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Evocação de Sophia

«A alma será um jardim bem irrigado».
(Jeremias 31,12)

Escrever, arborescer

Curiosa forma tem Alberto Vaz da Silva de abeirar-se aqui de Sophia, em evocação intensa, dilectíssima e discreta. «Quem tiver ouvidos para ouvir (...)». A visão inaugural é a de um jardim. Ainda não se fala de livros, nem de versos, mas de uma adolescente num «maravilhoso jardim semi-abandonado e selvagem», deslizando atrás do aroma «profundo, intenso, secreto, veludoso, insondável» que é a alma do mundo e a nossa própria. Quando Sophia, recuperando a memória desse lugar, escrever que «o corpo de Alexandre da Macedónia era, por sua natureza, aromático», certamente re-corda e a-corda. Os jardins são, para a consciência, territórios de origem, patamares, cavidades maternais, propulsores de vertiginosa passagem.

A imagem do epílogo, por sua vez, é um traço do autor, a impressão do olhar perante Sophia que escreve, apenas isso: «Ali, naquela folha, arvorava o seu nome (...)». Detenho-me no modo exacto e, todavia, inesperado que Alberto Vaz da Silva propõe para enunciar, ou anunciar, o acto da escrita: «arvorava». No princípio e no fim temos, assim, o jardim, pois a escrita é, ela também, singular forma de arborescência. A caligrafia é tatuagem orgânica, matéria com predicados vegetais: linha indivisa, ramificada, que se multiplica desde as raízes até ao alto (ou desde o alto até às raízes, como ensina a Cabala). Escrever mantém uma equivalência misteriosa com o arborescer.

Este é, se quisermos, um livro sobre jardins. Os que nos precedem, os que formam sem sabermos a nossa alma e os seus declives, os que silenciosamente se avistam nas várias formas de grafia, desde aquela que cintila na vastidão silenciosa dos céus (e que também nos pertence), à nossa grafia íntima, feita de arranhões, de registos digitais, de textos, crateras.

Jardim

A meditação sapiencial e mística leva-nos frequentemente para o interior de jardins. Homero descreve os de Alcíno como uma experiência encantadora: «ali, de pé, se maravilhou o sofredor e divino Ulisses». Virgílio trata-os muito especialmente, pois crê que aí se pode encontrar a felicidade. Ovídio evoca, com deliciado detalhe, os jardins de Flora. Teresa de Ávila escreve: «Nos inícios desta vida de fidelidade que quero contar ( ... ), saboreava a mais viva alegria em representar a minha alma como um jardim». A Bíblia começa e termina com um jardim: o do Éden e esse anónimo onde foi escavado um sepulcro, que será depois encontrado vazio. Nem por acaso, Maria Madalena, primeira testemunha da Ressurreição, confunde Jesus com um jardineiro. Será que confunde? Comenta Yourcenar: «Que melhor nome poderia dar-se àquele que fez crescer tantas sementes na alma humana?».

Jardim

Existem no idioma hebraico duas formas distintas para nomear árvore: ets e ilan. O primeiro termo é o mais comum na narrativa bíblica, mas o segundo também se encontra, e é, de longe, o preferido pela Cabala. Deriva do aramaico ilana e o seu valor numérico é 91 (lembremos que a cada letra do alfabeto corresponde um número. Neste caso: 1+10+30+50). Ora, se atendermos à dimensão simbólica e espiritual dos números (sim, mesmo as coisas que nos parecem mudas têm uma voz!), árvore (valor 91) tem uma sinonímia com anjo (malakh, também de valor numérico 91). Ao dizer árvore é como se disséssemos anjo. Não nos espantemos da ligação natural do jardim às tipologias sagradas. Como explica Hipólito de Roma, no século III, «do jardim terrestre elevamos os nossos olhares para o jardim celeste».

