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Assim nasceu Portugal: Entre Igreja e monarquia, conflito e convergência

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Assim nasceu Portugal: Entre Igreja e monarquia, conflito e convergência

A emergência do reino português ocorreu no contexto de uma Península Ibérica em construção. Construção ditada pela expansão da Reconquista para sul, mas também pela rivalidade latente entre os diferentes pólos de poder que, gradualmente, se consolidavam: Leão, Castela, Aragão e Navarra.

Neste contexto, a ligação à Santa Sé por parte do reino português revestiu-se de uma particular importância. O juramento de vassalagem que Afonso Henriques teria feito ao papa Inocêncio II por intermédio do seu legado Guido de Vico, em 1143, com a promessa de pagamento de um censo anual, transformava o reino português em vassalo direto da Santa Sé, eximindo-o da tutela do imperador Afonso VII.

Mas seria já no pontificado de Lúcio II, iniciado em março de 1144, que a questão do enfeudamento de Afonso Henriques à Santa Sé seria retomada. O arcebispo de Braga, D. João Peculiar, ter-se-á então dirigido à cúria e foi aí que, em maio de 1144, recebeu a resposta epistolar à carta de Afonso Henriques, que Erdmann classificou «de obra-prima da diplomacia papal».

Neste documento, Lúcio II aceitava a homenagem feita pelo jovem governante bem como o censo que se tinha comprometido a pagar. No entanto, isentava-se de formular opinião sobre as condições colocadas por D. Afonso, em relação ao reconhecimento da sua dignidade e à autonomia do seu território de todos os outros poderes, além do do Papa e do do seu legado. Aliás, Lúcio II dirigia-se-lhe nomeando-o "dux"e não rei, como era pretendido por Afonso Henriques.

No entanto, apesar dos escassos resultados obtidos, a ligação estabelecida com a Santa Sé vir-se-ia a revelar profícua em outras situações posteriores.

Além do mais esta ligação ganha um particular relevo pelo contexto político europeu em que foi feito. Na realidade, o papa a quem Afonso Henriques prestou vassalagem era Inocêncio II, um dos papas de uma brilhante sucessão de eclesiásticos que governaram a Igreja entre a segunda metade do século XI e o final da primeira metade do século XIII. Estes cerca de duzentos anos marcaram, de forma indelével, a evolução da Igreja medieval, tendo representado o período áureo do poder papal e da sua influência.

 

Reforma gregoriana

A chamada reforma gregoriana, que tomou a sua designação de Gregório VII (1073-1085), marca, sem dúvida, o início de um esforço de reforma que atravessou toda a Igreja ao longo destas centúrias. Reforma cuja concretização trouxe o reforço das instituições eclesiásticas mas facilitou também a erupção de conflitos entre os dois gládios, ou seja, entre o poder temporal e o espiritual.

Na verdade, o relacionamento entre muitos dos reinos cristãos e o papado destes séculos foi feito na base de um complexo jogo de equilíbrios de interesses e de poderes que, por vezes, evoluíam até formas violentas de confronto. A defesa intransigente das liberdades e dos privilégios eclesiásticos e da superioridade do poder espiritual, ditada pelos canonistas de Roma, não se coadunava facilmente com o processo de constituição dos reinos que, um pouco por toda a Europa, ganhava novo alento, após a pulverização feudal dos séculos anteriores.

Os pontífices destas centúrias encetaram uma reorganização, tanto institucional como doutrinária, da Igreja, concretizada na promulgação dos primeiros corpos legislativos canónicos e das medidas de reforma das instituições eclesiásticas. Os sucessivos concílios gerais convocados pelo papado, nomeadamente os de Latrão, realizados, respetivamente, em 1123, 1139, 1179 e 1215, espelham bem, pelo conjunto das suas atas, esse esforço de reforma que caracterizou a Igreja destas centúrias.

 

Querela das investiduras: uma das faces do conflito entre Igreja e poder monárquico

Mas a reorganização tentada visava impor, pela ação e pela doutrina, a superioridade do poder espiritual numa Europa em mudança.

O relacionamento com o Império germânico seria dominado, a partir do final do século XII, pela questão da Sicília e pela possibilidade de o Império rodear o Estado papal, tanto a norte como a sul. Esta hipótese, ferozmente combatida por muitos dos papas destes séculos, resultou em diversas tentativas de minar o poder germânico na região.

