silencioso como qualquer uma destas velhas cadeiras; numa palavra, nunca me sinto tão à minha vontade como quando sei que aí estás. Finalmente vejo-o e sinto-o, penetro o predestinado fim da minha vida. Estou satisfeito. Outros poderão desempenhar papéis mais sublimes; a minha missão neste mundo, Bartleby, é dar-te espaço no meu escritório durante o período que entendas necessário permanecer.
Acredito que esta sábia e abençoada disposição de espírito me teria acompanhado, não tivessem sido os comentários inoportunos e pouco caridosos que me eram lançados pelos colegas que me visitavam. Mas assim frequentemente acontece que a constante fricção com espíritos nada liberais vem a minar inevitavelmente as melhores disposições dos mais generosos. Pensando bem, na verdade, não era realmente de estranhar que as pessoas que entravam no escritório ficassem impressionadas com o singular aspecto do inacreditável Bartleby, e fossem por isso tentadas a lançar qualquer sinistra observação a seu respeito. Em certas alturas, um solicitador, que tinha coisas a tratar comigo, vinha ao meu escritório, e, não encontrando lá ninguém a não ser o escrivão, tentava obter deste alguma informação precisa sobre o local onde eu estaria; mas sem prestar nenhuma atenção a tal palavreado, Bartleby permanecia de pé, imóvel, no meio da sala. E era assim que, depois de o ter observado durante um bocado, o solicitador se ia embora a saber o mesmo.
Igualmente quando havia uma inquirição, o quarto cheio de advogados e testemunhas, e o negócio a todo o vapor, um dos cavalheiros da profissão presentes, muito ocupado, e vendo Bartleby sem fazer nada, instava-o a que fosse ao seu escritório buscar-lhe uns papéis. Logo Bartleby se recusava tranquilamente, permanecendo no entanto tão desocupado como anteriormente. O advogado, então, olhava-o assombrado, e voltava-se para mim. E que podia eu dizer? Por fim apercebi-me de que no círculo das minhas relações profissionais corria um murmúrio de espanto, devido à estranha criatura que eu albergava no meu escritório. Isto muito me aborrecia. E como me ocorresse a possibilidade de ele ser pessoa para viver muitos anos, continuando a ocupar os meus aposentos, negando a minha autoridade; causando perplexidade nos visitantes; difamando a minha reputação profissional; lançando uma soturnidade geral sobre o local de trabalho; mantendo-se firmemente, sem gastar nada que fosse das suas economias (visto que ele não gastava mais de meio cêntimo por dia), e talvez que, por fim, sobrevivendo-me, reivindicasse a posse do meu escritório devido à sua ocupação perpétua dele. Como todas estas sombrias antecipações se acumulassem mais e mais na minha mente, e os meus amigos continuassem a manifestar incansavelmente a sua opinião acerca daquela aparição nos meus aposentos, operou-se em mim uma grande mudança. (...)
Agindo em conformidade, dirigi-me a ele no dia seguinte nestes termos: - Acho este local demasiado longe da Câmara Municipal: os ares aqui são pouco saudáveis. Numa palavra, proponho-me mudar de local na próxima semana, e não precisarei mais dos seus serviços. Digo-lhe isto agora, para que possa procurar outro lugar.
Ele não respondeu, e ficámos por aqui.
No dia determinado contratei carroças e homens, dirigi-me aos meus escritórios e, tendo pouca mobília, a mudança fez-se em poucas horas. Durante todo o tempo, o escrivão permaneceu de pé atrás do biombo, tendo eu dado ordens para que fosse a última coisa a ser retirada. Retiraram-no dobrado como se fosse um enorme fólio, e lá ficou Bartleby, ocupante imóvel de uma sala nua. Fiquei à entrada da porta a observá-lo um momento, enquanto intimamente algo me censurava.
Voltei a entrar, com a mão no bolso - e... e o coração na boca.
- Adeus, Bartleby; vou-me embora. Adeus, e que Deus o guarde; tome lá isto - e passei-lhe sub-repticiamente qualquer coisa para a mão. Mas logo caiu ao chão; e então, por estranho que pareça, foi a custo que me separei dele, de quem eu tanto ansiava desembaraçar-me. (...)
In Bartleby, de Herman Melville, ed. Assírio & Alvim
Carta a Santo António
Meu Padre Santo António, meu Padrinho:
Faz que floresçam no papel
Versos meus em louvor do ninho de carinho
Com que me abriga o teu burel.
Sabes bem quem eu sou: nasci no Minho,
Chamo-me António Manuel.
Há setenta e três anos que abençoa
O corpo e alma frágeis do afilhado
A tua mão tão generosa e boa.
E tenho-te traído! E amado
Menos do que mereces! Meu Padrinho, perdoa.
Posso ser perdoado?
Meu coração repeso escreve agora
Os versos em que lembro o coração amigo
Que me tem protegido vida fora,
Que me tem salvo das ciladas e do perigo.
Para dizer-tos (sei que nem sequer demora),
Quero estar lá, contigo.
Quero estar lá, frente a frente,
De olhos baixos. Mas tu a vigiar-me o voo.
E ao escutares-me o verbo, arrependido e crente,
Na tua língua, a língua em que me sou.
Afastando uma nuvem, dizes-me sorridente:
- Vem!
