Da luta espiritual: combater a tentação e amar os inimigos
Hoje em dia o Cristianismo tende a rejeitar a dimensão do "combate da fé", ao qual, porém, o ensinamento dos primeiros cristãos dava uma importância preponderante. Nós não vigiamos suficientemente sobre as atitudes que nos animam, que por vezes desfiguram a nossa vocação humana e cristã. Ora, a luta espiritual é um elemento essencial para edificar uma pessoa madura e sólida.
Esta luta é tão necessária que nem sequer Jesus pôde ignorá-la! Foi-nos revelado o Seu encontro face a face com o tentador no deserto (cf. Mateus 4,1-11). O Evangelho não é por acaso que nos apresenta este episódio imediatamente após a narração do batismo. Na minha opinião isso é indicativo de que todo o batizado deve enfrentar o mesmo combate contra o instinto mau que mora no seu coração. Como já o Antigo Testamento sublinhava: «O pecado está junto à porta, como fera agachada, a espreitar-te. Acaso conseguirás tu dominá-lo?» (Génesis 4,7)
Esta luta é interior, não se opõe a seres exteriores mas àquilo que em nós nos leva a cometer o mal. Estas tentações (...) manifestam-se essencialmente em três âmbitos: no amar, no ter e no agir. Trata-se de realidades que propriamente nem são más em si mesmas, mas que podem perder a sua beleza originária levando-nos a ocupar-nos-somente de nós mesmos.
Contra tal deformação existe a luta espiritual. Talvez te lembres que na catequese te fizeram decorar a lista dos "sete pecados capitais". É outro modo mais pragmático de apresentar as coisas, não chamando a atenção para os "campos de batalha" onde as refregas têm lugar, mas para as ações concretas do "inimigo" interior a neutralizar (soberba, inveja, cólera, acédia, avareza, gula, luxúria). Como quer que seja, esta luta deve-nos fazer passar do regime de consumo para o de comunhão com Deus e com os outros.
Sem dúvida, perguntar-me-ás: Como levar esta luta para atingir a maturidade pessoal e a liberdade plena? Primeiramente, preparando-nos com a vigilância. Trata-se de curar a doença do entontecimento espiritual, que impede a atenção profunda e leva a agir sempre de modo superficial, para chegar ao "estado de vigilância de si e a Deus" que permita por fim discernir as verdadeiras tentações que nos pesam no coração. Vigiar: descobrir as nossas raízes em profundidade e não se deixar levar pelas seduções; aderir às realidades sem se refugiar na imaginação. Graças a este "trabalho do coração': como um padre do deserto chama à vigilância, reconhecerás em ti os mecanismos da tentação e desarticulá-los-ás.
A tentação conhece momentos variados. No início apresenta-se a sugestão: é a manifestação da possibilidade de uma ação malvada no coração humano. Podes discernir o carácter negativo deste pensamento, porque provoca perturbação no coração e tira-te a paz. Ninguém está isento deste primeiro momento. Mas se conversares e dialogares com este pensamento, este torna-se aos poucos irresistível e nunca o dominas. É ele quem te domina!
A este ponto produz-se o consenso, a tomada de posição pessoal que contradiz a vontade de Deus. Depois de se repetirem os consentimentos pela ausência da luta, tornamo-nos escravos de uma paixão ou de um vício. Este processo elementar pode porém ser interrompido pelo exercício imediato da luta, no instante em que nascem os pensamentos e as sugestões.
Querido amigo, concordarás que temos de nos precaver com tal luta. É um duro combate. Escrevia Arthur Rimbaud: «A luta espiritual é tão brutal como uma batalha entre homens», mas produz frutos: pacificação, liberdade, mansidão... Graças a tal luta a fé é perseverante e o amor purificado.
Resiste ao inimigo que está em ti
Confessaste-me a tua dificuldade em viver no quotidiano da existência aquela reconciliação e aquela fatigante procura da comunhão que constituem um dos pontos principais da vivência da nossa fé. Mas o Evangelho chama-nos a isto, e até nos pede algo mais, o amor aos inimigos. Loucura, dirás tu; lindas palavras, utopia que nunca encontrará realização. É o que assim pode parecer.
No entanto a vida conforme ao Evangelho encontra a sua realização nas palavras e nos gestos de Jesus que indicam no amor ao inimigo o horizonte da praxis do cristão. Assim, de facto diz Jesus: «Amai os vossos inimigos, fazei bem àqueles que vos odeiam» (Lucas 6,27) e toda a Sua vida - até ao lavar dos pés mesmo a Judas, até à cruz, onde rezou pelos Seus algozes enquanto O crucificavam - testemunha um amor incondicional até para com o inimigo.
Este é o exemplo que Jesus nos deixou. Mas tu perguntas-me: É realmente possível amar o inimigo, e amá-lo precisamente enquanto manifesta a sua hostilidade e inimizade, o seu ódio e a sua adversidade? É humanamente possível tal escandalosa simultaneidade?
A tua experiência, como de resto a minha, diz-te que este apelo ao amor do inimigo parece porventura fascinante em teoria, mas desfaz-se no esquecimento e não encontra nenhuma consistência existencial perante precisas e concretas situações de inimizade. Tu não te resignes a esta contradição, e não esqueças que o amor chega através de um longo caminho, um lento exercício, porque o amor não é espontâneo mas exige disciplina, ascese, luta contra o instinto da ira e contra a tentação do ódio.
Jesus, quando pede para amar o inimigo, coloca o crente numa tensão, num caminho. Do esforço para operar sempre novamente a lei de talião, ou seja, a tentação de vingar o mal recebido, devemos chegar a não opor-nos ao malvado, a contrapor ao mal aquela passividade ativíssima que é a não-violência, confiando no Deus único, Senhor e Juiz dos corações e das ações dos homens.
Desta forma, tomarás consciência de que o inimigo é o nosso maior mestre, aquele que pode realmente descobrir o que nos habita no coração e que não emerge quando nos encontramos de boas relações com os outros. Quando na verdade te opões aos outros, podes aceder ao verdadeiro conhecimento de ti e julgar em profundidade a qualidade do teu amor: perceberás espiritualmente que o verdadeiro inimigo está em ti e não fora de ti, e que a luta a travar não é contra o outro, mas contra a injustiça do teu coração, contra a absolutização do teu "eu" à custa dos outros. A pouco e pouco, tornar-te-ás capaz de obedecer às palavras do Senhor que nos convidam a oferecer a outra face, a dar também a túnica àquele que quer tirar-te o capote...
Ora, para que tudo isto seja possível, não esquecer o que o Evangelho põe sempre ao lado do mando de amar os inimigos, a oração pelos perseguidores, a intercessão pelos adversários: «Amai os vossos inimigos e orai por aqueles que vos perseguem.» (Mateus 5,44) Se não assumes o outro - em especial o outro que se fez teu inimigo, que te contradiz, que te calunia - na oração, aprendendo assim a vê-lo com os olhos de Deus, nunca chegarás a amá-lo! Se, ao contrário, te pões, a ti e a ele, sob os olhos de Deus na oração, verás que não em virtude da tua força, mas graças à misericórdia de Deus, saberás realizar a maravilha impossível do amor pelos inimigos.
Enzo Bianchi
In Resiste ao inimigo - A luta espiritual, ed. Paulus
08.05.13







