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Pré-publicação: “Cartas sobre a dor”

«A experiência da dor, vivida em primeira pessoa, participada ou partilhada, faz de fio condutor e deixa emergir com uma vivacidade extraordinária o caminho em que uma fé madura e serena se constrói e fortifica.»

A editora Tenacitas lança na próxima segunda-feira, em Lisboa, o livro “Cartas sobre a dor”, antologia de missivas de Emmanuel Mounier (1905-1950), «um dos grandes protagonistas do catolicismo francês do século XX, que está na origem do Personalismo e fundador da revista “Esprit”, uma das vozes mais importantes da cultura e do debate religioso» da contemporaneidade, refere uma nota enviada hoje ao Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura.

«A existência da dor é o problema em torno do qual a reflexão humana de cada época fez círculos frenéticos: com efeito, se muito se disse sobre as eventuais maneiras de a evitar e igualmente se inquiriu sobre as várias formas de dor possíveis, sobre o “porquê” da sua existência na experiência humana, então toda a reflexão séria tem de se deter perante a admissão de um mistério insondável», assinala a introdução, que apresentamos seguidamente.

Não são abstrações o que se propõe neste livro, porque na origem das reflexões de Mounier sobre a dor está «a grave doença da primogénita». «Vivida cristãmente, a dor não perde um grama do seu peso que é também terrível, nem esgota a desmedida de mistério a que atribui a existência humana (como escreve Mounier no dia do terrível diagnóstico da filha: “Fomos visitados por alguém muito grande”), mas o acontecimento cristão abre uma possibilidade de perspetiva positiva ao sofrimento».

Na sessão de lançamento, marcada para as 21h30, no Grémio Literário (Rua Ivens, 37), intervêm Michel Renaud (professor catedrático aposentado de Filosofia, membro da Secção de Letras da Academia das Ciências de Lisboa e membro fundador do Centro de Estudos de Bioética) e Maria João Lage de Sousa Leitão (médica pediatra-neonatologista).

 

Introdução
Davide Rondoni
In “Cartas sobre a dor”

Este é um livro de um género particular, e não apenas porque uma antologia é sempre um livro especial, que serve de «amostra» ou de pequeno compêndio: estas "Cartas", de facto, podem constituir um daqueles livros que fazem uma companhia especial ao leitor.

Poderia ser um livre de chevet, de mesa-de-cabeceira, diriam os franceses, se não fosse o facto de haver, nas suas páginas, alguma coisa que não nos deixa dormir.

São escritos de um filósofo, mas não é um livro de filosofia, aliás – quando muito parece um livro de poesia, tal é o seu avançar por lampejos, por surpresas, aparentemente por acaso.

O tema destas páginas é a dor, que é – aliás, mais do que um tema – o problema para o qual tendem estas palavras: e assim elas – apesar de se tratar de um diário onde figuram, entre mil divagações e mil considerações políticas, filosóficas ou sociais – pela tensão diante daquele problema, tornam-se trechos de poesia, momentos que, por vezes, quase atingem a mesma tensão do "Requiem" de Mozart. De facto, quando Mounier se detém a contemplar o mistério da «sua» pequena Françoise...

Estas páginas são retiradas das "Cartas e Diários" de Emmanuel Mounier, que ficaram muito conhecidos e que constituem uma mina de informações sobre a geração de intelectuais franceses de que saiu a chamada filosofia do «personalismo». Nesses apontamentos, Mounier relata a sua formação, os encontros (com Maritain, Daniélou, Marcel e outros) e as amizades que acompanharam a aventura da revista «Esprit», o debate circunscrito a um grupo de católicos «empenhados» na situação dramática dos anos do advento do nazismo e da segunda guerra mundial.



Quão diferente é este homem-Deus, que chora com a notícia da morte do seu amigo Lázaro ou que inúmeras vezes se detém diante da dor do cego, do aleijado ou da dor demente do endemoinhado



Entre aquelas páginas surge muitas vezes o Mounier que, tocado por certas e determinadas circunstâncias, in primis a grave doença da primogénita, se detém no problema da dor. E são estas as páginas que encontrareis aqui reunidas.

Retomando Péguy, Mounier recorda que só as batatas crescem automaticamente, quer dizer que a personalidade humana se forma, à medida que vai amadurecendo, um juízo sobre as experiências que se encontra a viver. Sendo a experiência da dor uma das mais imponentes, pode-se afirmar que o comportamento que um homem assume diante desta experiência e do problema que coloca, revela, no fundo, o comportamento e o juízo que ele assume diante da experiência global da sua vida e do problema que ela constitui. É através da maneira como um homem se coloca diante do problema da dor que se pode depreender como se coloca diante do problema de toda a existência.

