Turismo, cultura, espiritualidade
Dormir em mosteiros (II): Singeverga
Tomem-se 45 litros de álcool mais 10 litros de água, junte-se o açúcar e, no final, as especiarias e as plantas aromáticas. Coloque-se o caramelo como corante. Deixe-se depois quatro dias em maceração. A mistura irá envelhecer em pipas.
Nos intervalos, preparem-se as garrafas, colando os rótulos. O licor a engarrafar é aquele que há mais tempo está nas pipas. Pode haver tempo, por isso, para rezar um salmo enquanto se contempla o prodígio que é ver surgir um licor aromático a partir de tais ingredientes. «É o que eu gosto mais, é rezar um salmo, algumas frases que fixo», diz o padre Albino Nogueira, 67 anos, que desde 1989 trabalha na produção do licor de Singeverga - que atualmente já é mesmo vendido em algumas grandes superfícies.
Na maior parte do tempo, o padre Albino tem que se concentrar no trabalho e nas suas tarefas de detalhe. Mas há momentos em que a oração se pode intrometer. Veem-lhe assim frases de alguns salmos, «para dar ânimo» enquanto trabalha: «Por que estás triste, minh’alma, e desfaleces?» «Espera em Deus.» «O Senhor é o meu baluarte.» «O Senhor ê meu pastor.»
Ora et labora. Reza e trabalha. O lema dos beneditinos desde o início, quando Bento de Núrsia, no início do século VI, procurou sítios longe, para viver um cristianismo mais purificado - eram tempos em que a fé cristã, depois da sua institucionalização com Constantino, se tornava mole, individualizada e acomodada. Estabeleceu-se Bento em Subiaco, a leste de Roma e, depois, em 530, em Monte Cassino, 100 quilómetros a sul. A regra que Bento de Núrsia propôs aos que o seguiram insistia na vertente comunitária. Dava, assim, uma nova expressão à vida ascética dos eremitas e anacoretas de regiões como o Egito, mas mantinha a proposta do silêncio na escuta de Deus. A expressão comunitária chegava mesmo à propriedade, conforme estipulado na Regra, que se viria a chamar de São Bento (capítulo XXXIII): «Sobretudo extirpe-se radicalmente do mosteiro o vício da propriedade, de modo que ninguém se atreva a dar ou receber coisa alguma sem licença do abade, nem a ter de próprio seja o que for – tabuinhas de escrever, estilete, numa palavra, absolutamente nada».
Ora et labora. Já o sol começa a iluminar os rostos quando os monges se juntam para a oração de laudes, ou oração da manhã. O rumor dos passos entra no coro da igreja, uma brisa suave, duas filas lado a lado. Inclinam-se lado alado, «Deus, vinde em nosso auxílio», reza-se no início. E responde o salmo 131, promessa salvadora em tempos de crise e desespero para tantos: «Abençoarei copiosamente os seus celeiros, saciarei de pão os seus pobres».
Nesta oração de laudes, há um hóspede, há quase sempre alguém de fora no mosteiro. Também desde o início, a Regra de São Bento prevê que a hospitalidade deve ser uma marca dos mosteiros beneditinos. «Todos os hóspedes que se apresentam no mosteiro sejam recebidos como se fosse o próprio Cristo, pois Ele dirá [um dia]: “Fui hóspede e recebestes-me”.»
O princípio da Regra de São Bento é seguido pelos monges de Singeverga, que acolhem quem queira passar «uns dias em clima de silêncio e oração». Os hóspedes são convidados, assim, a participar na oração litúrgica diária (laudes às 7h, hora sexta às 12h40, vésperas às 19h e vigílias as 21h) e a tomar as refeições em conjunto com a comunidade (pequeno-almoço às 8h30, almoço às 13h e jantar às 20h). Aos domingos e dias santificados, os ritmos coletivos incluem apenas às laudes as 7h30, a eucaristia às 12h e as vésperas às 15h30 (nos meses de verão, às 19h).
Um lugar tranquilo
Uma placa de madeira por cima dos cadeirais de ambos os lados diz psalitte sapienter.Salmodiai sabiamente. Remete para o capítulo XIX da regra, sobre o modo de rezar os salmos da Bíblia. «Permanecei unidos nos mesmos sentimentos», leem os monges, de uma das cartas de São Pedro. As vozes são madrugadoras de manhã, serenas ao final da tarde, as cores do sol atravessam os vitrais para tranquilizar o olhar, o órgão é suave, uma surdina a acompanhar cada cântico. Um pequeno toque de dedos no cadeiral dá o sinal para o início e o fim da oração.
Pela hospedaria, passam gentes de todas as proveniências sociais etárias, mesmo religiosas, incluindo agnósticos e descrentes. Há artistas, escritores, padres, médicos, seminaristas, personalidades conhecidas e gente anónima que também decide passar um tempo em Singeverga. Atraídos p ela liturgia sóbria, pelo canto ou pela tranquilidade do lugar.
O espaço do mosteiro está quase todo disponível para os hóspedes: além da própria hospedaria, os hóspedes podem utilizar o claustro e a igreja, podem passear na quinta ou circular p elos jardins. O lugar é privilegiado. No livro Mosteiro de Singeverga - Cem Anos 1892-1992, Gabriel de Sousa, que foi o segundo abade do mosteiro (1948-66) descreve assim o lugar: «A situação de Singeverga é verdadeiramente privilegiada. Poderá encontrar-se local de mais desafogados horizontes;. mas não será fácil encontrá-lo dotado de tantos mimos e encantos naturais. No centro dum semianfiteatro montanhoso (...), a natureza enrugou um combro enxuto...»