Mas como pano de fundo desta relação estaria ainda o conflito travado desde a segunda metade do século XI, em torno da chamada querela das investiduras, ou seja, da crescente recusa por parte da Igreja em que os seus membros fossem designados ou investidos por senhores leigos, ou, de alguma forma, obrigados a prestar juramento de vassalagem ou de obediência a alguém que não o seu chefe espiritual.

Esta querela que opôs o Império ao papado constituiu uma das fases mais violentas de um relacionamento marcado pela dissensão. No entanto, o auge de todo este conflito poderá, talvez, ser situado no ato de deposição do imperador Frederico II, rei da Sicília, realizado também em 1245, uns dias antes da promulgação da bula de deposição de Sancho II, pelo papa Inocêncio IV.

Também com a França e a Inglaterra, se bem que em diferentes cronologias, o relacionamento nem sempre foi pacífico.

Após a morte de Luís VII, a ascensão de Filipe Augusto em França, em 1180, marcará o início de um novo relacionamento, bem mais conturbado, com o papado. O conflito travado em torno dos casamentos régios, duramente condenados por Roma, sob a acusação de consanguinidade do monarca com a sua terceira esposa Agnès e de bigamia, em virtude da segunda mulher se encontrar ainda viva, constituíram apenas a ponta visível de um confronto mais amplo que se travava em torno dos direitos reclamados pelo monarca na posse dos benefícios vacantes e, em última instância, na superioridade do poder régio no interior das suas fronteiras territoriais.

A distância geográfica que separava o papado do reino inglês favorecia a manutenção de uma relação marcada pela reverência dos monarcas pelo distante poder pontifical, utilizando-o no apoio à reforma da Igreja levada a efeito pelos sucessores de Guilherme, "o Conquistador", após 1066. Reforma que procurava, acima de tudo, estender a capacidade de intervenção régia a toda a Igreja inglesa, questionando, desta forma, as liberdades e os privilégios eclesiásticos de que Thomas Becket se assumiu como defensor em meados do século XII. Mas a relação deste reino com o papado era ainda marcada pelo conflito que desde cedo opôs a França à Inglaterra, e em cujo equilíbrio os papas não raras vezes tentaram intervir.

Foi, pois, neste contexto a que os reinos peninsulares não se eximiram, que o processo de formação do reino português decorreu.

 

Braga, Toledo e Compostela: um triângulo conflituoso

A ligação direta a Roma encetada em 1143 constitui, sem dúvida, a face mais visível de uma política eclesiástica bem mais abrangente. Com efeito, muito se tem discutido sobre a possível convergência política e de interesses pessoais entre o primeiro monarca português e D. João Peculiar, arcebispo de Braga entre 1138 e 1175. O seu longo governo, praticamente contemporâneo do reinado do próprio Afonso Henriques, poderá ter favorecido a convergência visível em múltiplos aspetos da ação destas duas personagens.

Com efeito, as várias viagens a Roma, sete no total, feitas pelo arcebispo ao longo do seu governo, e os privilégios que através delas conseguiu alcançar, no sentido do fortalecimento do poder bracarense e de uma unidade geográfica da área sujeita à sua jurisdição, aparentemente coincidente com o traçado político do reino que lenta e militarmente se ia formando, parecem ser um cabal exemplo dessa comunhão de interesses.

Mas o governo de João Peculiar foi ainda marcado, quase na sua totalidade, pelos conflitos que atravessavam a Igreja hispana, praticamente desde o início da conquista cristã, e que se prendiam com o estabelecimento das fronteiras diocesanas e com o exercício das jurisdições religiosas.

Um destes conflitos, com repercussões em toda a Península, ligou-se diretamente à restauração da Sé de Toledo após a sua conquista, em 1085, por Afonso VI e à sua reivindicação da dignidade de sede primacial, que recebeu em 1088. O outro esteve ligado a Compostela e à defesa que os arcebispos da sé galega fizeram da supremacia da sua diocese.

No que respeita ao título de primado, este foi pedido por Afonso VI e pelo recém-arcebispo toledano, Bernardo, pouco após a reconquista da cidade. Em princípio, não implicava poderes particulares assumindo-se, eminentemente, como um título honorífico. Contudo, no caso de Toledo, a obtenção deste título implicava o reconhecimento da sua superioridade sobre as sés existentes e sobre as que viessem a existir na Península, expressa na obrigação de prestação de obediência por parte dos vários prelados hispanos, tal como a bula de confirmação papal viria a consignar. Desta forma, Afonso VI e Bernardo de Toledo procuravam a identidade possível entre um centro político da Hispânia e um centro religioso, localizado na antiga capital do reino visigodo .

