Diocese de Beja
Festival Terras Sem Sombra: Milagre no Alentejo
Chega a primavera e despontam pelo Baixo Alentejo as Terras Sem Sombra (TSS) - um festival de música sacra promovido pelo Departamento do Património Histórico e Artístico da Diocese de Beja. Música eterna, que as polifonias deste ano vão de Guillaume de Machaut (século XIV) a György Ligeti (século XX), das giestas às alcachofras.
É o mais qualificado e humano dos festivais, único na biodiversidade da sua ligação à terra, à água e ao ar. Com direção artística de Paolo Pinamonti, o festíval é um prodígio incomparável (graças também à dedicação e zelo de Sara Fonseca e de José António Falcão). Sons, arte e natureza dialogam. Artistas e público partilham mesa e comungam nos ideais.
Desta vez o Espírito Santo pousou na magnífica Igreja Matriz de São Cucufate, em Vila de Frades, para uma primorosa execução de "Die Jahreszeiten" (As Estações, 1801), de Joseph Haydn (1732-1809). Se há obra-prima do repertório clássico que se ajusta ao Alentejo é esta. Campo e lavra na primavera; vinho e caça no outono. (Estamos em pleno “país das uvas”.) Já não se fia no inverno, mas talvez ainda haja quem tricote.
E tal como Haydn, em "Die Schöpfung" (A Criação, 1798), dera voz à águia e ao rouxinol, ao leão e às ovelhas - por virtude do texto do barão Gottfried van Swieten -, aqui resignou-se a pôr em música as rãs, as abelhas e os grilos. E percebeu o verão alentejano, quando «a natureza cede à pressão,/ Flores murchas, prados áridos,/ Fontes secas tudo revela/ A fúria do calor./ E, exaustos, jazem estendidos/ No chão os homens e os animais».
O festival publicou uma excelente tradução do libreto alemão por Maria das Dores Galante de Carvalho (a juntar a outros textos editados no ano passado). Aliás, os catálogos do TSS, muito bem impressos e inteligentemente informativos (e sem publicidade!), deixam na sombra os seus congéneres de outras instituições, do São Carlos ao CCB e à Gulbenkian.
O concerto esteve a cargo da Orquestra Sinfónica Portuguesa e Coro do Teatro Nacional de São Carlos, sob a direção de Donato Renzetti. A princípio fiquei preocupado com a acústica reverberante da igreja (cheia, a transbordar), mas Renzetti soube imediatamente corrigir a dinâmica e a intensidade relativa dos naipes e ajustá-las à envolvente acústica. (Como? Com os olhos, com gestos? Segredos de um grande dirigente.)
Não sendo “à época”, a Orquestra teve um desempenho superlativo - belíssima a introdução brumosa ao inverno. (Por razões compreensíveis, foram eliminados os recitativos.) Muita gente ficou espantada com o impacto das vozes não amplificadas, uma mais-valia da música (dita séria) ao vivo: Luís Rodrigues (Simon), Mário Alves (Lukas) e Carmen Romeu (Hanne) foram comoventemente empolgantes.
Na manhã seguinte, fomos todos - músicos, solistas, maestros, diretores, organizadores e muito público - em excursão à mágica Ermida de Santo António dos Açores (século XV) para perceber o papel do montado na sustentabilidade do mosaico mediterrânico da paisagem. Participar no TSS é um privilégio para os artistas e para o povo (mas parece que nem todos o entendem). No Alentejo mora a qualidade.
Jorge Calado
In Expresso, 8.6.2013
Fotografias: Concerto na igreja matriz de Cucufate e ação de preservação da biodiversidade
Vídeo: Concerto de abertura do Festival Terras Sem Sombra 2013
Fotografias e vídeo: Festival Terras Sem Sombra
13.06.13






