O cardeal-patriarca de Lisboa, D. Manuel Clemente, apresenta esta segunda-feira, na capital, o livro "O pacto das catacumbas - A missão dos pobres na Igreja", coordenado por Xabier Pikaza e José Antunes da Silva.
«No dia 16 de novembro de 1965, quando o Concílio Vaticano II já se aproximava do fim, 40 bispos reuniram-se nas catacumbas de Santa Domitila, em Roma, para celebrar a Eucaristia e assinar um documento em que expressavam o seu compromisso pessoal com os ideais do Concílio: viver um estilo de vida simples e a exercer o seu ministério pastoral de acordo com critérios evangélicos», explica o texto de apresentação do volume, publicado pela Paulinas Editora.
O "Pacto das Catacumbas" é «um compromisso pessoal de cada um daqueles bispos, mas é também, simultaneamente, um desafio para toda a Igreja e um instrumento para aferir a sua fidelidade ao Evangelho», continua a nota, acrescentando que a iniciativa remonta a três anos antes, no «momento em que se constituiu o chamado grupo "Igreja dos pobres", na sequência do apelo radiofónico de João XXIII».
«Perante os países subdesenvolvidos, a Igreja mostra-se como aquilo que ela é e quer ser: a Igreja de todos e, sobretudo, a Igreja dos pobres», afirmou o papa que convocou o Concílio Vaticano II, a 11 de setembro de 1962, cerca de três meses antes do início dos trabalhos conciliares. Desde então, o grupo reuniu-se quase semanalmente para refletir sobre o que acontecia nas assembleias plenárias à luz do tema "Igreja dos pobres".
Na crónica que assina semanalmente no jornal "Expresso", José Tolentino Mendonça acentua que «a força profética e política dos 12 pontos desse pacto», assinado fará esta segunda-feira 50 anos, «e a exemplar fidelidade dos seus protagonistas» fazem desse acordo «um dos documentos fundamentais para entender algumas das horas mais luminosas do catolicismo contemporâneo».
«Que se propunham os bispos? A revolução da simplicidade.» A lista é longa, mas significativa: «Deixar os palácios episcopais e viver em casas iguais às das suas populações. Renunciar aos sinais exteriores de riqueza e à riqueza em si. Não possuir imóveis nem contas bancárias em seu nome. Confiar a gestão financeira e material das dioceses a comissões de leigos competentes e cônscios do seu papel apostólico; recusar-se a ser chamado, oralmente ou por escrito, com nomes e títulos que signifiquem a grandeza e o poder, preferindo ser chamado com o nome evangélico de padre».
Para Tolentino Mendonça, o pacto das catacumbas «recorda que o Deus em que os cristãos creem não plana acima das questões escaldantes da história: Ele aparece claramente comprometido com a justiça e uma ordem social de equidade, manifestando-se a favor dos mais pobres».
A sessão de apresentação do livro, de que oferecemos seguidamente um excerto, decorre na Capela do Rato, em Lisboa, às 18h30
Uma espiritualidade a partir do pobre para toda a Igreja
Maria Clara Bingemer
In "O pacto das catacumbas"
Ser pobre com os pobres: uma conversão pessoal
No texto assinado pelos bispos, há diversos elementos que dizem respeito a uma conversão pessoal, a uma mudança dos aspetos pessoais da vida de cada um. Em que consiste essa conversão?
Em primeiro lugar, em «ser como as pessoas», ou seja, em ser o mais humano possível, o mais parecido e semelhante a todos os irmãos e irmãs em humanidade, de um modo próximo e fraterno. Assim, segundo os signatários do Pacto, por exemplo, o episcopado deixa de ser uma dignidade que afasta e que requer elementos vivenciais de conforto e até de luxo, para se tornar a vida simples e humilde de um servo dos demais.
É isso que exprime claramente o ponto 1 do texto, ao dizer: «Procuraremos viver segundo o modo ordinário da nossa população no que concerne à habitação, à alimentação, aos meios de locomoção e a tudo o que daí deriva. Cf. Mt 5,3; 6,33s; 8-20.» Estamos perante uma opção de vida. Trata-se de abandonar os palácios episcopais para ir viver numa casa simples, como a maioria das pessoas; deixar para trás as refeições finas e requintadas, para se alimentar simplesmente, como a imensa maioria das pessoas; de usar os transportes públicos, em vez de veículos particulares.
Esse parágrafo implica uma determinação forte e profunda que leva realmente a uma mudança de vida de modo radical e profundo. E há muitos outros detalhes noutros parágrafos do Pacto que apontam para essa conversão radical e para essa vivência no mais profundo de cada um de uma espiritualidade evangélica de estar próximo e de viver como os pobres.
Por exemplo, a renúncia abarca não só a posse de bens, mas inclusivamente a aparência de riqueza no vestuário, nos símbolos usados (como a cruz peitoral, o báculo e a mitra). Isso implica que a figura do bispo já não deva ser uma figura que se impõe pelo seu aspeto, mas que se confunde com a gente simples. Nesse sentido, os bispos sentem-se chamados a ser como os primeiros Apóstolos, de quem são sucessores, e a não ter «ouro nem prata», mas Jesus, o Nazareno, como galardão e ornamento.