E eu vou.
António Manuel Couto Viana (1923-2010). Desenho: Juan Soutullo
Sei que são palavras fora de moda, mas que possibilidade de vida, de amor, de verdade existe hoje? Estas perguntas, assim como as questões básicas da metafísica, continuam para mim apaixonantes. É claro que podemos vê-las numa caneca ou numa t-shirt, mas continuo a achar que uma das coisas que me permitem afirmar que sou artista é precisamente essa busca, essa procura.
João Tabarra
Ípsilon (Público), 21.5.2010
Gabriela Albergaria na Capela do Rato
Tudo o que o meu pai me disse quando, aos 15 anos, declarei em família que iria começar a escrever poesia
«Antes
de te sentares
à mesa
lava bem
essas mãos.»
Enterro de Malcolm McLaren, manager dos Sex Pistols, na antiga Igreja de Santa Maria Madalena, em Londres. Foto: Rex Features
Havia uma grande procissão; à cabeça avançavam as três Semelhanças:
a parábola da ovelha perdida;
a parábola da dracma perdida;
a parábola do filho perdido.
Ora tanto um filho é mais caro que uma ovelha,
E infinitamente mais caro que um dracma,
Tanto um filho é mais caro ao coração do pai,
(Do seu pai que é ao mesmo tempo, que é já, antes, que é primeiramente seu pastor),
Do que mesmo uma ovelha e cara ao coração do (bom) pastor,
Tanto a terceira Semelhança,
Tanto a parábola do filho pródigo
É ainda mais bela se possível e mais cara,
É ainda maior do que as duas Semelhanças antecedentes,
Do que a parábola da ovelha perdida,
E do que a parábola da dracma perdida.
Todas as parábolas são belas, minha filha, todas as parábolas são grandes, todas as parábolas são caras.
Todas as parábolas são a palavra e o Verbo,
A palavra de Deus, a palavra de Jesus.
São todas elas por igual, são todas elas ao mesmo tempo
A palavra de Deus, a palavra de Jesus.
No mesmo pé.
(Deus pôs-se neste caso, minha filha,
Neste caso mau,
De ter necessidade de nós)
Todas elas vêm do coração, por igual, e vão direitas ao coração,
Falam ao coração.
Mas as três parábolas da esperança entre todas
Vão à frente,
E entre todas são grandes e fiéis, entre todas são piedosas e afectuosas, entre todas são belas, entre todas são caras e próximas ao coração.
Entre todas estão próximas do coração do homem, entre todas são caras ao coração do homem.
Têm não se sabe que lugar à parte.
Têm talvez nelas sabe-se lá o quê que não há, que não haverá nas outras.
É talvez porque têm em si como que uma mocidade, como que uma infância ignorada.
Insuspeitada alhures.
Entre todas são jovens, entre todas são frescas, entre todas são crianças, entre todas estão por gastar.
Não envelhecidas.
Não gastas, não envelhecidas.
Desde treze ou catorze séculos que elas servem, e desde há dois mil anos, e pelos séculos dos séculos jovens como no primeiro dia.
Frescas, inocentes, ignorantes,
Crianças como no primeiro dia,
E desde há treze vezes cem anos que há cristãos e catorze vezes cem anos,
Essas três parábolas, (que Deus nos perdoe),
Têm um lugar secreto no coração.
E que Deus nos perdoe enquanto houver cristãos,
Por tanto tempo ou seja eternamente,
Pelos séculos dos séculos haverá para essas três parábolas
Um lugar secreto no coração.
E todas as três são as parábolas da esperança.
Em conjunto.
Jovens por igual, por igual caras.
Entre elas.
Irmãs entre elas como três crianças novinhas.
Por igual caras, por igual secretas.
Secretamente amadas. Igualmente amadas.
E como que mais interiores do que todas as outras.
Dando resposta a uma voz interior mais profunda.
Mas entre todas; entre todas três eis que vem à frente a terceira parábola.
E essa, minha filha, essa terceira parábola da esperança,
Não só está nova como no primeiro dia.
Como as duas outras
Suas irmãs.
E pelos séculos será nova,
Tão nova até ao último dia.
Mas desde há catorze séculos, desde há dois mil anos que ela serve,
E que foi contada a homens inumeráveis,
A menos que tenha um coração de pedra, minha filha, quem a ouvirá sem chorar?
Desde há catorze séculos, desde há dois mil anos tem ela feito chorar homens inumeráveis.
Pelos séculos e pelos séculos.
Cristãos inumeráveis.
Ela tocou no coração do homem um ponto único, um ponto secreto, um ponto misterioso.
(Ela tocou no coração.)
Um ponto inacessível à outras.
Sabe-se lá que ponto como que mais interior e mais profundo.
Homens inumeráveis, desde que ela serve, cristãos inumeráveis têm chorado com ela.
(A menos de terem um coração de pedra.)
Têm chorado por ela.
Chorarão homens pelos séculos fora.
Só de pensar nela, só de a ver quem poderia,
Quem conseguiria reter as lágrimas.
Pelos séculos fora, pela eternidade com ela hão-de chorar homens; por ela,
Fiéis, infiéis.
Na eternidade, até no juízo.
Quando do juízo, no juízo. E
É esta a palavra de Jesus que teve maior alcance, minha filha.
