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Calendário de Advento: Para uma audição teológica

Dia 1

Lembro bem quando há algum tempo o mercado trouxe até nós os agora conhecidos «calendários de Advento». Chegaram às «lojas dos 300» nas versões mais descartáveis, e em versão mais chique a outros espaços comerciais. Proponho aos amigos o meu calendário de Advento (não tem guloseimas, tem música dentro). Podemos descobrir neste ciclo do calendário cristão essa experiência de uma abertura do tempo à surpresa, ao novo que irrompe na mesmice dos nossos dias (a "saudade do futuro" do Pe. António Vieira ou do Fernando Pessoa podem ser uma tradução portuguesa dessa experiência).

Nada melhor do que esta obra do compositor escocês, James MacMillan, para nos abrir a essa irrupção: "Veni, veni Emmanuel". Trata-se de um concerto para percussão e orquestra, baseado num canto monódico de Advento, de origem francesa (séc. XV), popularizado na Europa. A obra foi estreada em 1992, e tornou-se uma referência na literatura para percussão. 

 

 

Dia 3

Proponho hoje uma criação para a antífona "Alma Redemptoris Mater", miniatura literária em que a "Mãe do Redentor" é celebrada nas figuras da estrela do mar e da porta aberta. O talento de um compositor do séc. XVI, Diego Ortiz, inscreveu este texto litúrgico numa poética do contínuo, plena de luz... estamos no rasto de uma mística do sul.

 

 

Dia 4

Proponho, hoje, o hino de Herbert Howells, "A Spotless Rose", pelo incomparável "The Sixteen". Faz parte do ciclo "The Three Carol Anthems" (que inclui ainda "Here is the little door" e "Sing Lullaby"), composto entre 1918 e 1920. É uma página de homofonia reconfortante, temperada pelo calor de um barítono solo. O poema inspira-se em Isaías 11,1-3 - uma meditação sobre a novidade que vem na figura de um rebento novo ou na metáfora da renovação das raízes. O próprio Herbert Howells comentou este coral: "This [A Spotless Rose] I set down and wrote after idly watching some shunting from the window of a cottage....which overlooked the Midland Railway [Gloucester] In an upstairs room I looked out on iron railings and the main Bristol to Gloucester railway line, with shunting trucks bumping and banging . I wrote it and dedicated to my mother – it always moves me when I hear it, just as if it were written by someone else".

 

 

Dia 5

Regresso ao grito "Vem", agora na versão popularizada em língua inglesa, do hino "Veni, veni Emmanuel". Proponho este hino emblemático na voz de um "menino de coro" (no sentido musical da expressão).

 

 

Dia 6

No dia de São Nicolau, a cantata "Saint Nicolas" de Benjamin Britten era inevitável. A cantata, num texto criado por Eric Crozier, recolhe um conjunto de narrativas que tecem uma biografia deste bispo do século IV. É impressionante o longo curso das metamorfoses deste santo. O seu patrocínio foi-se diversificando, desde os marinheiros às crianças, passando pelos comerciantes. Resistiu até à luta contra a devoção aos santos no mundo protestante, vestindo-se modernamente de Santa Claus. Neste excerto, o nº 2, celebra-se o nascimento de São Nicolau - como noutras lendas, nasceu já santo. O canto é festivo, um pouco histriónico (Britten não deixa escapar a oportunidade do humor), ritmado por um grito: "God be glorified". 

 

 

Dia 7

Quando um canto se entranha na cultura, tornando-se emblema da memória, pode sofrer as mais variadas recomposições. Neste caso a versão do coral "O come, o come Emmanuel" (dir-se-ia "new age") de Enya.

 

 

Dia 8

No calendário católico-romano, junta-se neste domingo a memória de uma solenidade mariana muito marcante na história religiosa de Portugal. Proponho uma prece mariana nas harmonias inconfundíveis do compositor John Tavener, recentemente falecido. A música transporta-nos, contemplativos, para uma interioridade solene, diante de um ícone.

