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«Elas serão as primeiras…»

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«Elas serão as primeiras…»

Os olhos confundem-se com o azul turquesa das tranquilas águas oceânicas. Os cabelos lembram searas de trigo loiro, maduro para a ceifa, graciosamente debruçados sobre os ombros, numa suave ondulação de colinas na planície alentejana.

Uma rebelde elegância compõe o ramalhete do seu corpo esguio, cuidadosamente "ungido" de unguentos e aromas perfumados. A "tarefa" assim o exigia. Esbelto, sem rugas nem manchas, nos seus 22 anos, o seu corpo era a "ferramenta" que usava na "faina" noturna, nos sucessivos "alugueres"diários, à hora, ao minuto, consoante.

Sempre atendendo solidões embrulhadas em fatos e gravatas de seda. A sua infinita capacidade de escuta sossegava os desertos sombrios de quem tudo tem, aparentemente. 

E os sonhos? Ah, esses estavam prenhes de ilusões e, por vezes, de uma certa esperança de que "outra vida seria possível".

Aos 15 anos, os laços familiares da "Angélica" desapareceram: a prematura morte por sobredose dos progenitores, cujas vidas se perderam no pó proibido que as vielas da sé não conseguem esconder dos guardadores da lei.

O nevoeiro tolheu a sua infância e adolescência. A tempestade desabou sobre ela com toda a sua fúria, arrastando-a por um Schengen sem fronteiras, à procura de horizontes de sobrevivência.

Aventura solitária, embriagada de solidão, estonteante no desespero da procura de uma estrela que no firmamento brilha mais do que as outras, e que, segundo está convicta a "Angélica", é a sua mãe, que a espreita constantemente. E nos dias de chuva?, pergunto-lhe. «A minha mãe chora por mim, pela minha vida.»

Tudo rápido, pois os anos da juventude são mais sôfregos do que outras etapas da vida. Urge aproveitar o tempo, mas sobretudo é preciso provar tudo de tudo, de todos e dos melhores, pois claro! Antes que chegassem as desilusões profundas e a alma se engelhasse, antes que uma indesejada gravidez fizesse ninho no seu escultural corpo, antes que uma atrevida doença sexualmente transmissível a visitasse, o tempo é quem mais ordena e não se pode desperdiçar.

Pensando com os seus botões, a "Angélica" sabia que se "o (seu) corpo é que paga", aqueles que podem devem, portanto, pagar mais e melhor a qualidade dos serviços que requerem das "vidas publicas (aos) vícios privados".

Aqui chegados, a via (sacra) da "Angélica" foi curta no tempo mas densa, muito densa, na prova. Hoje, abrindo as gavetas do fundo, questiona-se: será que algum dia vou ser olhada como uma pessoa digna?

Eis a questão de fundo. Sempre lá esteve, no mais fundo de si mesma, mesmo atravessando os vales mais tenebrosos. O seu problema, agora, já não são os néones alucinantes na sua vida pública, mas o olhar dos outros.

As suas virtudes privadas, diríamos, estão intactas: solidária e compassiva, com potencialidades sem estrear e capacidades para desbravar. E tanta liberdade para conquistar! Aliás, como todos nós. E tanto amor para receber e para dar. Como todos nós.

«Elas serão as primeiras...» Quem o disse, há dois mil anos, era Filho e Senhor nesse Reino que já começa aqui e agora. Esta deveria ser uma expressão do credo cristão. Tudo se compõe para a festa da vida, quando os filhos regressam da vadiagem à casa do Pai, e os anéis, os vestidos de seda e a mesa farta estão apostos.

Só Deus conhece os meandros do itinerário individual de cada um de nós: a travessia dos ardentes desertos e os cenáculos onde a «ceia recreia e enamora» (S. João da Cruz). Esta é a caminhada interior que partilho/amos com a "Angélica" e com outras.

 

Ir. Maria Júlia Bacelar, adoradora
Publicado em 25.01.2015 | Atualizado em 25.04.2023

 

 
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Aqui chegados, a via (sacra) da "Angélica" foi curta no tempo mas densa, muito densa, na prova. Hoje, abrindo as gavetas do fundo, questiona-se: será que algum dia vou ser olhada como uma pessoa digna?
«Elas serão as primeiras...» Quem o disse, há dois mil anos, era Filho e Senhor nesse Reino que já começa aqui e agora. Esta deveria ser uma expressão do credo cristão
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