É ela a que teve melhor sorte Temporal. Eterna.
Ela despertou no coração sabe-se lá que ponto de correspondência
Único.
Por isso tem tido uma sorte
Única.
É célebre até entre os ímpios.
Entre eles achou, até aí, um ponto de entrada.
Talvez só ela tenha ficado cravada no coração do ímpio
Como um cravo de ternura.
Ora ele disse: Um homem tinha dois filhos:
E quem a ouve pela primeira vez,
É como se fosse pela primeira vez.
Que a ouvisse.
Um homem tinha dois filhos. É bela em Lucas. É bela em toda a parte.
Não está senão em Lucas, está em toda a parte.
É bela na terra e no céu. É bela em toda a parte.
Só de nela pensar, um soluço nos sobe à garganta.
É a palavra de Jesus que tem tido maior ressonância no mundo.
Que achou a ressonância mais profunda
No mundo e no homem.
No coração do homem.
No coração fiel, no coração infiel.
Que ponto sensível e que ela encontrou
Que nenhuma outra encontrara antes dela,
Que nenhuma encontrou, (tanto), desde então,
Que ponto único,
Ainda insuspeito,
Nunca obtido depois.
Ponto de dor, ponto de aflição, ponto de esperança.
Ponto doloroso, ponto de inquietude,
Ponto de tortura no coração do homem.
Ponto em que não se deve carregar, ponto de cicatriz, ponto de costura e de cicatrização.
Em que não é bom que alguém se apoie.
Ponto único, sorte única, força única de apego.
Aderência única, vínculo do coração fiel.
E do coração infiel.
Todas as parábolas são belas, minha filha, todas as parábolas são grandes.
E designadamente as três parábolas da esperança.
E todas essas três parábolas da esperança além do mais são jovens, minha filha.
Mas com esta centenas e milhares de homens têm chorado.
Centenas de milhares de homens.
Por esta.
batidos pelos mesmos soluços chorado as mesmas lágrimas.
Fiéis, infiéis, Umas revezando-se com as outras. As mesmas.
Desfeitos pelos mesmos soluços.
Numa comunhão de lágrimas.
Deitados, inclinados, soerguidos pelos mesmos soluços chorado as mesmas lágrimas.
Fiéis, infiéis.
Sacudidos dos mesmos soluços.
Chorado como crianças.
Um homem tinha dois filhos. De todas as parábolas de Deus
É a que despertou o eco mais profundo.
O mais antigo.
O mais velho, o mais novo.
O mais recente.
Fiel, infiel.
Conhecido, desconhecido.
Um ponto de eco único.
É a única que o pecador jamais forçou a calar no coração.
Quando alguma vez esta palavra mordeu o coração
O coração infiel e o coração fiel,
Nenhuma volúpia já apagará
A marca dos seus dentes.
Tal é esta palavra. É uma palavra que acompanha.
Segue-nos como um cão
Que se enxota, mas fica.
Como um cão maltratado, que volta sempre.
Fiel fica, volta como um cão fiel.
Por mais que lhe demos com um pé e com um pau.
Fiel ela mesma de uma fidelidade,
Única, Assim ela acompanha o homem nos seus maiores
Excessos.
É ela que ensina que nem tudo está perdido.
Não cabe na vontade de Deus
Que um só destes pequeninos pereça.
É um cão fiel
Que morde e que lambe
E as duas coisas prendem
O coração inconstante.
Quando o pecador se afasta de Deus, minha filha,
À medida que se afasta, à medida que se afunda em regiões perdidas, à medida que se perde,
Vai deitando para a borda do caminho, no mato e nas pedras
Coisas inúteis e embaraçantes e que o atrapalham os bens mais preciosos. Os bens mais sagrados.
A palavra de Deus, os tesouros mais puros.
Mas há uma palavra de Deus que ele nunca rejeitará.
Com a qual qualquer homem tantas vezes chorou.
Com a qual, pela virtude da qual. Pela qual
E ele é como os outros, também ele chorou.
Há um tesouro de Deus, quando o pecador se afasta
Nas trevas em aumento.
Quando as trevas
Crescentes
Lhe velam os olhos há um tesouro de Deus que ele não lançará, não, aos matos da estrada.
Porque é um mistério que acompanha, é uma palavra que acompanha
Nos maiores
Distanciamentos.
Não há necessidade de tratar dela, de a trazer.
É ela.
Que trata de nos e de trazer e de se fazer trazer.
É ela que segue, é uma palavra de sequência, é um tesouro que acompanha.
As outras palavras de Deus não ousam acompanhar o homem.
Nos seus maiores
Excessos.
Mas na verdade esta é uma descarada.
Ela agarra o homem pelo coração, num ponto que ela sabe, e não o larga mais.
Não tem medo. Não tem vergonha.
E por mais longe que vá o homem, esse homem que se perde,
Em qualquer região,
Em qualquer obscuridade.
Longe do lar, longe do coração,
E quaisquer que sejam as trevas em que ele se afunde,
As trevas que lhe velam os olhos,
Sempre o luar vigia, sempre uma chama vigia, uma ponta de chama.
Sempre uma luz vigia que jamais há-de ser posta debaixo do alqueire. Sempre uma lâmpada.
Sempre uma ponta de dor queima. Um homem tinha dois filhos. Um ponto que ele bem conhece.
