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A literatura: um lugar teológico?

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A literatura: um lugar teológico?

Se aos pensadores gregos Deus se deu a conhecer sobretudo na natureza ou no cosmo, já a revelação bíblica se fez na história, quer dizer, na experiência humana de um povo com um coração particularmente (sobrenaturalmente) predisposto para perceber o dedo de Deus por detrás dos acontecimentos. A experiência religiosa do povo hebreu foi o primeiro modo pelo qual o Verbo se fez palavra. Foi essa palavra que passou aos livros e se tornou Bíblia. Já então, aliás, sob formas essencialmente literárias.

Mas, a par com o lugar teológico por excelência, que é a revelação bíblica, enquanto interpretação da palavra de Deus na história humana, a ser permanentemente reinterpretada pela teologia, a literatura pode constituir-se também como um lugar teológico de segunda ordem. Pode sê-lo justamente na medida em que passa por aí a experiência da vida que vem à palavra e a sua interpretação no tempo que corre. De facto, a experiência de Deus acontece muito mais naturalmente do que possamos pensar, se por tal entendermos aquela «experiência da transcendência do espírito» [humano] que «permanece anónima no nosso quotidiano, irrefletida e não temática, como a luz universalmente difundida de um sol, que não vemos, quando na nossa experiência sensível nos ocupamos de objetos somente visíveis porque banhados nessa luz»? Deus - não a palavra, mas Deus ele mesmo - não anda hoje porventura tão ausente como pode parecer à primeira vista. Nos caminhos dos homens, ele anda certamente mais vagamente pressentido e discretamente anunciado do que aberta e explicitamente nomeado como tal. Seria precisa uma pedagogia como a de Jesus com a samaritana ou como a de Paulo discursando aos atenienses, para explorar as virtualidades teológicas e evangelizadoras aí latentes.

Testemunha de cada tempo, a literatura percorre os labirintos da vida, remexe as profundezas do psiquismo humano, põe de manifesto o que passa ao lado da observação vulgar, denuncia as iniquidades da ordem estabelecida, questiona as certezas demasiado certas, abala as verdades petrificadas, levanta interrogações, provoca dúvidas, abre novos horizontes, obriga ao repensamento de muita coisa. Face a cada paradigma cultural vigente, permite descortinar o sentido que anda no novo paradigma emergente. Simultaneamente testemunha, denúncia e intervenção, a literatura apela à cumplicidade dos leitores. Onde tudo era "normal" suscita o espanto. Torna-se antecipadora das grandes questões de que irão ocupar-se os filósofos e os teólogos. Não disse o Concílio Vaticano II que «a Igreja reconhece que muito aproveitou e pode aproveitar da própria oposição daqueles que a hostilizam e perseguem?» (Gaudium et spes, 44) O teólogo que se queira mover no mundo real do seu tempo carece, pois, de se internar por esse terreno e observar o que aí anda cavado, semeado e em germinação. Não pode perder de vista que é no terreno dos homens que cresce o reino de Deus. Com trigo e joio à mistura. Isso lhe abrirá um horizonte de compreensão adequado ao seu tempo, para melhor compreender a palavra da Escritura e a dos teólogos dita e escrita em outros tempos, e para melhor lhe fazer aplicação no tempo do seu próprio pensamento e escrita: que diz o Espírito da profecia aos homens do tempo presente? E ainda para mais facilmente poder encontrar ouvidos de escuta e acolhimento por parte dos homens e mulheres do seu tempo, em função dos quais, afinal, pensa e escreve.

Seja para contentamento dos teólogos - porque os provoca à revisão do discurso sobre Deus ou porque este anda nela, porventura apenas insinuado, ou vagamente aludido, ou mesmo apenas implícito e em referência oblíqua -, seja para seu descontentamento - porque lhes manifesta um mundo da sua ausência -, a literatura não pode ser ignorada por eles. Assim o entendeu, aliás, o mesmo Concílio Vaticano II ao fazer saber que «um sólido conhecimento da literatura [ ... ] parece indispensável a toda a cultura teológica séria» (Gaudium et spes, 62). Ao teólogo, como ao filósofo crente, não interessa apenas saber falar sobre Deus em si mesmo. Interessa, para além disso e mais que isso, saber como passa Deus na vida dos homens. Pena é que, embora em relação a um tempo já decorrido, tenhamos podido ouvir lamentos como este do saudoso P. Manuel Antunes: «Na história ocidental a Teologia e a Literatura ainda nunca falaram como parceiros autónomos. A maioria dos Teólogos - não o dizendo expressamente - tem pouca estima pela literatura; a maioria dos escritores tem pouca estima pela Teologia.» Era preciso passar decididamente dos tempos do anátema, com o seu "Índex" dos livros proibidos, a um tempo de diálogo interdisciplinar.

A teologia longe da literatura - e com ela, a homilética e a pregação em geral - corre o risco de se enclausurar e esclerosar, fechando-se num moralismo estreito e numa linguagem hermética (de academia ou de sacristia), impotente para fazer sintonizar com ela o homem-leitor ou o homem-ouvinte a quem se dirige, ou desmaiando numa linguagem desvitalizada, incapaz de fazer vibrar os acordes mais profundos do seu coração. Refletirá a Igreja em configuração de seita, a enfrentar primeiro a hostilidade e depois a indiferença do mundo.

 

Esta transcrição omite as notas de rodapé.

 

Jorge Coutinho
Universidade Católica Portuguesa, Faculdade de Teologia
In "Communio", 2002, n. 6
Publicado em 25.07.2016 | Atualizado em 22.04.2023

 

 
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Ao teólogo, como ao filósofo crente, não interessa apenas saber falar sobre Deus em si mesmo. Interessa, para além disso e mais que isso, saber como passa Deus na vida dos homens
A teologia longe da literatura - e com ela, a homilética e a pregação em geral - corre o risco de se enclausurar e esclerosar, fechando-se num moralismo estreito e numa linguagem hermética (de academia ou de sacristia), impotente para fazer sintonizar com ela o homem-leitor ou o homem-ouvinte a quem se dirige
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