Leitura
Atlas do corpo e da imaginação
O fenomenólogo alemão Max Scheler interrogava-se se “a vida emotiva seria uma linguagem sensata do simbólico”? Desta pergunta assaz derivam outras. Quais são os atos essenciais do conhecimento que predispõem e dispõem para a qualidade do humano na sua totalidade? A vida emotiva que dispõe o corpo biológico para a escuta, para o timbre, o ritmo, para o agir pensado e pensante, para o silêncio expressivo, para o toque, exigerá sempre o mundo imaginativo do outro (objectual, humano ou Transcendente)? Serão estes atos de conhecimento ou qualidades secundárias de pouca relevância na construção social das relações humanas?
A comunhão do corpo é fonte de toda imaginação afetiva ordenada. O corpo é o lugar ético onde a liberdade se faz presente, não apenas a liberdade de, mas essencialmente, a liberdade para. Passar da pobreza imaginativa à comunhão da vida creatural, escrevia um psicanalista francês, é passar da “pobreza das conversações, falta de imaginação, pobreza do registo erótico […] ao acolhimento recíproco, à troca, à condivisão quotidiana, ao viver juntos”. Para fazer esta passagem do natural ao essencial, do bios ao ethos, talvez precisemos mais do que a simples disposição. Precisamos de um atlas do corpo e da imaginação. No fundo, uma ordem que lide com o conceito, com o fragmento, com a teoria e com as imagens que constroem a pessoa, a sua identidade mais íntima e profunda.

É nesta viagem iluminante que o extraordinário livro do escritor Gonçalo M. Tavares nos faz atravessar. Atlas do Corpo e da Imaginação. Teoria, Fragmento e Imagens (Caminho, 2013, 533 pp.). Um presente que faz renascer o corpo para a vida do espírito. Um delicioso presente em tempos de esclerose do imaginário cultural e social. Um atlas de viagem e rico de imaginação para ser meditado pacientemente. Na verdade, pela disposição das palavras, pela sobriedade intensa das ideias, pela visão evocativa/performativa das imagens, este livro devora-nos o tempo, sem respiro para a suspensão ou para o ato ocioso da ataraxia intelectual. Cada página deste livro é uma páscoa escrita e visiva, entrelaçada, sem paralelismos nem justaposições. Faz sentido quanto José Saramago escreveu sobre Gonçalo M. Tavares: “depois dele há um antes e um depois”. Frase curta mas extensa em significado!

Este Atlas do corpo e da Imaginação está construído em torno de quatro eixos cuidadosamente entrelaçados: I - O corpo no método; II - O corpo no mundo; III - O corpo no corpo; IV - O corpo na imaginação. A parte final apresenta o horizonte da reflexão sem pretensão de síntese ou de concluir o percurso iniciado. A intenção é de deixar o corpo aberto à imaginação criativa do leitor, a outras possíveis formas de pensar e de sentir a essência do corpo. O escritor joga com diversas linguagens para entrar na imaginação pensada e vivida da corporeidade irredutível à exaustão pré-compreensiva do conceito. A multiplicidade de registos linguísticos e expressivos não são de modo algum adornos. Eles são o timbre para entrar nessa grande viagem do corpo percecionado, sentido, visto, tocado, respirado, amado, pensado e contemplado. A passividade gestual não é ocasional, tal como não é passiva a originariedade do ser e do pensamento. O escritor chama justamente a este ato passivo, de receber algo do qual não se é a origem, um “investigar a partir de pontos conhecidos”, porque “todo o investigador investiga porque está perdido e será sensato não ter ilusão de que deixará de o estar. Deve sim, no final da sua investigação, estar mais forte. Continua perdido, mas está perdido com mais armas, com mais argumentos”.

Os textos dissecados em conceitos informes e em ideias tempestivas próprios do pensar filosófico são serenados pela metamorfose da metáfora narrativa da literatura na sua variação sinfónica de géneros e estilos. De algum modo é o pensar literário, poético, que subtrai a imaginação à claustrofobia do “pensamento classificado” (conceptual) do mobiliário categorial. Citando Gaston Bachelard, o Autor escreve: “Para cada conceito há uma gaveta no móvel das categorias. O conceito é um pensamento morto, já que é, por definição, pensamento classificado”. Esta convulsão conceptual do pensamento de Gonçalo M. Tavares, amainada poeticamente, é uma chance original para o pensamento do corpo que se faz imagem e da imagem que se faz corpo. As linguagens e os seus autores dialogam entre si dialecticamente de modo a chegar à essencialidade aberta das coisas.

Escreve Gonçalo Tavares: “o pensamento deve desconfiar daquilo que não se pode desenhar; a impossibilidade de desenho, a manifestação de um indisenhável, é um desvio para o abstrato. Pelo contrário aquilo que existe pode ser desenhado, mesmo que não seja facilmente localizável pelos olhos”. No fundo, há aqui uma geometria do pensamento que procura ligar convenção e criatividade linguística. Um “mobiliário mental” (Newman) que faz com que as coisas sejam essencialmente aquilo que são e que dispõem o pensamento imaginado para um assentimento consciente e afetivamente ordenado. Nesse sentido “há, na imaginação, uma rutura com o desenho geométrico, e um avançar em direção ao desenho livre. Faz sentido pensar, quando muito, numa geometria esquizofrénica, uma geometria de vias duplas e simultâneas, vias que se contradizem, geometria impossível de construir, de ser transformada em coisa com volume; geometria surpreendente, geometria torta”.