 

 

 

Dia 9

Seguimos pela mão de um dos grandes himnólogos da tradição cristã, Santo Ambrósio. Andrew Smith (1970) recriou este hino a partir da sua fixação no arquivo do canto romano, mas explorou também uma melodia coral que se disseminou em línguas diversas, na Europa. Andrew Smith lê este hino na sua ancianidade, privilegiando técnicas composicionais que dialogam com formas polifónicas arcaizantes. A súplica "Veni" enraíza-se, assim, na profundidade do tempo. Os intérpretes, os "New York Polyphony", são excelentes.

 

 

Dia 10

Voltamos ao tema bíblico do ramo novo que brota da raiz de Jessé. A experiência do novo figura-se na metáfora agrária de um enxerto de renovação. Uma página inevitável. O coral "Es ist ein Ros entsprungen" de Michael Praetorius é um emblema do tempo simbólico que vivemos, aqui no conforto e interioridade de um ensemble vocal masculino.

 

 

Dia 11

Talvez o intróito mais conhecido da liturgia de tradição latina. "Rogate caeli desuper, et nubes plubant justum" - numa tradução apressada, "Céus, derramai o vosso orvalho, e as nuvens chovam o justo". Não proponho, para começar, o canto fixado no "Liber usualis" romano, onde uma melodia silábica plana no horizonte, (como aquela doçura da planície alentejana). Proponho, antes, a criação de Heinrich Schütz (1585-1672) - aqui o canto toma-nos o corpo para o levar para a dança de Deus.

 

 

Dia 12

Volto ao brilho e à densidade da música de John Tavener (não por acaso, ele usa com muita frequência a indicação expressiva "radiant"): "Annunciation". As palavras são as do Evangelho de Lucas, no diálogo entre o anjo e Maria. Tavener apresenta-nos a teofania sob a figura de uma arquitetura sonora espacializada. As palavras de Maria pertencem a um pequeno coro, ou solistas, deslocados numa galeria - esse "lontano" é a figura de uma humanidade aberta à novidade do que se anuncia. As palavras do anjo têm a solenidade do grande coro, num espaço mais amplo. O material musical oscila entre a plena verticalidade coral e a narrativa horizontal, quase monódica, sobre a profundidade de um canto pedal. Nas duas sequências finais somos surpreendidos pelo amplo contraste entre a massa coral que transporta a bênção teofânica ("Blessed art thou among women") e o eco da perplexidade humana ("How shall this be, seeing I know not a man?").

 

 

Dia 13

Hoje proponho uma escolha muito pessoal. O compositor preenche uma parte importante do meu arquivo, o escocês James MacMillan. Trata-se do motete de comunhão do I Domingo do Advento, segundo o "Graduale Romanum": "Dominus dabit benignitatem: et terra nostra dabit fructum" (O Senhor nos dará a felicidade, e a nossa terra produzirá o seu fruto). Integra a coleção "The Strathclyde Motets". A quase totalidade da coleção foi estreada pelo Strathclyde University Chamber Choir, sob a direção de Alan Tavener. A obra transcreve o espírito de bênção da antífona litúrgica numa linguagem estática e extática. Os baixos, os tenores e os altos repetem uma marcha harmónica lenta, cuja reiteração visa o aprofundamento místico da experiência da ritualidade litúrgica. Sobre esse chão floresce o canto melismático do soprano - onde encontramos o rasto da vocalidade gaélica. O carácter litânico desta construção adensa-se com o desdobramento da voz do soprano até ao Ámen final. Mas esse ponto culminante renuncia à apoteose, abaixando-se até à simplicidade da mudez própria do "bocca chiusa". No fim está o repouso e o silêncio. Há várias interpretações disponíveis. Escolho esta, pela voz de cantores entre os 13 e os 18 anos.

 

 

Dia 14

Regresso a um texto clássico: "A Spotless Rose", agora na invenção musical de Paul Mealor. Escrevo esta sugestão depois de uma tarde fria, mas plena de sol (depois de ouvirem esta página musical perceberão a associação). O tema do "rebento novo" molda-se aqui num "adagio" interior que privilegia a serenidade do registo grave. Paul Mealor usa blocos sonoros cerrados, dando uma enorme espessura harmónica a este canto. O tempo da celebração do Deus que vem é, nesta leitura, essencialmente contemplativo. Sob aquela vaga calma, no registo médio e grave, o canto eleva-se, na secção culminante, dos tenores aos sopranos, rasgando o horizonte:
"The Rose which I am singing
Where of Isaiah said,
Is from its sweet root springing
In Mary, purest Maid."
No fim, de novo o repouso, num "Amen" sereno e escurecido.
A obra é interpretada por um agrupamento vocal soberbo, os "Tenebrae", dirigidos por Nigel Short.