Braga recusou, desde cedo, o reconhecimento desta supremacia. A deslocação de Bernardo de Toledo a Braga, em 1089, a fim de, na sua condição de primaz, consagrar a catedral, junto com a manutenção da sua recusa em reconhecer a dignidade metropolitana ao seu bispo, D. Pedro, teria estado, segundo Avelino de Jesus da Costa, na base do processo que levaria à deposição deste eclesiástico, cerca de 1091, após a sua adesão ao antipapa, Clemente III47.

Da mesma forma, os sucessores de D. Pedro manteriam, com Toledo, uma relação marcada pela recusa constante ou pela aceitação tácita do primado de Toledo, apesar das sucessivas cartas papais que exortavam ao seu reconhecimento.

Retomado pelo poder político e pelas autoridades eclesiásticas em determinados contextos ou temporariamente esquecido, este conflito arrastar-se-á ao longo dos séculos XII e XIII até cair no esquecimento, ou seja, até ao momento em que as questões colocadas pelo problema do primado perderam importância politica.

Já no que respeita ao conflito com Compostela, as questões em causa parecem ter sido mais claras.

De acordo com o explanado por Urbano III, em 1186, aos seus enviados João de Brescia e João de Bérgamo, encarregues da resolução deste conflito, este assentaria em cinco questões principais: a posse das igrejas de São Vítor e de São Frutuoso bem como de alguns bens situados na diocese de Braga; o uso da cruz por parte do arcebispo de Compostela no território de Braga; a posse do bispado de Zamora reivindicada pelo arcebispo bracarense; a jurisdição sobre as dioceses de Coimbra, Viseu, Lamego e Idanha, outrora pertencentes à arquidiocese de Mérida e cujos direitos Compostela tinha recebido, em 1120, em virtude de Mérida se encontrar ainda em posse dos muçulmanos; e a detenção dos bispados recém-restaurados, a esta data, de Lisboa e Evora.

A partir do enunciado de questões em causa vislumbra-se, facilmente, que, mais do que o conflito com Toledo, seria a oposição com Compostela que verdadeiramente questionava a possibilidade de coincidência do mapa político com o religioso e o reconhecimento da autoridade arquiepiscopal de Braga.

Marcado por episódios por vezes violentos, este conflito arrastar-se-ia, pelo menos, até 1199.

Com efeito, nesta data Inocêncio III promulgou um conjunto de bulas que visavam colocar um fim a este conflito, sancionando a existência de um mapa religioso em que a arquidiocese de Compostela estendia a sua jurisdição às dioceses de Lamego, Idanha, Lisboa e Évora, enquanto Braga recebia as dioceses de Tui, Orense, Lugo, Mondonhedo e Astorga, além de Coimbra e Viseu. Concedeu ainda a Santiago de Compostela o bispado de Zamora, ordenando ao prelado compostelano o abandono das suas pretensões sobre as igrejas de São Vítor e São Frutuoso e sobre metade de Braga.

Aparentemente, estas bulas vieram colocar um fim possível neste conflito.

Na verdade, algumas das dioceses incluídas no território português passaram a estar sujeitas à jurisdição arquidiocesana de Compostela, e aí permaneceriam até ao final do século XIV, da mesma forma que Braga estenderia a sua jurisdição a dioceses situadas em território galego.

No entanto, não foi essa sujeição que questionou a ligação destas dioceses e de muitos dos seus bispos aos monarcas portugueses. Os seus nomes não deixaram de figurar entre as testemunhas dos documentos régios, e a jurisdição arquidiocesana parece ter sido pouco mais do que uma subordinação formal ou uma instância de apelo em caso de conflito entre instituições religiosas.

Com efeito, a partir de 1199, a oposição parece resolvida porque muito do seu conteúdo político teria perdido atualidade num reino que, no final do século XII, se encontrava já reconhecido pelo papado e pelos reinos vizinhos.

Aliás, para Inocêncio III, o papa que fez promulgar estas bulas, a pacificação da cristandade peninsular era um objetivo primordial. Em 1211, exortava o próprio arcebispo de Toledo a abandonar, temporariamente, as suas reivindicações sobre o primado toledano, argumentando que essas reivindicações apenas poderiam causar divergências entre os reinos hispanos, numa altura em que o verdadeiro inimigo era o muçulmano.

Na verdade, interessava a Inocêncio III congraçar os esforços peninsulares naquela que se viria a revelar uma das batalhas fulcrais da Reconquista cristã, responsável pela alteração do equilíbrio de forças entre os campos cristão e muçulmano, alteração que se vinha a delinear mas que a Batalha de Navas de Tolosa permitiria concretizar.