Na falsa quietação um ponto de inquietação, um ponto de esperança. Todas as outras palavras são pudicas. Não se atrevem a acompanhar o homem nas vergonhas do pecado.
Não são suficientemente avançadas.
No coração, nas vergonhas do coração.
Mas esta em verdade não é envergonhada.
Pode-se dizer que é destemida.
É uma irmãzinha dos pobres que não tem medo de manejar um doente ou um pobre.
Por assim dizer ela
E mesmo realmente ela fez um desafio ao pecador.
Disse-lhe assim: Por toda a parte aonde fores, irei eu.
Havemos de ver.
Comigo não terás paz.
Não te vou deixar em paz.
E é verdade, e ele bem o sabe. E no fundo ele ama o seu perseguidor.
Bem lá no fundo, muito secretamente.
Porque bem lá no fundo, no fundo da sua vergonha e do seu pecado ele gosta (mais) de não ter paz. Isso dá-lhe uma certa garantia.
Permanece um ponto doloroso, um ponto de pensamento, um ponto de inquietação. Um rebentinho de esperança.
Um luar não se extinguirá nunca e vem a ser
a Parábola terceira,
a terceira palavra da esperança. Um homem tinha dois filhos.
Charles Péguy
Código de Amor do século XII
I
A alegação do casamento não é desculpa legítima contra o amor.
II
Quem não sabe esconder não sabe amar.
III
Ninguém se pode dar a dois amores.
IV
O amor pode sempre crescer ou diminuir.
V
O que o amante arranca pela força ao outro amante não tem sabor.
VI
O homem não ama, normalmente, senão em plena puberdade.
VII
Prescreve-se a um dos amantes, por morte do outro, um luto de dois anos.
VIII
Ninguém, em amor, deve ser privado do seu direito sem uma razão mais que suficiente.
IX
Ninguém pode amar se não estiver imbuído da persuasão de amor (da esperança de ser amado).
X
O amor, habitualmente, é expulso de casa pela avareza.
XI
Não é conveniente amar aquela a quem se teria vergonha de desejar em casamento.
XII
O amor verdadeiro não tem desejo de carícias, a não ser que venham daquela a quem ama.
XIII
Amor divulgado raramente dura.
XIV
O êxito demasiado fácil não tarda a tirar o seu encanto ao amor; os obstáculos aumentam-lhe o preço.
XV
Toda a pessoa que ama empalidece ao ver quem ama.
XVI
Ao ver-se imprevistamente aquele a quem se ama, estremece-se.
XVII
Novo amor expulsa o antigo.
XVIII
Só o mérito torna digno de amor.
XIX
O amor que se extingue decai rapidamente e raramente se reanima.
XX
O apaixonado está sempre receoso.
XXI
A afeição de amor cresce sempre com os ciúmes verdadeiros.
XXII
A afeição de amor cresce com a suspeita e com os ciúmes que derivam dela.
XXIII
Menor dorme e menos come aquele a quem atormenta um pensar de amor.
XXIV
Todas as acções do amante terminam pensando no que ama.
XXV
O amor verdadeiro não acha bem senão o que sabe que agrada a quem ama.
XXVI
O amor não pode recusar nada ao amor.
XXVII
O amante não pode saciar-se de fruir do que ama.
XXVIII
Uma fraca presunção faz com que o amante suspeite coisas sinistras em quem ama.
XXIX
O excessivo hábito dos prazeres impede o nascimento do amor.
XXX
Uma pessoa que ama está ocupada assídua e ininterruptamente pela imagem de quem ama.
XXXI
Nada impede que uma mulher seja amada por dois homens, e um homem por duas mulheres.
Stabat Mater (Marc-Antoine Charpentier)
Jordi Savall dirige Le Concert des Nations na Capela Real do Palácio de Versalhes
Se eu não tiver amor, não sou nada
"A Missão" (Roland Joffé, 1986)
1
Olho a oriente
com os pés no ocidente.
Que palavra leve!
2
Trepa a primavera
pelo perfume lilás
a cobrir o muro.
3
Desperta a noite;
o orvalho enche a manhã.
Um cheiro a saudade.
4
Hera pelo muro
rastejando palmo a palmo –
o verde e o viço.
5
Ao abrir do sol,
se espreguiça o amarelo
pelas maravilhas.
6
Na outra colina,
do lado de lá do ver,
é que os sonhos pastam.
Luísa Freire
In O tempo de perfil, ed. Assírio & Alvim
Viver de Amor
Nessa noite de Amor _ abrindo abertamente teu coração.
Disseste _ Se alguém me quer amar _
Com toda a sua Vida _ Que guarde a Promessa
Eu e meu Pai procurá-lo-emos _ está dito _
E do seu coração faremos uma morada _ a nossa
Onde o amaremos com toda a nossa Vida,
Com a paz que preside à Criação_ queremos _
Que viva no nosso Amor.
Nessa noite, eu soube que viver de Amor _ é_
Guardar-te _ Promessa incriada _ da Mudez Inicial.
Ah!, sabe-lo bem, meu Esposo _ como eu te amo _
O fogo abrasa-me _ Toda eu imersa no seu Espírito,
Amando-te _ a ti e ao Pai que está contigo _ Meu
Amor não libertará _ oh!, não _ da Promessa
A Trindade _ presa e prisioneira _
Do meu coração de Pobre.