 

 

Dia 15

Curiosa esta ideia de um "intervalo" no espírito penitencial do tempo litúrgico. Na história da liturgia latina, este terceiro domingo do advento é conhecido como o domingo "Gaudete". Assim lemos no intróito: "Gaudete in Domine semper" ("Alegrai-vos sempre no Senhor"). Trago aqui o "cantus planus" arquivado no monumental "Liber usualis", numa interpretação bem ao estilo da tradição de Solesmes. Não é uma alegria histriónica. É antes a transcrição musical de um sentido de elevação que nos levanta do pó do chão... mesmo se chamam a este canto "chão".

 

 

Dia 16

Gostava de propor uma audição comparada de diversas recriações musicais do "Magnificat". Começo pela obra de Arvo Pärt, que renuncia a qualquer euforia festiva. A palavra "Magnificat" enuncia-se num plano de interioridade, envolvida pelo jogo de "tintinnabuli" em campos harmónicos muito estáveis. O diálogo antifónico entre naipes convive com a luminosidade do "tutti", mas sempre num clima de êxtase, em que Maria, a protagonista, parece esvaziar-se de si. Trata-se de uma página muito singular na longa cadeia de transmissão musical deste texto cristão.
Escolho uma interpretação que, não sendo a melhor, tem nestes dias um significado especial. Trata-se da formação vocal de uma universidade de África do Sul.

 

 

Dia 17

Continuamos com audições comparadas do canto do "Magnificat". Hoje detenho-me sobre o recentemente estreado "Magnificat" de António Pinho Vargas. De forma muito diversa, se recordarmos os dois exemplos anteriores, Pinho Vargas inscreve a narrativa bíblica no plano do épico e do trágico, como um drama sem cena. Recorro às suas próprias palavras, num comentário que disponibiliza no seu site:

«Do nº 1 Magnificat - "A minha alma glorifica o senhor "- até ao nº 5 os textos do Magnificat são várias formas de agradecimento e exaltação de Maria que agradece a Deus a sua gravidez. No entanto, a partir do nº 6 Fecit potentiam, há uma mudança de carácter, de direção no texto do Evangelho de S. Lucas. De certo modo o texto passa a fazer a descrição e o elogio da ação divina no mundo. Se não vejamos. O Fecit potentiam, traduz-se: "Derrubou dos seus tronos os poderosos e exaltou os humildes."; o nº 7, Esurientes, "Aos famintos encheu de bens e aos ricos despediu de mãos vazias."; o nº 8, Suscepit Israel, "Socorreu Israel, seu servo, lembrado de sua misericórdia, como tinha prometido a nossos pais, a Abraão e à sua posteridade para sempre." e finalmente nº 9 o Gloria do qual retive apenas essa palavra.

Este Magnificat tem uma moldura que decidi incluir, para além dos seus números habituais, um Introitus e um Exodus que introduzem e põem fim à peça com uma música similar, transposta uma 3ª menor acima, na qual uma música diversa de todos os andamentos envolve do ponto de vista formal toda a peça e apresenta talvez aquilo que Augusto Seabra descreveu há uns 12 anos como característico da minha música: "uma espécie de angústia de temor latente". Essa moldura formal acentua a simetria, já patente em vários aspetos presentes - dois momentos de contraponto no nº 1 Magnificat e o nº 8 Esurientes, dois momentos de diferente dimensão entre 4º Quia fecit e 7º Deposuit, e simetrias de carácter e peso igualmente entre 1 e 8. Há portanto dois percursos: aquele que assinala da exaltação de Maria, de 1 a 5 e a descrição do divino como projecto e/ou acção, de 6 a 9/10. Diria portanto que há um percurso paralelo ao texto que encontra a sua peripateia, o momento da inversão da ação das tragédias gregas, no nº 6 Fecit Potentiam, no qual descrições da ação divina de certo modo próximas do caráter de muitas passagens do Antigo Testamento, tomam o lugar, em S.Lucas, do direto agradecimento de Maria a Deus. Por isso, o meu Gloria, não é propriamente um Gloria. Tem consigo uma interrogação poderosa na música. O Coro canta Gloria, mas a música, no seu todo, interroga o que é dito e cantado pelo Coro em piano e pianíssimo».