Daniel Rocha/Público
Foi Miquelina Júlia, une das filhas de Manuel Gouveia Azevedo, que insistiu com o pai para doar a quinta aos monges, já que nem ela nem a irmã tinham descendentes. Fundado em 1892, depois de peripécias várias, o mosteiro representava o regresso dos beneditinos à região (tinha havido um mosteiro beneditino em Santo Tirso, por exemplo), depois da expulsão das ordens religiosas em 1834.
Na sala do capítulo, onde se reúnem os monges para as decisões mais importantes, dois painéis mostram esta pequena historia. Pintados pelo brasileiro Cláudio Pastro, que se dedica à arte sacra e tem peças suas na abadia de Tournay (Franca), no Museu de Arte Sacra da Catalunha e em Viterbo.por exemplo, representam o início da nacionalidade portuguesa e do monaquismo em Portugal, bem como a presença dos beneditinos no país e em Singeverga.
Daniel Rocha/Público
O atual edifício data da década de 1950. E obedece à ideia de um espaço onde se viva a experiência da comunidade, da solidão, do trabalho e da oração. «Tudo no mosteiro, tem de falar uma linguagem que exprima o sagrado, o transcendente. E o livro do Evangelho aberto e acessível a todos, mesmo aos mais rudes e iletrados, de todas as épocas», escreve o padre Paulino Luiz de Castro, num texto sobre "A vida beneditina", no boletim Presença de Singeverga.
Concebido de forma a completar dois quadrados, o edifício ficou incompleto num dos lados, deixando aberto um dos jardins. Metáfora da relação dos monges com o que os envolve, ícones, pinturas de arte sacra e pequenas esculturas preenchem os espaços dos corredores, dos átrios de passagem. Na hospedaria, várias pinturas representam parábolas do evangelho. Um Cristo em marfim, em arte indo-portuguesa, merece a pena ser visto, mesmo se vai estar um tempo guardado por causa de pequenas obras.
Daniel Rocha/Público
Ora e! labora. Há anos, numa reportagem do “Público”, o padre Luis Aranha, ex-abade de Singeverga, traduzia assim o lema beneditino para este século: «É o diálogo com Deus e a realização pessoal e comunitária através do trabalho. É dar humanidade à vida e às coisas. Sem pressas, mas aproveitando os tempos».
O espaço
O espaço da hospedaria é modesto e sóbrio O edifício mantêm as características da época da sua construção (1953-1957). Situados num longo corredor, cada um dos 15 quartos tem uma cama individual, mesa e cadeira, um pequeno armário de roupa e aquecimento.
As casas de banho são comuns, no corredor; nos quartos há apenas lavatório Únicas limitações: como a hospedaria esta dentro do espaço da clausura, só é possível receber homens, e, por norma, a estadia não pode ultrapassar oito dias - prorrogáveis apenas excecionalmente.
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No meio do corredor há uma sala de estar para os hóspedes, com televisão. O claustro também pode ser utilizado como lugar de meditação Na igreja dominam as madeiras e as paredes brancas. As colunas revestidas de madeira definem as três naves do espaço da igreja, sendo o coro oprolongamento da nave central.
No coro uma Adoração dos Magos, atribuída a Tintoretto As mesas dos monges na sala de jantar estão dispostas em U, com a do topo a ser destinada a o abade, prior, subprior e irmãos mais velhos. A mesa destinada aos hóspedes está colocada no meio. No centro do refeitório, junto à entrada, está o ambão para a leitura espiritual que acompanha o almoço e o jantar. No espaço da quinta, situa-se ainda o antigo mosteiro, que pode acolher grupos para encontros de reflexão ou estudo.
Como chegar
Na autoestrada Porto-Braga, apanhar a entrada para Santo Tirso e seguir as indicações para Guimarães. A meio caminho entre Santo Tirso e Guimarães, virar à direita para Roriz ou, mais adiante, para São Martinho do Campo. Depois já se encontrarão placas a indicar o Mosteiro de Singeverga. Coordenadas GPS latitude: 41º20'42.42"N; longitude 8°22'9.3"W.
O que fazer
Lê-se na página do Mosteiro de Singeverga na internet que os muitos hóspedes que por ali passam procuram o lugar para retemperar as «energias físicas e espirituais, num ambiente de paz, particularmente propício à escuta da voz de Deus». Além de poder estar com os monges nas orações, o hóspede pode passear pelo bosque do mosteiro, sentar-se no claustro a ler ou espreitar a produção de licor. Como estamos em território beneditino, vale a pena visitar, nas proximidades, o santuário de São Bento das Pêras, cuja festa acontece a 11 de julho e permite uma extraordinária vista sobre o vale do no Vizela, e Santo Tirso, com o antigo mosteiro beneditino (classificado como monumento nacional). Guimarães, ainda mais em ano de Capital Europeia da Cultura, é também um excelente destino.
Contactos
Mosteiro de São Bento de Singeverga
Rua Mosteiro de Singeverga, 200
4795-309 RORIZ STS
Telefone: 252 941 176; fax: 282 872 947
E-mail: mosteiro@mosteirodesingeverga.com
Preços
A hospedaria monástica de Singeverga não firma preços de estadia. As despesas são comparticipadas com donativos.
António Marujo
In Público (Fugas), 21.7.2012
09.09.12


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D. Gabriel Sousa, abade de Singeverga e homem de cultura, nasceu há 100 anos





