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As pedras de tropeço nos Evangelhos: o choque que torna a fé mais próxima

Imagem Capa (det.) | D.R.

As pedras de tropeço nos Evangelhos: o choque que torna a fé mais próxima

Uma antologia comentada de 140 passos evangélicos que podem causar algum choque. Por exemplo: «Se alguém vem a mim e não odeia o seu pai, a sua mãe (...) e até a própria vida, não pode ser meu discípulo» (Lucas 14,26); «Não acrediteis que Eu vim trazer a paz à Terra; vim trazer não a paz, mas a espada!» (Mateus 10,34).

Os Evangelhos contêm linhas que parecem quase uma armadilha para o leitor não-crente, mas também para quem crê. O cardeal Gianfranco Ravasi, presidente do Pontifício Conselho da Cultura, enfrenta o escândalo no livro "Le pietre d’inciampo del Vangelo" (As pedras de tropeço do Evangelho) ", lançado esta terça-feira em Itália (editora Mondadori, 276 pp.).

Apresentamos um excerto da introdução:

«A cena tem como pano de fundo a costa norte do lago de Tiberíades. Lá despontava um centro importante, Cafarnaum, em hebraico "povoação da consolação" ou "povoação de Naum", também nome de um profeta bíblico. Por lá passava uma estrada que conduzia à Síria, uma artéria comercial de fronteira: era por isso que Cafarnaum era dotada de uma alfândega, cujo ofício era dirigido pelo funcionário Mateus Levi, o futuro apóstolo. Sobre as casas modestas dos bairros dos pescadores - onde se situava a residência de um outro discípulo de Cristo, Simão Pedro, revelada pela arqueologia no século passado - erguia-se uma sinagoga erigida com o contributo de um oficial romano amigo dos hebreus (cf. Lucas 7,4-5).

Jesus, que desde há pouco se tinha exposto no panorama público da Galileia, a região norte da Terra Santa, com as suas pregações impressionantes e com os seus atos surpreendentes, entra naquela sinagoga e começa a falar. É um discurso desconcertante, o seu, de tal maneira que gera uma reação hostil da parte não só da multidão que o escutava, também dos seus primeiros discípulos. Experimentemos também nós a aproximarmo-nos e a recolher o eco de algumas frases: "Se não comerdes a carne do Filho do homem e não beberdes o seu sangue, não tereis a vida em vós (...) porque a minha carne é verdadeira comida e o meu sangue é verdadeira bebida".

É o evangelista João que regista esse discurso no capítulo seis do seu escrito e é também ele a assinalar a sensação de aversão e repugnância do auditório diante de uma proposta que parecia estar próxima do canibalismo, ainda que sagrado. Antes de tudo, a multidão: "Os judeus puseram-se a discutir asperamente entre eles: como pode Ele dar-nos a sua carne a comer?" (João 6,52). A seguir é a vez dos discípulos: "Muitos dos seus discípulos, depois de o ouvirem, disseram: esta palavra é dura! Quem pode escutá-la?" (João 6,60). No original grego usa-se o adjetivo "sklerós": é um discurso "esclerótico", não só duro mas também incompreensível, recalcitrante a toda a inteligência normal.

Aqueles homens que tinham seguido Jesus com entusiasmo voltam-lhe agora as costas, saem daquela sinagoga para a praceta à sua frente. É ainda João a representar o desenvolvimento da cena: "A partir daquele momento muitos dos seus discípulos voltaram atrás e não andavam mais com Ele" (6,66). Retomavam, então, o caminho das suas povoações onde os esperavam talvez os barcos de pesca que antes tinham abandonado com tanto fervor, ou então voltavam aos magros campos que tinham fatigadamente cultivado. O próprio Jesus tinha encontrado com um verbo a definição mais adaptada para exprimir o seu estado interior: "Isto escandaliza-vos?" (João 6,61).

O verbo italiano é decalcado do grego do Evangelho, "skandalízei": literalmente remete para a pedra de obstáculo que faz tropeçar e cair uma pessoa que avança por uma vereda acidentada ou num trilho de montanha. Este verbo ressoa 29 vezes nos Evangelhos (15 vezes encontra-se o substantivo "skándalon"), sendo prevalentemente associado à experiência de fé: é renegá-la, rejeitá-la, entrar em crise ou fazer aos outros uma espécie de rasteira para que da fé caiam na incredulidade. O termo, na nossa aceção mais comum (sobretudo no adjetivo "escandaloso") adquiriu uma conotação sexual, evocando a obscenidade, a indecência.