Viver de amor? _ Viver-Te a vida
De gloriosa majestade e delícia dos eleitos? _
Por mim _ basta que vivas escondido
Onde eu _ por Ti possa _ escondida, estar contigo
A sós _ como amantes sedentos de solidão _
Um face a face que dure a noite _ que dure o dia.
Um teu olhar _ é quanto basta
Para tornar feliz o amor.
Viver de amor? Não é certamente viver
No alto do Tabor, contemplando-se mutuamente _
Contigo Jesus _ amar é levar-te à cruz,
Ver-me a teu lado _ e sentir-me tesouro _
No teu jardim, poderei _ um dia _ ter-te
Quando a prova _ por inteiro, tiver passado_
No exílio, no entanto _ quero viver a dor
De te amar _ de amor.
Viver de amor? É dar _ e não ter -
Medida que compare o quanto se deu
Sem medir - como calcular o Amor?
Se amor não mede _ a medida que perdeu.
Ao teu coração transbordante de ternura,
Dei todo o divino _ e meu não era _ Corro leve _
Conto apenas com a riqueza que me deste _
O amor que me dá vida.
Viver de amor? É não ter medo _ E o pavor
Do mal que se fez? _ O amor apaga
O rasto das sombras cometidas _ Num ápice,
Faz delas labaredas _ consumidas
Chamas _ ó chama divina, ó doce fornalha _
No teu foco ardente _ coloco a minha vida _
É nesse fogo _ ardente que canto sem temor
«Amar não temo.»
Viver de amor? É ser no tempo _
O cálice mortal de uma bebida rara.
Meu Bem-Amado _ como pode meu cristal
Imperfeito _ igualar o timbre e o sabor angélicos?
Mas se me quebro _ em cada hora que passa _
Tu vens, de novo _ reunir meus estilhaços,
A cada instante _ tornar mais rara
A bebida inebriante de amar.
Viver de amor? É abrir nos corações _
Uma rota certeira e leve _ constantemente _
Piloto amado _ o Amor é um fogo urgente _
Que me chama _ nas almas minhas irmãs _
Sê minha estrela polar _ a única estrela a brilhar
A claridade _ de uma rota que se não perca _
Nem desminta _ a divisa da minha vela
«Viver de amor.»
Viver de amor? É esperar que acordes
Quando dormes _ sobre as vagas alterosas
Do Tiberíades _ Descansa _ Eu não te incomodo _
Espero, confiada, a hora das margens _
A Fé, muito em breve, porá fim à tempestade _
Espero ver-te, face a face _ ao tocar o cais _
O Amor ardente urge e enche as velas, Não te acordarei, Amor.
Viver de amor? Ó meu divino Mestre _
É suplicar-te que incendeies _ as almas
Santas e sagradas de teus Padres _ cristalinas _
Mais ainda _ que as almas celestes de teus anjos.
Glorifica _ peço-te _ a tua Igreja imortal.
Ouve os meus suspiros _ Não te faças surdo _
Eu _ filha dessa Igreja _ imolo-me por ela,
Vivendo de amor.
Viver de amor? É enxugar-te o rosto.
E apagues _ perdoando _ as faltas dos pecadores _
Ó Deus de Amor _ que voltem à tua graça _
Que da sua boca surja _ a bênção do teu Nome.
Quando no meu coração _ no seu âmago _ ressoa
A blasfémia _ eu não canto? _ não tento abafar-lhe o eco?
Não canto teu SacroNome? _ Eu o adoro _ eu o amo _
Para viver de amor.
Viver de amor? É fazer como Maria
A teus pés _ Lembras-te? _ Pegou em lágrimas
E perfumes _ cobriu-os de beijos e perfumes
Apaixonados _ Limpa-te os pés com seus cabelos _
Ergue-se _ quebra o vaso _ derrama-te
Sobre o rosto _ o doce rasto do perfume.
Que farei eu? Perguntas? _ Cubro-te a Face,
Meu amor _ é perfume.
Viver de amor? «Que doença estranha
É essa?!» _ me diz o mundo _ «Não cantes _
Não percas teu perfume _ não dês a vida _
Usa utilmente a vida, a voz e o perfume!»
Eu digo _ não há perca mais profunda _ do que amar-Te
Em tudo _ os meus perfumes que te dei _ são teus _
Não voltes a dar-mos _ E a minha voz? _ Eu a canto
Para Ti _ com o amor da vida.
E morrer de amor? Haverá martírio mais doce?
Se houver _ é esse que quero padecer _
Escutai-me, Querubins _ preparai
Vossos instrumentos _ sinto que vou morrer _
Chama de amor, ouvis-me? _ Consome-me
Sem tréguas _ Vida de um instante _
Como és pesada _ Jesus, ouve o meu pedido,
O sonho de _ morrer de amor.
Morrer de amor é deveras o que espero
Ver _ quebrarem-se todos os meus laços
Outros bens _ não quero ter _ apenas MeuAmado
A grande recompensa _ de vê-los quebrar-se
Pelo teu Amor _ quero ser incendiada.
Vê-lo face a face _ unir o meu rosto ao dEle
Nas chamas _ de um céu _ na única conjectura
Onde viver e amar são o mesmo laço.