Quanto à posse de bens, o Pacto explicita que os seus signatários não possuirão bens «móveis ou imóveis», ou seja, não serão proprietários de nada, como os pobres do seu povo, que não têm onde reclinar a cabeça e que, por vezes, são forçados a ver a pobre casinha, que construíram com as suas próprias mãos, destruída por chuvas torrenciais, inundações, fogo, tempestades ou outras catástrofes. Afastam-se, de igual modo, do sistema financeiro capitalista em que vivem, quando declaram a sua renúncia à posse de contas bancárias e tudo o que das mesmas deriva: crédito, dinheiro fácil, multibanco, etc. Por fim, tudo aquilo que dá segurança num sistema que valoriza o dinheiro acima de todas as coisas, e que os pobres jamais poderão ter. Contudo, entendem, de forma realista, que por vezes talvez tenham de possuir algum bem. No entanto, nada deverá figurar em seu próprio nome; pelo contrário, sempre em nome da diocese ou das obras sociais ou caritativas.
Para fundamentar essa decisão de viver ao contrário do mundo e do sistema em que estão inseridos, citam os textos bíblicos de Mt 6,19 e Lc 12,33s, recomendando estes que não se acumulem tesouros aqui na terra, pois ficarão expostos à ação predadora do tempo e dos ladrões. É preferível vender o que se possui e dá-lo em esmola. O tesouro de um discípulo e apóstolo de Jesus Cristo deve estar no Céu, ou seja, no Reino do Pai. Só aí não se gastará, não se esgotará nem será destruído. Ou seja, deve ser oferecido, dado, aos que precisam, pois é aí que o quer Deus. Onde está o tesouro, aí também está o coração, e o coração de um pastor deve estar com as suas ovelhas, ser sensível às suas necessidades e solícito em assisti-las e satisfazê-las.
Em seguida vem tudo aquilo que diz respeito ao prestígio e às honras que um bispo quase sempre está exposto a receber. Os números 5 e 6 abordam, por um lado, os títulos que a Igreja, nesses vinte séculos, se acostumou a dar àqueles que desempenham alguma função eclesiástica. São tudo títulos de prestígio que arrastam consigo privilégios. E o texto cita-os explicitamente: Eminência, Excelência, Monsenhor... Acrescentam ainda que preferem o nome evangélico de Padre/Pai. O texto cita dois livros bíblicos para apoiar o que se propõe, que são Mt 20,25-28; 23,6-11; Jo 13,12-15. Segundo essas passagens, a forma como os signatários do documento entendem o seu ministério sacerdotal, e inclusive episcopal, é como servo. À mãe dos filhos de Zebedeu, que pede privilégios e poder para os seus filhos, Jesus responde com a necessidade de se ser o servo de todos e de cada um, seja ele qual for, e de beber o mesmo cálice que o Mestre: o da sua Paixão. E, ao acabar de lavar os pés dos seus discípulos, embora reconhecendo a sua posição de Mestre e Senhor, explica que isso implica desempenhar o serviço do escravo e não oprimir nem procurar privilégios.
Já no número 6, afirmam que, no trato e nas relações sociais, tentarão evitar tudo o que «possa parecer concessão de privilégios, primazia ou inclusive preferência pelos ricos e pelos poderosos». Acrescentam que isso implicará não estar presente em eventos, festas ou banquetes «oferecidos ou aceites», algo tão comum e corrente na vida da Igreja e que tanto a afasta da simplicidade e da pobreza evangélicas. Para apoiá-lo, fazem-se eco das palavras de Paulo ao falar do seu ministério como serviço e não como ganho ou privilégio, no texto citado de 1Cor 9,14-19 [sobretudo vv. 18-19]: «Qual é, portanto, a minha recompensa? É que, pregando o Evangelho, eu faço-o gratuitamente, sem me fazer valer dos direitos que o seu anúncio me confere. De facto, embora livre em relação a todos, fiz-me servo de todos, para ganhar o maior número.»
Ser pobre servindo os pobres, juntamente com todos e com todas: uma conversão pastoral
A par dessa conversão pastoral e conjuntamente com ela, os bispos que assinam o Pacto desejam que a ação pastoral da Igreja resultante dessa opção pelos pobres seja diferente do que era antes. Já não pode ser algo cuja eficiência possa ser medida por tráfico de influências, ou por resultados conseguidos «incentivando ou aproveitando a vaidade de quem quer que seja, tendo em vista recompensar ou solicitar doações ou por qualquer outra razão». Do mesmo modo, desejam que a sua pastoral chegue diretamente aos fiéis e não seja apenas algo vindo da parte do bispo. Os leigos devem contribuir, inclusive financeiramente, para a sua Igreja, mas não só isso. O documento não alinha com uma mentalidade eclesiástica que crê que tudo o que seja financeiro deve sair do bolso dos leigos. Pelo contrário, refere o contributo dos leigos para o financiamento como uma participação «no culto, no apostolado e na ação social».
Desse modo, mesmo antes de terminar o Concílio, os bispos signatários do Pacto demonstram uma visão que aponta desde já para um dos pontos eclesiológicos mais presentes na Igreja pósconciliar: a valorização dos leigos e a superação da contraposição clero/laicado. Isso significa um passo muito importante, visto que para os bispos significa diretamente não só abrir mão das riquezas e dos bens que possam possuir, mas também do poder que lhes é conferido pelo seu ministério episcopal, e comprometer-se também a apoiar os leigos, os religiosos e os diáconos ou os sacerdotes que o Senhor chama a evangelizar os pobres. É essa Igreja que se propõem construir os bispos signatários do Pacto das Catacumbas.
Esta transcrição omite as notas de rodapé.
Edição: Rui Jorge Martins