Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura - Logótipo
secretariado nacional da
pastoral da cultura
Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura - Logótipo
secretariado nacional da
pastoral da cultura

Assunção da Virgem: Espiritualidade, arte e cultura

Imagem Morte da Virgem (det.) | Caravaggio | 1604-1606 | Museu do Louvre, Paris, França

Assunção da Virgem: Espiritualidade, arte e cultura

Durante muitos séculos a solenidade da Assunção foi celebrada na Igreja católica sem qualquer definição doutrinal formal. Na maior parte dos lugares era a principal festa da Bem-aventurada Virgem Maria e é a padroeira de muitas das grandes catedrais marianas, como a de Notre Dame, em Paris. Que Maria foi «assunta ao céu, em corpo e alma», tornou-se um ensinamento oficial da Igreja católica em 1950, quando o papa Pio XII promulgou a bula “Munificentissimus Deus”. Muitas pessoas estavam convencidas de que o papa fora motivado pelos horrores da II Guerra Mundial, durante a qual muitos corpos humanos foram torturados e profanados. A doutrina proclama a natureza preciosa do corpo humano, que, de um modo que ainda não podemos compreender, é destinado à glória celeste e merece ser tratado com o máximo respeito.

Para o mundo urbano do princípio do século XXI a solenidade de Nossa Senhora da Assunção pode parecer estranha. É uma festa que honra toda a pessoa humana, corpo e alma; mas, ainda que a nossa sociedade esteja obcecada com objetos materiais, muitas vezes não nos conseguimos aperceber da dignidade dos nossos corpos materiais, que é dada por Deus. A Assunção é também um convite para celebrar a bondade e a alegria que Deus nos promete no fim do tempo, e em muitos locais da Europa a solenidade continua a ser um acontecimento marcante. Por isso, observemos alguma da história daquela que deve ser uma celebração gloriosa.

A mais antiga prova textual da solenidade da Assunção é oriunda da passagem do quinto para o sexto século, embora os investigadores pensem que esses textos contêm material que remonta, pelo menos, ao século III. Os textos mais remotos são conhecidos como as narrativas do “Transitus” (isto é, relacionam-se com a morte da Virgem) e contêm grandes variações nos seus detalhes, refletindo, provavelmente, o facto de terem emergido de diferentes tradições locais. Todavia, alguns elementos são constantes. Por exemplo, à Virgem é antecipadamente comunicado – normalmente por um anjo – que está prestes a morrer, e os apóstolos são miraculosamente transportados de vários pontos do mundo para estarem presentes ao seu lado, deitada no leito. Cristo recebe a sua alma, que toma a forma de uma criança, e condu-la para o céu. Algum tempo após o funeral e o sepultamento (a maioria dos textos refere três dias após a morte) os apóstolos veem o corpo da Mãe de Deus sendo levado para o céu. Na tradição que se espalhou na Igreja do Ocidente, o corpo e a alma de Maria voltam a unir-se no céu. Todos estes acontecimentos são frequentemente retratados na arte medieval e do renascimento, podendo ser prontamente reconhecidos.

Um dos aspetos mais interessantes dos primeiros textos é que Maria é vivamente apresentada como professora dos apóstolos. Por vezes dizem-nos que ela recebeu ensinamentos de Cristo, que passou para S. João antes de morrer. Noutros textos, das tradições copta e etíope, os apóstolos designam-na de sua professora ou mestra. Aparentemente é como se ela tivesse recebido ensinamentos de Cristo que permitiriam uma suave transição para o céu, e que aqueles que a seguiram e receberam esses ensinamentos teriam acesso a uma iniciação sobre o que diz respeito ao céu, e a ele passariam aquando da morte.

Ao mesmo tempo, alguns dos primeiros textos do “Transitus” – especialmente os coptas (do Egito) – tornam claro que a liturgia da Assunção se relaciona com uma festa de colheitas de agosto; com efeito, a solenidade continuou a ser uma celebração das colheitas em muitos lugares durante muitos séculos. Por isso, desde os primeiros tempos a celebração da Assunção relacionou-se quer com a iluminação espiritual quer com o sustento do corpo. O facto de Maria ter sido assunta ao céu no seu corpo e na sua alma lembra-nos de que ambos estão vinculados à terra, com o ciclo das estações, e também ao domínio daquilo que é espiritual e intemporal. À medida que nos desligamos da terra que nos sustenta, esquecemos a nossa dependência das colheitas e perdemos muito do sentido da Assunção como uma festa das colheitas, mas a solenidade continua a ocorrer no dia em que muitas comunidades abençoam as suas culturas, ou o mar e aquilo que ele dá.