Santa Teresa do Menino Jesus
Trad: Maria Gabriela Llansol
Quaresma pode até ser um nome complicado
mas a sua motivação é actual e grandiosa:
favorecer o encontro do Homem
com as raízes profundas do seu ser,
tornar-nos melhores
e lembrados do que é importante.
Os dias trazem nas suas redes
preciosos peixes vermelhos e azuis,
mas também lixo, coisas supérfluas
que só atravancam,
por isso os pescadores perdem tempo a escolher
com cuidado.
Quaresma é voltar a ganhar o espaço das escolhas
neste tempo consumista de falsas imposições.
Quaresma é dizer sim,
com maior entusiasmo ainda,
à liberdade de afirmar o essencial:
fé, justiça, reconciliação, solidariedade e alegria.
É que podemos somar muitos anos
sem nunca ter realmente vivido
e achar que fazemos grandes coisas
sem nos perguntarmos: «para que servem?»
Vivo sem viver em mim
Vivo sem viver em mim,
E tão alta vida espero,
Que morro porque não morro.
Vivo já fora de mim,
Depois que morro de amor;
Porque vivo no Senhor,
Que me quis para Si:
Quando o coração lhe dei
Pus nele este letreiro,
Que morro porque não morro.
Esta divina prisão,
Do amor em que eu vivo,
Fez de Deus meu cativo,
E livre meu coração;
E causa em mim tal paixão
Ver a Deus meu prisioneiro,
Que morro porque não morro.
Ah, que larga é esta vida!
Que duros estes desterros,
Este cárcere, estes ferros
Em que a alma está medita!
Só esperar a saída
Causa-me dor tão fera,
Que morro porque não morro.
Ah, que vida tão amarga
onde se não goza do Senhor!
Porque se é doce o amor,
Não o é a esperança larga:
Tire-me Deus esta carga,
Mais pesada que o metal,
Que porque porque não morro.
Só com a confiança
Vivo do que hei-de morrer,
Porque morrendo o viver
Me a esperança assegurança;
Morte dond’o viver se alcança,
Não te tarde, que te espero,
Que morro porque não morro.
Olha que o amor é forte;
Vida, não me sejas molesta,
Olha que só me resta,
Para ganhar-te, perder-te.
Venha já a doce morte,
O morrer venha ligeira
Que morro porque não morro.
Aquela vida de arriba,
Que é a vida verdadeira,
Até que esta vida morra,
Não se goza estando viva:
Morte, não me sejas esquiva;
Viva morrendo primeiro,
Que morro porque não morro.
Vida, que posso eu dar
Ao meu Deus que vive em mim,
Se não o perder-te a ti,
Para merecer ganhá-l’O?
Quero morrendo alcança-l’O,
Pois tanto a meu Amado quero,
Que morro porque não morro.
Fevereiro
ou
Os meses não se medem aos palmos.
Escarnecem de mim os outros meses:
chamam-me minorca
por ser o mais pequeno.
Mas qual deles é capaz como eu
de se acrescentar um dia
a cada quatro anos?
Está nisto a minha grandeza:
ter assomos, fazer a diferença,
construir anos bissextos.
A.M. Pires Cabral
Quarta-feira de Cinzas
I
Porque não mais espero retornar
Porque não espero
Porque não espero retornar
A este invejando-lhe o dom e àquele o seu projeto
Não mais me empenho no .empenho de tais coisas
(Por que abriria a velha águia suas asas?)
Por que lamentaria eu, afinal,
O esvaído poder do reino trivial?
Porque não mais espero conhecer
A vacilante glória da hora positiva
Porque não penso mais
Porque sei que nada saberei
Do único poder fugaz e verdadeiro
Porque não posso beber
Lá, onde as árvores florescem e as fontes rumorejam,
Pois lá nada retorna à sua forma
Porque sei que o tempo é sempre o tempo
E que o espaço é sempre o espaço apenas
E que o real somente o é dentro de um tempo
E apenas para o espaço que o contém
Alegro-me de serem as coisas o que são
E renuncio à face abençoada
E renuncio à voz
Porque esperar não posso mais
E assim me alegro, por ter de alguma coisa edificar
De que me possa depois rejubilar
E rogo a Deus que de nós se compadeça
E rogo a Deus porque esquecer desejo
Estas coisas que comigo por demais discuto
Por demais explico
Porque não mais espero retornar
Que estas palavras afinal respondam
Por tudo o que foi feito e que refeito não será
E que a sentença por demais não pese sobre nós
Porque estas asas de voar já se esqueceram
E no ar apenas são andrajos que se arqueiam
No ar agora cabalmente exíguo e seco
Mais exíguo e mais seco que o desejo
Ensinai-nos o desvelo e o menosprezo
Ensinai-nos a estar postos em sossego.
Rogai por nós pecadores agora e na hora de nossa morte
Rogai por nós agora e na hora de nossa morte.
II
Senhora, três leopardos brancos sob um zimbro
Ao frescor do dia repousavam, saciados
De meus braços meu coração meu fígado e do que havia
Na esfera oca do meu crânio. E disse Deus:
Viverão tais ossos? Tais ossos
Viverão? E o que pulsara outrora
Nos ossos (secos agora) disse num cicio:
graças à bondade desta Dama
E à sua beleza, e porque ela
A meditar venera a Virgem,
É que em fulgor resplandecemos. E eu que estou aqui
dissimulado
Meus feitos ofereço ao esquecimento, e consagro meu amor
Aos herdeiros do deserto e aos frutos ressequidos.
