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Um apelo aos católicos: da rotina à conversão

(...) Diz um autor que Cristo tinha a nostalgia dos pagãos, mas parece-me que o que Cristo tinha era a nostalgia de espíritos frescos, novos, abertos e impressionáveis à verdade. Estava farto, ao fim de 30 anos, de espiritos tristes, gordos, instalados, satisfeitos. Em Israel, como na Igreja, os espíritos de vez em quando estão habituados, ritualizados, crestados, envelhecidos pela rotina.

Encontramos na Judeia, como hoje na Igreja, praticantes sem alegria e crentes sem irradiação. O que nós podemos definir por cumpridores profissionais da missa, da comunhão e de alguns gestos cristãos. Nada os alertava. A única coisa a que reagiam era às mudanças litúrgicas, disciplinares, morais. Tal e qual como hoje o que os impressiona é uma cruz a mais ou a menos na missa, o padre lavar ou não lavar as mãos, o padre andar com cabeção ou não andar com cabeção. E mesmo assim reagiam. Porque quando havia uma mudança eles eram obrigados a pensar, a sair do marasmo, a fugir ao ritualismo habitual: era ou não era possível curar o homem que tinha a mão seca, ao sábado? - O sábado era o fim! - É ou não possível jejuar neste dia? Qual será no Céu a mulher do homem que casou com várias?

Eram os grandes problemas dos homens crentes do tempo! E tenho verificado que também hoje no liceu são os católicos que normalmente põem estas questões sem importância. Os grandes problemas religiosos são postos, tal como no tempo de Cristo, quase sempre por aqueles que parecem não ter fé. Quase nenhum crente pôs a Cristo um problema religioso fundamental. Apenas dois. Um que lhe perguntou: «Mestre, qual é o meu próximo?», mas o evangelista adverte que a pergunta foi feita para experimentar Cristo. Outro, o jovem rico que lhe perguntou: «Mestre, o que é necessário para ir para a vida eterna?» e que não foi capaz de responder afirmativamente ao convite de Cristo. Este foi o problema de Cristo. Cristo veio exigir de nós um novo tipo de existência. Revelou-nos Deus como Amor e pediu uma fé e uma adesão total a esse Amor. Em vão. Não o conseguiu. (...)

Não sei se já repararam que a nossa religião pode por vezes impedir-nos de sermos religiosos. Nós acreditamos há tanto tempo que já não acreditamos. Nós rezamos há tantos anos que já não rezamos. Nós esperamos há tanto tempo que parece que perdemos a esperança. «A luz brilhou nas trevas mas os homens amaram mais as trevas do que a Luz. Deus veio ao que era Seu e os seus não O receberam». A nossa fé, ou a nossa chamada fé, torna-nos por vezes satisfeitos, habituados, instalados e intolerantes, dogmáticos, homens cheios de soluções para tudo e para todos. Temos de ser integralmente honestos. Ou fazemos da nossa fé não um direito adquirido por família ou recebido de outrem mas uma loucura, uma descoberta, um dinamismo renovado... Ou fazemos nova a fé dos nossos pais e dos nossos avós, tornando-a muito pessoal, ou então cairemos na condição do povo judeu que confundiu fé com certezas. Fé não são certezas. Fé também são dúvidas. Faz parte do ato da fé a dúvida. Fé não são ritos nem gestos nem fórmulas. Por isso Deus disse no Antigo Testamento dos judeus: «Este povo honra-me com os lábios, mas o seu coração anda longe de mim».

O povo judeu é um exemplo para nós que somos a continuidade desses povo. Não tinha o povo judeu excelentes estruturas religiosas? Não havia na Judeia numerosos grupos de prática religiosa quase fanática? Não tinham eles a verdadeira religião? Cristo até disse que não a vinha destruir mas completá-la! Não tinham eles livros inspirados, dos quais disse Cristo que nem um jota nem um til deixariam de ser cumpridos? Isaías, Jeremias, Ezequiel, Oseias, etc.