Na linguagem do Novo Testamento esta palavra conserva, sim, o elemento de embaraço e de perturbação, colora-se de indignação e de desgosto, mas orienta-se quase sempre para o desconcerto em chave religiosa. Como escreverá S. Paulo, Cristo crucificado é escândalo para os judeus (cf. 1 Coríntios 1,23), faz perder confiança e adesão, introduzindo uma espécie de repulsa e até de abominação. E, com efeito, as palavras de Cristo sobre a sua carne como alimento e sobre o seu sangue como bebida suscitaram não só embaraço e desconcerto, mas um verdadeiro e próprio horror no auditório daquele discurso na sinagoga de Cafarnaum.

De facto, como é sabido, na Bíblia o sangue é sinal da própria vida e não é lícito sequer tocar num corpo ferido e ensanguentado, porque se ficaria contaminado e se tornaria impuro e incapaz de realizar todo o ato de culto. Como não recordar, na parábola do Bom Samaritano, o comportamento do sacerdote e do levita que passam para o outro lado da estra onde jazia aquele infeliz envolto em sangue e meio morto (cf. Lucas 10,31-32)? Na aliança primordial entre Deus e a humanidade, que tem Noé por mediador, após o juízo do dilúvio lê-se este preceito divino: "Pedirei contas do vosso sangue a todos os animais, por causa das vossas vidas; e ao homem, igualmente, pedirei contas da vida do homem, seu irmão" (Génesis 9,5).

Para nós o horror quanto às palavras de Jesus sobre o alimentar-se da sua carne e o beber o seu sangue seria ligado à antropofagia, um dos tabus dominantes em quase todas as civilizações. Evidentemente bem diferente era o sentido que pretendia Jesus e que nós agora interpretamos à luz da Eucaristia: o pão e o vinho são sinais de uma "comunhão" de vida com o corpo e o sangue, isto é, com a pessoa de Cristo, e, portanto, com a divindade, numa intimidade plena que gera a "vida eterna", o mesmo é dizer a vida divina, como repete o próprio Cristo naquele discurso.

Mas porque é que reconstruímos esta cena com a reação chocada dos discípulos? É um episódio que habitualmente é reevocado ainda hoje pelos peregrinos: eles fazem uma pausa na área arqueológica de Cafarnaum onde se erigia a antiga sinagoga onde Jesus proferiu aquele discurso, agora substituída pelos restos de uma outra imponente sinagoga do séc. IV. Lá eles leem precisamente o capítulo 6 do Evangelho de João. Propusemos aquele acontecimento porque nas páginas que se seguem queremos convidar a uma particular viagem textual nos quatro Evangelhos à procura das palavras-escândalo, aquelas que fazem tropeçar o leitor, mesmo quem é firmemente cristão. São precisamente as palavras duras e difíceis, que exigem uma especial interpretação. Não temamos enfrentar este itinerário algo árduo e árido, recordados de uma frase significativa do historiador inglês, que viveu no séc. XVII, Thomas Fuller, na sua "Gnomologia": "Tudo é difícil antes de ser simples".»

 

In "Avvenire"
Trad.: Rui Jorge Martins
Publicado em 16.09.2015

 

 

 
Imagem Capa | D.R.
É um discurso desconcertante, o seu, de tal maneira que gera uma reação hostil da parte não só da multidão que o escutava, também dos seus primeiros discípulos
"Muitos dos seus discípulos, depois de o ouvirem, disseram: esta palavra é dura! Quem pode escutá-la?" (João 6,60). No original grego usa-se o adjetivo "sklerós": é um discurso "esclerótico", não só duro mas também incompreensível, recalcitrante a toda a inteligência normal
Na linguagem do Novo Testamento esta palavra conserva, sim, o elemento de embaraço e de perturbação, colora-se de indignação e de desgosto, mas orienta-se quase sempre para o desconcerto em chave religiosa. Como escreverá S. Paulo, Cristo crucificado é escândalo para os judeus
São precisamente as palavras duras e difíceis, que exigem uma especial interpretação. Não temamos enfrentar este itinerário algo árduo e árido, recordados de uma frase significativa do historiador inglês, que viveu no séc. XVII, Thomas Fuller, na sua "Gnomologia": "Tudo é difícil antes de ser simples"
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