Por isto, pelo comportamento em voga numa sociedade perante o problema da dor, se percebe muito sobre a posição humana que impera naquela sociedade: é revisitando as variações do sentido comum da dor e da morte na história ocidental que se consegue descobrir as linhas fundamentais da evolução da mentalidade dominante.

Hoje, por exemplo, a propensão que há para ocultar a dor ou para tentar «anestesiá-la» com a sua espectacularização nos meios de comunicação é sintoma de uma humanidade contraída, não livre para enfrentar um aspecto importante da experiência do viver, pobre e assustada. Assim também a «esquizofrenia», difundida na valorização e na capacidade de compaixão perante algumas experiências da dor, é sinal da falta de personalidades amadurecidas com um critério unitário na vida.

A existência da dor é o problema em torno do qual a reflexão humana de cada época fez círculos frenéticos: com efeito, se muito se disse sobre as eventuais maneiras de a evitar e igualmente se inquiriu sobre as várias formas de dor possíveis, sobre o «porquê» da sua existência na experiência humana, então toda a reflexão séria tem de se deter perante a admissão de um mistério insondável.



Só uma séria consideração do acontecimento cristão gera o comportamento em que a liberdade do homem atinge o seu auge: o gesto da oferta, aquele gesto de amor a Deus e aos homens que resulta «incompreensível» ao mundo, mais forte do que qualquer cálculo e do que qualquer generosidade



Charles Moeller, no seu "Sagesse grecque et paradoxe chrétien", tece longas considerações sobre a maneira como os antigos abordavam o problema do sofrimento humano. Cita, a propósito, o episódio de Nausícaa, no livro VI da "Odisseia". A rapariga bela e feliz, ao acolher Ulisses, símbolo do homem em viagem em direcção a si mesmo, recorda-lhe: «Sabes muito bem, estrangeiro, uma vez que não tens cara nem de estúpido nem de bruto, que Zeus, do seu Olimpo, distribui o bem tanto pelos humildes como pelos nobres, o que ele quer, a cada um: se te deu estes males, é preciso que os suportes». Mesmo nas flexões posteriores de «optimismo desesperado» ou da ira violenta das grandes tragédias gregas, o máximo a que o homem antigo ascende com a sua reflexão é que há um facto imperscrutável que distribui fortuna ou dor pelos homens, e que é mister aceitar tudo isto.

Face a esta constatação, todo o mais nobre pensamento dos antigos (tanto nas suas expressões estóicas como na experiente serenidade de Séneca) vai ao ponto de pregar a necessidade de um «distanciamento» das coisas do mundo e do próprio pensamento de uma divindade que, de alguma maneira, tome conta dos homens, para que a dor, quando acontece, nunca «perturbe» o sábio.

Este é, em definitivo, também o ensinamento de dois mestres que, não é por acaso, estão hoje «na moda»: Epicuro e Buda. Num dos escritos sagrados do Bem-aventurado oriental encontra-se o relato deste diálogo entre o Mestre e Visakha: «O Bem-aventurado disse-lhe: “Como é possível que te encontres aqui a esta hora, Visakha, com as vestes e os cabelos ainda húmidos? [para o rito fúnebre, ndt]”. “O meu querido neto morreu, é por isso que estou aqui”... “Visakha, quem tiver cem coisas que estime, tem cem dores. Quem tiver noventa, tem noventa dores. Quem tiver oitenta, trinta, vinte, dez coisas que estime, tem oitenta, trinta, vinte, dez dores. Quem tiver uma só coisa que estime tem uma só dor. E quem nada estimar, esse não sofre qualquer dor. E quem não sofre nem dor nem paixão está sereno. As dores, os lamentos e os sofrimentos neste mundo são inumeráveis por causa daquilo que nos é querido: mas se não houver nada que nos seja querido, não há dores. Por isso aqueles que nada têm de querido no mundo são felizes e livres de sofrimento.”».



Ao principiar o seu discurso em Auschwitz, no lugar que se tornou triste símbolo da dor humana – tanto que os mais sérios pensadores deste século se perguntaram se ainda seria possível fazer filosofia ou poesia depois do que ali se consumou – João Paulo II recordou o gesto de oferta do Padre Kolbe com as palavras do Evangelho de João: «Esta é a vitória que derrotou o mundo: a nossa fé»



Quão diferente desta posição, que gela a afetividade e censura a natureza apaixonante do viver, é o ímpeto com que Cristo se detém diante da viúva de Nain e, como conta Lucas, «compadecendo-se dela», lhe diz: «Não chores mais!». E quão diferente é este homem-Deus, que chora com a notícia da morte do seu amigo Lázaro ou que inúmeras vezes se detém diante da dor do cego, do aleijado ou da dor demente do endemoinhado!