A unidade hispana interessava a Inocêncio III na medida em que a sua visão reformista da Igreja, expressa de forma particular nas atas do IV Concílio de Latrão, assentava na unidade da Igreja, no poder do vigário de Cristo sobre os poderes seculares, em determinadas condições.

Identificado como uma das fases áureas do poder papal, o pontificado de Inocêncio III entre 1198 e 1216 coincide, no que se refere ao reino português, com a transição do reinado de Sancho I para Afonso II e com os primeiros anos de governação deste monarca.

No fundo, coincidirá com o eclodir dos primeiros conflitos entre o filho e herdeiro de Afonso Henriques e alguns membros do clero, nomeadamente com o bispo do Porto, D. Martinho Rodrigues, e com o de Coimbra, D. Pedro Soares.

 

Bula "Manifestis Probatum"

Mas o final do reinado de Afonso Henriques foi ainda marcado por um outro facto de inquestionável importância no processo de formação do reino português: a outorga, pelo papa Alexandre III, da bula "Manifestis Probatum" em 1179.

Considerada como «a carta de reino para Portugal», o documento que reconheceu não apenas Afonso Henriques como rei, mas a «Portugal como reino», sancionava ainda a ligação do reino emergente à Santa Sé, baseando-a, em grande parte, nas qualidades guerreiras demonstradas pelo nosso primeiro monarca no decurso do seu longo governo.

E nem o facto de esta outorga ter sido feita no ocaso do seu reinado, quando o caráter guerreiro do agora já velho monarca começava a declinar, lhe retira importância.

Aliás, tanto o seu imediato sucessor, Sancho I, como o seu neto, Afonso II, preocupar-se-iam em obter a reconfirmação desta bula, demonstrando desta forma que a importância do conteúdo do diploma de 1179 ultrapassava a conjuntura em que tinha sido doada.

Esta transcrição omite as notas de rodapé. Os subtítulos foram acrescentados pela Redação.

 

Hermínia Vasconcelos Vilar
In "História Religiosa de Portugal", ed. Círculo de Leitores
Publicado em 10.06.2015 | Atualizado em 29.04.2023

 

 
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A defesa intransigente das liberdades e dos privilégios eclesiásticos e da superioridade do poder espiritual, ditada pelos canonistas de Roma, não se coadunava facilmente com o processo de constituição dos reinos que, um pouco por toda a Europa, ganhava novo alento, após a pulverização feudal dos séculos anteriores
Como pano de fundo desta relação estaria ainda o conflito travado desde a segunda metade do século XI, em torno da chamada querela das investiduras, ou seja, da crescente recusa por parte da Igreja em que os seus membros fossem designados ou investidos por senhores leigos, ou, de alguma forma, obrigados a prestar juramento de vassalagem ou de obediência a alguém que não o seu chefe espiritual
Muito se tem discutido sobre a possível convergência política e de interesses pessoais entre o primeiro monarca português e D. João Peculiar, arcebispo de Braga entre 1138 e 1175. O seu longo governo, praticamente contemporâneo do reinado do próprio Afonso Henriques, poderá ter favorecido a convergência visível em múltiplos aspetos da ação destas duas personagens
As várias viagens a Roma, sete no total, feitas pelo arcebispo ao longo do seu governo, e os privilégios que através delas conseguiu alcançar, no sentido do fortalecimento do poder bracarense e de uma unidade geográfica da área sujeita à sua jurisdição, aparentemente coincidente com o traçado político do reino que lenta e militarmente se ia formando, parecem ser um cabal exemplo dessa comunhão de interesses
Um destes conflitos, com repercussões em toda a Península, ligou-se diretamente à restauração da Sé de Toledo após a sua conquista, em 1085, por Afonso VI e à sua reivindicação da dignidade de sede primacial, que recebeu em 1088. O outro esteve ligado a Compostela e à defesa que os arcebispos da sé galega fizeram da supremacia da sua diocese
Interessava a Inocêncio III congraçar os esforços peninsulares naquela que se viria a revelar uma das batalhas fulcrais da Reconquista cristã, responsável pela alteração do equilíbrio de forças entre os campos cristão e muçulmano
Considerada como «a carta de reino para Portugal», o documento que reconheceu não apenas Afonso Henriques como rei, mas a «Portugal como reino», sancionava ainda a ligação do reino emergente à Santa Sé, baseando-a, em grande parte, nas qualidades guerreiras demonstradas pelo nosso primeiro monarca no decurso do seu longo governo
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