Isto é o que preserva
Minhas vísceras a fonte de meus olhos e as partes indigestas
Que os leopardos rejeitaram. A Dama retirou-se
De branco vestida, orando, de branco vestida.
Que a brancura dos ossos resgate o esquecimento.
A vida os excluiu. Como esquecido fui
E preferi que o fosse, também quero esquecer
Assim contrito, absorto em devoção. E disse Deus:
Profetiza ao vento e ao vento apenas, pois somente
O vento escutará. E os ossos cantaram em uníssono
Com o estribilho dos grilos, sussurrando:
Senhora dos silêncios
Serena e aflita
Lacerada e indivisa
Rosa da memória
Rosa do oblívio
Exânime e instigante
Atormentada tranqüila
A única Rosa em que
Consiste agora o jardim
Onde todo amor termina
Extinto o tormento
Do amor insatisfeito
Da aflição maior ainda
Do amor já satisfeito
Fim da infinita
jornada sem termo
Conclusão de tudo
O que não finda
Fala sem palavra
E palavra sem fala
Louvemos a Mãe
Pelo Jardim
Onde todo amor termina.
Cantavam os ossos sob um zimbro, dispersos e alvadios,
Alegramo-nos de estar aqui dispersos,
Pois uns aos outros bem nenhum fazíamos,
Sob uma árvore ao frescor do ~a, com a bênção das areias,
Esquecendo uns aos outros e a nós próprios, reunidos
Na quietude do deserto. Eis a terra
Que dividireis conforme a sorte. E partilha ou comunhão
Não importam. Eis a terra. Nossa herança.
III
Na primeira volta da segunda escada
Voltei-me e vi lá embaixo
O mesmo vulto enrodilhado ao corrimão
Sob os miasmas que no fétido ar boiavam
Combatendo o demônio das escadas, oculto
Em dúbia face de esperança e desespero.
Na segunda volta da segunda escada
Deixei-os entrançados, rodopiando lá embaixo;
Nenhuma face mais na escada em trevas,
Carcomida e úmida, como a boca
Imprestável e babugenta de um ancião,
Ou a goela serrilhada de um velho tubarão.
Na primeira volta da terceira escada
Uma túmida ventana se rompia como um figo
E além do espinheiro em flor e da cena pastoril
A silhueta espadaúda de verde e azul vestida
Encantava maio com uma flauta antiga.
Doce é o cabelo em desalinho, os fios castanhos
Tangidos por um sopro sobre os lábios,
Cabelos castanhos e lilases;
Frêmito, música de flauta, pausas e passos
Do espírito a subir pela terceira escada,
Esmorecendo, esmorecendo; esforço
Para além da esperança e do desespero
Galgando a terça escala.
Senhor, eu não sou digno
Senhor, eu não sou digno
mas dizei somente uma palavra.
IV
Quem caminhou entre o violeta e o violeta
Quem caminhou por entre
Os vários renques de verdes diferentes
De azul e branco, as cores de Maria,
Falando sobre coisas triviais
Na ignorância e no saber da dor eterna
Quem se moveu por entre os outros e como eles caminhou
Quem pois revigorou as fontes e as nascentes tornou puras
Tornou fresca a rocha seca e solidez deu às areias
De azul das esporinhas, a azul cor de Maria,
Sovegna vos
Eis os anos que permeiam, arrebatando
Flautas e violinos, restituindo
Aquela que no tempo flui entre o sono e a vigília, oculta
Nas brancas dobras de luz que em torno dela se embainham.
Os novos anos se avizinham, revivendo
Através de uma faiscante nuvem de lágrimas, os anos,
resgatando
Com um verso novo antigas rimas. Redimem
O tempo, redimem
A indecifrada visão do sonho mais sublime
Enquanto ajaezados unicórnios a essa de ouro conduzem.
A irmã silenciosa em véus brancos e azuis
Por entre os teixos, atrás do deus do jardim,
Cuja flauta emudeceu, inclina a fronte e persigna-se
Mas sem dizer palavra alguma
Mas a fonte jorrou e rente ao solo o pássaro cantou
Redimem o tempo, redimem o sonho
O indício da palavra inaudita, inexpressa
Até que o vento, sacudindo o teixo,
Acorde um coro de murmúrios
E depois disto nosso exílio
V
Se a palavra perdida se perdeu, se a palavra usada se gastou
Se a palavra inaudita e inexpressa
Inexpressa e inaudita permanece, então
Inexpressa a palavra ainda perdura, o inaudito Verbo,
O Verbo sem palavra, o Verbo
Nas entranhas do mundo e ao mundo oferto;
E a luz nas trevas fulgurou
E contra o Verbo o mundo inquieto ainda arremete
Rodopiando em torno do silente Verbo.
Ó meu povo, que te fiz eu.
Onde encontrar a palavra, onde a palavra
Ressoará? Não aqui, onde o silêncio foi-lhe escasso
Não sobre o mar ou sobre as ilhas,
Ou sobre o continente, não no deserto ou na úmida planície.