E no entanto diz-nos São João que apesar das estruturas, apesar da religião verdadeira, apesar de livros inspirados, apesar de profetas, Jesus veio ao que era seu e os seus não O reconheceram. É que as estruturas dos judeus, como muitas vezes as nossas estruturas cristãs, não estimulam, não alertam, não orientam para uma procura, mas ritualizam, criam rotina, destilam instalação, adormecem as pessoas. É uma questão vital. É perigoso pôr este problema. É duro pôr este problema. Os hábitos religiosos podem ser a maior barreira para uma autêntica religião. Há quanto tempo não param? Há quanto tempo não pararam e não perguntaram por que é que vão à missa do domingo? Há quanto não duvidam do que fazer, até para ter fé? Não reflitam apenas quando são atacados. Reflitam com calma.

Não praticamos a religião até por causa, muitas vezes, da religião que temos? Não aderimos à palavra de Deus por tão habituados estarmos de a ouvir? Numa palavra, cuidado com o profissionalismo. É tal e qual como o desporto. O desporto começa-se a viciar quando entra no campo do profissionalismo. A religião também. A religião, por mais que custe, é para amadores. Se não, vamos ver. Quem é que se opôs a Cristo na Judeia? Os profissionais! Fariseus, saduceus, doutores da lei e os grandes devotos! «Este homem é um endemoninhado, este homem é um sedutor das massas. Está a dizer coisas que são contra a Lei. A curar uma pessoa doente em dia de sábado». E Cristo teve que gritar: «Hipócrita, hipócrita, se o teu filho cair a um poço no sábado estás à espera do domingo para o ir tirar?»

Foram os profissionais que sempre atacaram Cristo, e foi por causa do profissionalismo religioso que Cristo morreu numa cruz. E quem é que aderiu a Cristo? Foram os amadores. Foi um leproso, foi um romano, foi a cananeia, foi a samaritana, foi a mulher adúltera e a mulher da Samaria que era prostituta e foi um homem chamado Zaqueu. Foram os amadores, os pobres, os que tinham medo de entrar no Templo, os que ficavam ao fundo, aqueles que não tinham profissão nenhuma, porque para se ser profissional tem que se saber do ofício e eles não sabiam nada. Sabiam que não eram dignos. E foram esses que mostraram, de facto, uma adesão a Cristo. Eu compreendo que Cristo tivesse a nostalgia dos pagãos, embora haja nos cristãos, de vez em quando, almas fracas e puras. Mas Cristo tinha fome daquilo que viu naquele centurião — jamais viu uma fé assim em Israel —, porque aquele homem não era profissional, era militar, e teve de fugir aos seus princípios. Era um romano e teve de se submeter a um judeu. Não tinha religião ou tinha uma religião pagã, e teve que vir ter com o profeta duma religião judaica. Teve que rebentar com barreiras. O que é que pensavam daquele centurião, que era um romano de valor, os que o viam ir ter com um judeu? Riam-se às gargalhadas. Mas ele, deixando todos os preconceitos, venceu as barreiras e foi: «Senhor, cura o meu criado». E o mais importante é que nem foi pedir por um filho. Foi por um simples criado. Que exemplo extraordinário para nós!

E acho que agora compreendemos o Evangelho: «Virão do Oriente, virão do Ocidente, os filhos do rei irão para fora e os que vieram hão de se sentar à mesa com Abraão, Isaac e Jacob no Reino dos céus. Virão as prostitutas e os ladrões. E os filhos serão postos fora». Será porque Deus não quer os filhos? Não. Mas quer que nós, seus filhos, sejamos almas assim. Como a deste centurião. Como a daquele leproso que, sendo samaritano, foi o único que voltou atrás para agradecer. Almas que sejam capazes de chorar sobre a sua rotina, que sejam capazes de chorar os seus hábitos, para que as lágrimas os lavem e, apesar de pecadores, sejam simples e consigam dizer, ao menos hoje, um dia na vida: «Eu não sou digno. Ensina-me a acreditar que nada do que eu fiz até hoje de cristão vale alguma coisa».

 

P. Alberto Neto
Revista Alleluia, 187 (1969)
In Padre Alberto Neto - Testemunhos de uma voz incómoda, Texto Editora
01.07.12

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