Jardim

Na bela definição do filósofo Massimo Cacciari «o anjo é o hermeneuta de sentido oposto: aquele que conduz para o exterior da letra, aquele que vai, não já da ideia à coisa, do sinal ao representado, mas da coisa ao invisível». Nesse sentido, «o anjo testemunha o mistério enquanto mistério, transmite o invisível enquanto invisível». No jardim de Sophia, revisitado tão sabiamente por Alberto Vaz da Silva, não se explica, convoca-se. E a fronteira entre visível e invisível, mistério e conhecimento já não nos aflige. Há um único arborescer. As árvores de escrita, o hortus conclusus que grafamos sobre o papel e sobre a pele, a mão que se desloca em modesta caligrafia assinalam o contorno do anjo.
Cada um tem uma maneira de escrever. A palavra maneira vem de manu, mão. Escrever é dar a mão ao seu anjo, acenar-lhe.

Jardim

 

Conhecer, nascer

Um eixo semântico atravessa a poética de Sophia de Mello Breyner Andresen: o do enlace, súbito ou repetidamente buscado, com o «inicial» e o «primeiro». Poema a poema somos remetidos para o «limpo», o «intacto», o «inteiro», o «puro». A poesia é aqui dicção peremptória do original, assombro perante a solenidade com que o visível refulge (ou pode ainda refulgir), justo e sem pregas, susceptível de descoberta. Esse é o seu ethos.

Jardim

«Esta é a madrugada que eu esperava
O dia inicial inteiro e limpo»

«Aqui nesta praia onde
Não há nenhum vestígio de impureza,
Aqui onde há somente
Ondas tombando ininterruptamente,
Puro espaço e lúcida unidade»

«Para ti criarei um dia puro»
«Silêncio intacto em que dorme
o milagre das coisas que eram minhas»

Jardim

Há, por isso, na poética de Sophia uma recondução do sujeito (que é, ao mesmo tempo, uma conversão e uma utópica reinvenção) a um lugar primicial. Esse movimento (de justeza, de justiça) é descrito de vários modos. Um, porém, que se revela central é o do regresso ao jardim, tópico exterior e interior, território do mundo e exalação do sagrado, dramática de exílio e pátria, lugar de eterno recomeço.

Jardim

«Quando o meu corpo apodrecer e eu for morta
Continuará o jardim»

«Não se perdeu nenhuma coisa em mim
Continuam as noites e os poentes
Que escorreram na casa e no jardim»

«Jardim em flor, jardim de impossessão,
Transbordante de imagens mas informe,
Em ti se dissolveu o mundo enorme»

«Em todos os jardins hei-de florir»

Jardim

Tanto a hermenêutica judia como a cristã construíram itinerários minuciosos para a leitura, que, repetidamente, prolifera, ganha sentidos, vias inusitadas, desdobramentos. Os mestres judeus falam, a propósito da leitura, do sentido simples (pchat), mas também daquele alusivo (rémez), do interpretativo (drach), e ainda do secreto (sod). As quatro consoantes iniciais destas palavras formam pardès, termo que significa paraíso. O endereço perene da leitura é assim um jardim.

Jardim

Vale a pena, por isso, voltar às palavras fluviais de Ben Sirá, como quem aproveita a corrente para voltar a si. «Disse: "Regarei as plantas do meu jardim e saciarei de água os meus canteiros". E eis que o meu curso de água se tornou um rio, e o meu rio se tornou um mar. Irradiarei a ciência como a aurora, farei que ela brilhe bem longe (...) Vede que não trabalhei só para mim, mas para todos aqueles que buscam a sabedoria» (Eclo. 24,30-32).

 

José Tolentino Mendonça
In Evocação de Sophia, ed. Assírio & Alvim
Imagens: Monet, Renoir, Van Gogh, Cézanne, Frederick Jackson, George Hodgson, Thomas Hunn, Marian Emma Chase, Lucas Cranach
03.01.10

Capa

Evocação de Sophia

Autor
Alberto Vaz da Silva

Editora
Assírio & Alvim

Ano
2009

Páginas
112

Preço
€ 9,00

ISBN
978-972-371-4531

 

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