Para aqueles que nas trevas caminham noite e dia
Tempo justo e justo espaço aqui não existem
Nenhum sítio abençoado para os que a face evitam
Nenhum tempo de júbilo para os que caminham
A renegar a voz em meio aos uivos do alarido
Rezará a irmã velada por aqueles
Que nas trevas caminham, que escolhem e depois te desafiam,
Dilacerados entre estação e estação, entre tempo e tempo, entre
Hora e hora, palavra e palavra, poder e poder, por aqueles
Que esperam na escuridão? Rezará a irmã velada
Pelas crianças no portão
Por aqueles que se querem imóveis e orar não podem:
Orai por aqueles que escolhem e desafiam
Ó meu povo, que te fiz eu.
Rezará a irmã velada, entre os esguios
Teixos, por aqueles que a ofendem
E sem poder arrepender-se ao pânico se rendem
E o mundo afrontam e entre as rochas negam?
No derradeiro deserto entre as últimas rochas azuis
O deserto no jardim o jardim no deserto
Da secura, cuspindo a murcha semente da maçã.
Ó meu povo.
VI
Conquanto não espere mais voltar
Conquanto não espere
Conquanto não espere voltar
Flutuando entre o lucro e o prejuízo
Neste breve trânsito em que os sonhos se entrecruzam
No crepúsculo encruzilhado de sonhos entre o nascimento e a
morte
(Abençoai-me pai) conquanto agora
Já não deseje mais tais coisas desejar
Da janela debruçada sobre a margem de granito
Brancas velas voam para o mar, voando rumo ao largo
Invioladas asas
E o perdido coração enrija e rejubila-se
No lilás perdido e nas perdidas vozes do mar
E o quebradiço espírito se anima em rebeldia
Ante a arqueada virga-áurea e a perdida maresia
Anima-se a reconquistar
O grito da codorniz e o corrupio da pildra
E o olho cego então concebe
Formas vazias entre as partas de marfim
E a maresia reaviva o odor salgado das areias
Eis o tempo da tensão entre nascimento e morte
O lugar de solidão em que três sonhos se cruzam
Entre rochas azuis
Mas quando as vozes do instigado teixo emudecerem
Que outro teixo sacudido seja e possa responder.
Irmã bendita, santa mãe, espírito da fonte e do jardim,
Não permiti que entre calúnias a nós próprios enganemos
Ensinai-nos o desvelo e o menosprezo
Ensinai-nos a estar postos em sossego
Mesmo entre estas rochas,
Nossa paz em Sua vontade
E mesmo entre estas rochas
Mãe, irmã
E espírito do rio, espírito do mar,
Não permiti que separado eu seja
E que meu grito chegue a Ti.
T.S.Eliot
Tradução de Ivan Junqueira, do original “Collected Poems 1909-1962”, para a Editora Nova Fronteira em 1981
Texto: José Tolentino Mendonça
Música: "Starry Starry Night", interpretada por Don McLean
Fernando Pessoa escrevia: «A espantosa realidade das coisas/ é a minha descoberta de todos os dias». É isso que peço, Senhor. Não nos deixes no embaraço baço da superfície; nos olhares e nos juízos que roçam apenas a periferia, que descrevem o exterior, mas nada sabem do gume. Dá-nos o saber de reparar a fundo, de escutar o indizível segredo que torna todos e tudo espelho do Teu assombro. Impele-nos à descoberta de um real que nos é tão próximo, mas afinal desconhecido. Que o nosso coração esteja vigilante para acolher o modo surpreendente como Tu, ó Deus, sempre Te revelas! Hoje. Agora.
José Tolentino Mendonça
Não nos podemos acomodar com a divisão dos cristãos, e somos legitimamente impacientes até que chegue finalmente o dia de nossa reconciliação. Contudo, estamos conscientes de que o diálogo ecuménico não é vivido em todos os lugares com o mesmo ritmo. Alguns avançam a grandes passos, outros são mais tímidos. Como Paulo nos exorta, devemos saber ser pacientes para com todos.
...
Por vezes, é para com Deus mesmo que nos mostramos impacientes. Como o povo no deserto, também nós gritamos a Deus: porquê toda esta caminhada penosa? Guardemos, pois, a confiança: Deus responde às nossas orações, à sua maneira, no tempo oportuno. Ele saberá suscitar novas iniciativas para a reconciliação dos cristãos, de acordo com as necessidades do nosso tempo.
Conselho Pontifício para a Promoção da Unidade dos Cristãos
Dias realmente úteis
Às vezes, demasiadas vezes,
a vida assemelha-se a uma repartição cinzenta,
onde os horários se cumprem sem empenho.
Estamos, mas fazemos sem compromisso íntimo.
Falamos e fazemos,
mas sentindo o nosso interesse noutro lado.
Vivemos, claro, mas com o coração distante.
Como é necessário tornar realmente úteis
os dias úteis!
Úteis não apenas por imposição do calendário.
Úteis, porque vividos com generosidade e sentido.
Úteis, porque não os atropelamos
na voragem das solicitações,
na dispersão das coisas,
mas sabemos (ou melhor, ousamos) fazer deles
lugar de criação e descoberta,
tempo de labor e de escuta,
modo de acção e de contemplação.
É preciso acolher o “inútil”
se quisermos chegar ao verdadeiramente útil.