Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura - Logótipo
secretariado nacional da
pastoral da cultura
Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura - Logótipo
secretariado nacional da
pastoral da cultura

Iconoclastia e mística

Imagem Anunciação de Cestello (det.) | Sandro Boticelli | 1489-90 | Galeria dos Ufizi, Florença, Itália

Iconoclastia e mística

Maria Teresa Horta escolheu para capa do seu livro ["Anunciações"] a icónica "Anunciação de Cestello", de Sandro Boticelli. A capa funciona como uma fronteira, pois mantém uma natural exterioridade em relação ao texto, mas a verdade é que opera também como um espelho, ali colocado para potenciar um intenso jogo de reflexos e correspondências. O poema que Maria Teresa escolheu para a contracapa documenta amplamente esse diálogo, construindo-se como uma leitura minuciosa da imagem de Boticelli. E é um poema extraordinário:

«É como se nós os dois
dançássemos
o perdimento

Tu de rojo a meus pés
e eu erguida num ímpeto
a tentar turbar o tempo

As minhas mãos
a suster
e as tuas a empurrar

num mesmo gesto sedento

A entrega e a recusa
o corpo e o pensamento»

Mas há uma surpresa quando se parte deste poema para olhar a tábua pintada do mestre italiano. Maria Teresa Horta (MTH) leva-nos a observar a coreografia dos corpos, convergindo em particular para a altíssima tensão gráfica que se adivinha entre as mãos de Maria e as do anjo. O que ela faz é interpretar, dando corpo narrativo a essa tensão gráfica e tecendo uma espécie de romance. Nesse sentido, temos de tomar como elementos imprescindíveis aqueles introduzidos pelo título: o plural «anunciações» em vez de «anunciação»; e o subtítulo «um romance», em jeito de declaração programática. Estamos perante uma imagem, perante a possibilidade de um romance em torno a uma imagem e perante uma poderosa arte poética a amalgamar tudo isso. Contudo, o poema guarda um estratégico silêncio sobre aquele que é porventura o elemento mais intrigante (e menos consensual) na obra de Boticelli: a inesperada sombra que o corpo angelical possui e que se alonga dramaticamente sobre o pavimento, acompanhando a deslocação das mãos.

Estamos perante uma natureza angélica que rompe com o cânone das representações, uma natureza não só não-privada de sombra, como seria de esperar, mas cuja sombra é mesmo o signo mais avançado, prolongando-se para lá do espaço onde o corpo se sustém. Um corpo angelical com sombra é, claramente, um corpo alterado, em metamorfose. E de que metamorfose se trata? Aquela que sabiamente Maria Teresa Horta depois enunciará: «Fico a ver-te.../ ganhares o corpo/ físico/ na perda do corpo místico». A sombra é uma grafia da carnalidade, estando comummente do lado dos corpos históricos e ausente dos espíritos puros. A esta poética, porém, não interessa a estabilidade do binómio, mas sim a sua ambivalência, a exploração da ambiguidade, o tracejado inaudito de uma deslocação entre corpo físico e corpo místico, a pergunta. A surpresa é que a Boticelli também. E indo mais longe: que à arte chamada sacra também. Porque, como explica o Mestre Eckhart, existem dois caminhos: aquele que nos leva a renunciar completamente às imagens (e ao romance), pois «Deus não possui imagem ou semelhança de Si mesmo», e squele que aceita fazer o percurso das imagens, compreendendo que isso implica aquilo que no vocabulário teológico paulino se expressa como «quenósis», quer dizer, abaixamento, encarnação, renúncia à forma de Deus.

As "Anunciações", de Maria Teresa Horta, não são a "Anunciação" católica. O próprio plural grafa deliberadamente um distanciamento, a que se torna necessário atender. Sem dúvida, que a cena bíblica da anunciação ainda é reconhecível como ponto de partida. Porém, à maneira da prodigiosa luta que Jacob travou com o anjo, a poeta luta com aquele relato, num combate encarniçado, iconoclasta e noturno que o expande, inverte e subverte, mas que, em certos momentos se parece a um reencontro deslumbrado e a uma dança. Como diria outra extraordinária voz mística da poesia portuguesa, Adília Lopes, «o iconoclasta/ reconstrói o ícone». Só que enquanto em Adília o quadro místico do mundo é reconstruído por aquilo que a própria autora chama «o louvor do lixo», em MTH essa possibilidade surge através do eros. Diga-se, desde já, que não está só: esse é um caminho amplamente percorrido por exploradores do divino de todos os tempos, e em relação ao qual o próprio cristianismo tem um património admirável. Um importante teólogo ortodoxo, Olivier Clément, deixou escrito que «o amor carnal permanece, juntamente com a beleza do mundo, um dos últimos caminhos do mistério».

No volume "Anunciações", do mistério de Deus só é inteligível o que puder ser declinado a partir do eros. Nesse sentido, um dos seus aspetos de maior impacto é essa espécie de teologia protestativa que se vai desenvolvendo, muito à maneira de Job, mas em vez do questionamento de Deus aparecer centrado no enigma do sofrimento humano, aqui aparece focado em contrariar o interdito que algumas representações de Deus lançam à erótica. De facto, a experiência do amor que devia ser jubilatória torna-se muitas vezes, em certo discurso religioso, um caminho crucificante, como é o da protagonista deste romance em poemas. A própria estrutura do livro pede, por isso, para ser interpretada como uma denúncia e um grito. Este é um livro que se abre à discussão, sem querer apoderar-se de certeza alguma que não seja a da recuperação do amor. E a recuperação do amor não é senão a recuperação de Deus. No fundo, a iconoclastia e a mística têm muito a dizer e a ensinar uma à outra.

 

José Tolentino Mendonça
In "Jornal de Letras", 6.7.2016
Publicado em 06.07.2016

 

 
Imagem Anunciação de Cestello (det.) | Sandro Boticelli | 1489-90 | Galeria dos Ufizi, Florença, Itália
Enquanto em Adília o quadro místico do mundo é reconstruído por aquilo que a própria autora chama «o louvor do lixo», em MTH essa possibilidade surge através do eros. Diga-se, desde já, que não está só: esse é um caminho amplamente percorrido por exploradores do divino de todos os tempos, e em relação ao qual o próprio cristianismo tem um património admirável
A experiência do amor que devia ser jubilatória torna-se muitas vezes, em certo discurso religioso, um caminho crucificante, como é o da protagonista deste romance em poemas. A própria estrutura do livro pede, por isso, para ser interpretada como uma denúncia e um grito
Relacionados
Destaque
Pastoral da Cultura
Vemos, ouvimos e lemos
Perspetivas
Papa Francisco
Teologia e beleza
Impressão digital
Pedras angulares
Paisagens
Umbrais
Evangelho
Vídeos