Mas o que mais contribui para a alegria da solenidade é o facto de emergir da humana consciência da morte. Todos nós fomos feitos do pó da terra e decompor-nos-emos no solo ou em cinzas. Ao mesmo tempo, todos temos a possibilidade de atingir a vida eterna. No fim, estas são as verdades que importam, e estas são as verdades que sustentam as histórias do passamento de Maria deste mundo para o próximo. É muitas vezes quando as pessoas chegam a uma profunda compreensão da sua própria mortalidade – quando veem que a morte é um fim de que não podem escapar – que procuram iluminação espiritual. E ao descobrirem o mistério da cruz e da ressurreição, discernem que nele há algo de mais verdadeiro e profundo do que a própria morte. O que Cristo cumpriu enquanto Deus e homem é partilhado com todos aqueles que participam na sua vida; e Maria, enquanto mulher que é apenas humana, revela-nos o que significa isso. A iconografia tradicional da Dormição de Maria – o seu “adormecimento” – mostra-nos Cristo tomando a sua alma como um bebé, espelhando assim as imagens da própria Virgem segurando Cristo quando menino. Tendo Ele descido à Terra devido às suas ações, é Ele que a conduz agora para estarem juntos no céu. Foi ela que nos deu a Palavra de Deus no seu humano nascimento, e é ela que, no seu renascimento celeste, ensina a verdade do que a divina humanidade de Cristo oferece a cada um de nós.

Muitas pessoas serão familiares da pintura “A morte da Virgem”, de Caravaggio. Quando foi executada pela primeira vez para uma capela privada de uma igreja carmelita de Roma, os foi rejeitada por ser considerada desapropriada. Mostra a Virgem, não na digna postura do leito de morte, associada às tradicionais representações da Dormição, mas estendida de costas, com os pés nus e tornozelos inchados. Os apóstolos observam e Maria Madalena senta-se, em lágrimas, entre o espetador e o corpo. Alguns dos apóstolos também choram; mas há um que tem a mão levantada, num gesto que parece mostrar um repentino reconhecimento ou compreensão de algo. Com efeito, ele, na sua lamentação, viu que – na morte que chega para todos nós – há esperança. Esta esperança não é mostrada por uma imagem de anjos e Cristo em forma humana, mas apenas por uma luz que atravessa a tela e brilha sobre a barriga da Mãe de Deus – no corpo que acolheu Deus incarnado. Este corpo, que é o corpo de uma mulher normal, foi escolhido por Deus para sua morada, e este corpo não será deixado na decomposição que, pela sua aparência, já se começou a formar. Não podemos articular apropriadamente que esperança foi revelada aos apóstolos, mas o espetador é convidado a partilhar a revelação. Porque se tornou humano a partir desta mulher, Cristo promete a todos os seres humanos, e a toda a criação, uma parte na sua glória.

 

Sarah Jane Boss
In "Thinking faith"
Trad.: Rui Jorge Martins
Publicado em 22.08.2016

 

 
Imagem Morte da Virgem | Caravaggio | 1604-1606 | Museu do Louvre, Paris, França
Desde os primeiros tempos a celebração da Assunção relacionou-se quer com a iluminação espiritual quer com o sustento do corpo. O facto de Maria ter sido assunta ao céu no seu corpo e na sua alma lembra-nos de que ambos estão vinculados à terra, com o ciclo das estações, e também ao domínio daquilo que é espiritual e intemporal
É muitas vezes quando as pessoas chegam a uma profunda compreensão da sua própria mortalidade – quando veem que a morte é um fim de que não podem escapar – que procuram iluminação espiritual. E ao descobrirem o mistério da cruz e da ressurreição, discernem que nele há algo de mais verdadeiro e profundo do que a própria morte
A esperança não é mostrada por uma imagem de anjos e Cristo em forma humana, mas apenas por uma luz que atravessa a tela e brilha sobre a barriga da Mãe de Deus – no corpo que acolheu Deus incarnado. Este corpo, que é o corpo de uma mulher normal, foi escolhido por Deus para sua morada, e este corpo não será deixado na decomposição
Relacionados
Destaque
Pastoral da Cultura
Vemos, ouvimos e lemos
Perspetivas
Papa Francisco
Teologia e beleza
Impressão digital
Pedras angulares
Paisagens
Umbrais
Evangelho
Vídeos