Não um afastamento da condição humana, mas uma paixão comovida diante da sua aflição: eis a grande novidade introduzida pelo cristianismo. É desta novidade no comportamento que nasceu uma civilização que soube acolher e tentar a cura da dor: não é por acaso que a tradição dos hospitais é cristã, enquanto em todas as civilizações não cristãs se afirma o culto dos sepulcros. Trata-se de uma novidade não filosófica, não feita de recomendações abstractas, mas feita e, por assim dizer, certificada pela aceitação, pelo padecimento da dor por parte do próprio Deus. De facto, é no mistério da Cruz, isto é, da dor padecida para a salvação, que o mistério da dor humana encontra uma resposta. Não uma resposta que retire o fundo de mistério que o acontecer da dor traz e trará sempre consigo, mas uma perspectiva, uma função positiva. Efetivamente, o «grito que ressoará sempre» da cruz, como escreve Péguy, deixa de ser a dor como a dos dois ladrões: «o ladrão da esquerda e o ladrão da direita / não sentiam nada senão os pregos na palma da mão», enquanto Cristo, pelo contrário, em «todos os seus quatro membros / os seus pobres quatro membros» sentia a dor dada pela salvação, sentia «o flanco trespassado. / O coração trespassado. / E o coração a arder-lhe. / O coração consumido de amor. / O coração devorado de amor».



«Viva Deus, se por onde a criança pequena passa, o pai também há-de passar! Que vale o mundo face à vida? E o que vale a vida senão para ser dada? E porque atormentar-se quando é tão simples obedecer?»



Só tendo presente o acontecimento da Cruz e Ressurreição física de Cristo é que a dor não é pura perda.

A alternativa, para o homem que não renuncia à razão e portanto à «estima» do viver, permanece só no gesto com que encerra a esplêndida "Alceste" de Rilke, quando Admeto, ao ver que o destino lhe arrebatava a noiva pela morte, no dia do casamento, tapa os olhos com as mãos, tanto para não a ver a desaparecer como numa tentativa desesperada para imprimir a sua imagem nas pupilas.

Vivida cristãmente, a dor não perde um grama do seu peso que é também terrível, nem esgota a desmedida de mistério a que atribui a existência humana (como escreve Mounier no dia do terrível diagnóstico da filha: «Fomos visitados por alguém muito grande»), mas o acontecimento cristão abre uma possibilidade de perspetiva positiva ao sofrimento.

Assim, Miguel Mañara, o esplêndido don Juan que O. Milosz fez reviver em Sevilha, a meados do século XVII, aquando da morte da sua amada Jerónima, a única entre as mil mulheres: «tão grande, tão verdadeiramente grande» que lhe rouba o coração, cai no desespero: «Tu dizes, ó Dor, que és minha mãe. Mas se o és verdadeiramente, bem deves saber que inferno geme aqui, minha mãe, que o inferno geme aqui, neste velho coração. Deitaste-me num berço: antes me tivesses atirado num caixão! Minha vida está viúva, minha luxúria chora e eu sou pai do pavor, da loucura e da morte». Mas, de dentro, a dor pode ouvir uma voz que a chama e lhe conta em poucos traços a Paixão de Cristo. É uma das páginas mais rudes e fortes que são dedicadas à Via Sacra: ouvindo aquelas palavras sobre Deus, que sofre como um cão, Miguel intui que, tanto na dor como dentro de todas as circunstâncias, há alguma coisa, um significado, uma promessa a descobrir.

Só uma séria consideração do acontecimento cristão gera o comportamento em que a liberdade do homem atinge o seu auge: o gesto da oferta, aquele gesto de amor a Deus e aos homens que resulta «incompreensível» ao mundo, mais forte do que qualquer cálculo e do que qualquer generosidade. A imitação de Cristo, da sua obediência ao Pai, ao Mistério, é suprema também no gesto da oferta, no seu realizar-se quotidiano e discreto. É a descoberta desta dimensão da oferta que faz com que Anne Vercors, o velho pai de Violaine na "Anunciação a Maria" de Claudel, diante da morte da filha, diga uma verdade mais forte do que qualquer ideologia e do que qualquer utopia sobre o viver: «Viva Deus, se por onde a criança pequena passa, o pai também há-de passar! Que vale o mundo face à vida? E o que vale a vida senão para ser dada? E porque atormentar-se quando é tão simples obedecer?».

Por isso, ao principiar o seu discurso em Auschwitz, no lugar que se tornou triste símbolo da dor humana – tanto que os mais sérios pensadores deste século se perguntaram se ainda seria possível fazer filosofia ou poesia depois do que ali se consumou – João Paulo II recordou o gesto de oferta do Padre Kolbe com as palavras do Evangelho de João: «Esta é a vitória que derrotou o mundo: a nossa fé».


 

Edição: Rui Jorge Martins
Imagem: Capa | D.R.
Publicado em 05.04.2019

 

 

 
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