Os dois vídeos seguintes podem documentar a visão de Pinho Vargas.

 

 

 

Dia 18

Nesta viagem por algumas das leituras musicais do "Magnificat", a criação de Bach é incontornável.

Escolho os números 3 e 4: "Quia respexit humilitatem ancillæ suæ: ecce enim ex hoc beatam me dicent omnes generationes" ("Porque pôs os olhos na humildade da sua serva: de hoje em diante me chamarão bem-aventurada todas as gerações").

Este versículo é dividido por Bach em dois momentos, que exploram tanto o plano de uma interioridade orante como a força jubilar da linguagem da bênção. No primeiro momento, a voz e o "oboe d'amore" elevam-se naquele lirismo que tantas vezes descobrimos nas páginas de Bach.

No segundo momento, entra em cena o coro, metáfora da comunidade dos crentes. A proeminência de um motivo rítmico, numa expressão quase épica, faz-nos descolar do plano extático anterior para a força da linguagem profética.

Creio que a interpretação de Nikolaus Harnoncourt perseguiu de forma bem sucedida a dramática própria deste versículo do "Magnificat".

 

 

Dia 19

A organização do tempo ritual, nas Igrejas cristãs, tendeu a fixar-se em diferentes ciclos preparatórios das grande festividades. Assim, dentro do tempo do Advento desenvolveu-se um ciclo interior de proximidade ao dia de Natal.

De 17 de Dezembro até dia 23, toma lugar a recitação ou o canto vespertino das célebres antífonas do «Ó», expressão enfática da expectativa messiânica bíblica que o cânone do canto romano veio a sublinhar com o extraordinário desenvolvimento melismático sobre esse monossílabo (Ó): Ó Sabedoria do Altíssimo; Ó Chefe da casa de Israel; Ó Rebento da raiz de Jessé; Ó Chave da casa de David; Ó Sol nascente; Ó Rei das nações; Ó Emanuel.

Começamos com a recriação de "O Sapientia" na composição de Bob Chilcott. Cultivando harmonias muito reconhecíveis, a antífona vai-se adensando até à plena expansão e regressa ao repouso, terminando num agregado sonoro que não tem direção, nem resolução... é o tempo aberto ao que o pode preencher.

No vídeo que proponho, um coro universitário faz esta invocação, no contexto de um dispositivo de divulgação - o "flashmob" - , no átrio de uma biblioteca. 

 

 

Dia 20

Continuamos com as antífonas vespertinas, recolhendo, hoje, um exemplar das "Sieben Magnificat-Antiphonen" de Arvo Pärt. O compositor escolheu a língua alemã. Numa tradução possível: "Ó Adonai, guia da casa de Israel, que aparecestes a Moisés na sarça ardente e lhe destes vossa lei sobre o Sinai: vinde salvar-nos com o braço poderoso".

Em cada uma das sete antífonas, Arvo Pärt constrói um clima diferente. Nesta, o registo contemplativo aprofunda-se (literalmente). Apenas as vozes masculinas cantam, nos registos médio e grave, com grande economia harmónica - essencialmente, ouvimos movimentos de quartas e quintas perfeitas.

A ascese musical de Pärt declina-se, assim, numa forma que recusa qualquer direcionalidade. Uma brecha de paz para este dias.

 

 

 

Notas:

Estes textos e vídeos estão a ser publicados por Alfredo Teixeira, professor da Faculdade de Teologia da Universidade Católica, na sua página na rede social Facebook.

A seleção não tem necessariamente uma articulação com a liturgia de cada dia, mas sim com ciclo do Advento considerado na sua diversidade teológica e espiritual.

 

Alfredo Teixeira
23.12.13

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