É, por isso, difícil de entender o pensamento que pensa obstinadamente a transparência dos conceitos na sua matiz filosófica, científica ou teológica! Será isso possível? A linguagem é na sua essência convencional, assente em referências de determinadas comunidades. Mas para além da transmissão sincrónica, há a transmissão diacrónica dos conhecimentos, de trazer o passado para o presente, de releituras do presente no passado. “Falar fora das fórmulas” (Maria Zambrano) só a grande literatura o poderá conseguir fazer com relativa eficácia e coerência. Pensar com e no corpo é entrar num trajeto pressentido mas não absolutamente demonstrado. Gonçalo Tavares, citando Steiner, escreve que “a ‘resposta’ suscitada pelo questionar autêntico é uma correspondência […] Nós sabemos as respostas e saber já as respostas demonstra, segundo Heidegger, a “não essencialidade ou a “pouca importância” da questão”.

Com Levinas podemos falar de “tonalidades afetivas”, tais como a mistura de cores gera uma panóplia de cores e efeitos que a separação ou a simples junção tornaria impossível. Essas tonalidades afetivas, tecidas de consonância e assonância, expressam o estupor, a vertigem, a alegria da experiência carnal. O eros desejoso transfigura-se na união carnal ordenada em amor-ágape; a imaginação desse desejo em texto escrito na união íntima dos corpos. Do não-saber surge a relação imaginada feita realidade no corpo de carne. A ambivalência da carne situa-se no estatuto intermédio da carne entre a materialidade da coisa e a espiritualidade pessoa. Nesta zona intermédia da visibilidade da afetividade dá-se o despertar da subjetividade (ética-estética, poesia-vida, ipseidade-alteridade). Este ato dá forma ao informe colocando ordem onde reinava o caos.

Segundo Gonçalo Tavares, este ato de ordenamento da afetividade carnal do corpo não advém no “modo quantitativo de pensar” (Musil), mas no modo de oração. “As orações, as palavras viradas diretamente para o Mistério, como confrontando-o com pedidos de explicação, são a parte mais débil do trabalho humano por excelência que é compreender […] Uma tentativa de aliança, de ligação àquilo que não se conhece”. Dá-se então a impossibilidade da imagem capturar o crer e os gestos que o exprimem (podemos capturar o gesto mas não o entusiasmo). E aqui se estabelece a diferença vital entre o compreender científico, “o modo quantitativo de pensar”, e o modo qualificativo de sentir o que escapa à visibilidade da objetiva – o Mistério. Um “Mistério que se mantém sem ser decapitado é uma afronta à racionalidade, e, nesse sentido, a oração pode e dever ser esquecida, pelo menos é esse o objetivo da racionalidade pura”. A oração não é igual ao conhecimento de um facto histórico que se memoriza a todo o custo para uma prova. O Autor contínua de modo brilhante citando uma bela frase de Hans Christian Andersen: “Ele bem queria rezar a oração, mas só era capaz de se lembrar da tabuada”. É contra o empobrecimento da mente, do corpo e da imaginação que o humano deve valorizar outros registos e outras expressões de dizer o mistério das coisas, da vida, do humano, da criação e de Deus, irredutíveis ao saber absolutizado da tabuada.

Permanece uma interrogação vital do próprio Autor que se faz questão para todos os humanos. Um convite a explorar a ambivalência do real e do sentido das coisas. Ambivalência porque a realidade não pode sintetizada em dogmatismos nem em fórmulas. Interrogação essa que origina o método da procura do não-saber absoluto, que quebra a monotonia dos saberes absolutos. Gonçalo Tavares deixa em suspenso uma possível resposta à interpelação: “E se a oração fosse vista, afinal – coloquemos esta hipótese – não como uma aliança com o inimigo (aquilo que a razão não compreende) mas como um outro método de fazer investigação. A oração, as palavras não científicas, sem peso e sem comprimento exatos, palavras tumultuosas, quase grotescas, quase não humanas, quase poéticas – no sentido de não exigirmos delas clareza, mas sim uma certa beleza instável que nos levante – e se essas palavras (da oração) fossem pois reinterpretadas? Reintegradas no percurso da resistência humana, resistência física e intelectual que, dia após dia, tem um único objetivo: sobreviver para compreender, compreender para sobreviver? Eis, pois, uma hipótese: poderá o discurso linguístico dirigido ao Divino ser aceite como um outro modo de investigar? É que, por exemplo, para Platão, falar e dialogar são as maneiras supremas de fazer filosofia, de investigar. Entendendo-se a oração como o diálogo entre o humano e o não humano, não poderá também este ser um caminho feito pelo pensamento, e não pelo medo pelo espanto?”.

Um Atlas do Corpo e da Imaginação a explorar e a degustar de acordo com a sensibilidade de cada leitor. Não é necessário iniciar cronologicamente para compreender a totalidade do livro. A sua originalidade radica precisamente na possibilidade de iniciarmos em qualquer ponto sem com isso perdermos a essencialidade do começo, do meio ou do fim. Uma geometria livre do pensamento e da imaginação tecida de coerência aforística inigualável, que só um escritor, filósofo, poeta e místico nos poderia dar como dádiva para este início de novo ano e de novos começos.
João Paulo Costa
© SNPC |
01.01.14









