Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura - Logótipo
secretariado nacional da
pastoral da cultura
Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura - Logótipo
secretariado nacional da
pastoral da cultura

Natal, absoluta beleza

Imagem Natividade (det.) | Giotto | C. 1311-1320 | Basílica de S. Francisco, igreja superior, Assis, Itália

Natal, absoluta beleza

Para Platão ("República", 509b), o Bem está acima de toda a essência, não se podendo, pois, confundir com qualquer entidade que dele participe. Esta intuição metafísica manifesta a definitiva distinção ontológica entre isso que dá o ser, em absoluto, e isso que o recebe, entre isso que é Deus e isso que é, por via da participação, o produto da criação divina (o Deus da "República", ao contrário do deus do "Timeu", é um Deus criador).

Há, assim, uma diferença infinita de grandeza ontológica entre Deus e a criatura: esta, por mais que cresça ontologicamente, está sempre infinitamente distante de Deus. Mas, segundo o ser, a mesma possibilidade de poder infinitamente aproximar-se de Deus é a presença nela da marca de Deus como esse ato em si infinito que contraria absolutamente o nada, quer como Deus, em si próprio, quer como presença criadora na criatura. A própria criatura, pela presença de Deus em si como ato criador, é ontológica oposição absoluta ao nada. Tal é a grandeza de Deus e da marca criatural por si posta na criatura. Platão metaforiza tal grandeza na comparação com a irradiação solar infinita a partir de um ponto de infinita "energia" («energia»: ato): o Bem, o divino, Deus.

Tal Deus não se irradia por necessidade, como se houvesse, primeiro, um Deus que não irradiasse, que, depois, passasse a irradiar. Não. Deus é a irradiação. Mas o que irradia não coincide com o que é: em cada raio irradiado, há um absoluto de diferença ontológica própria que o põe em absoluto no ser, assim se constituindo quer a absoluta grandeza diferencial do criado, irredutível em cada criatura, como cada criatura, quer a não confusão entre o criador e a criatura.

Platão chama metaforicamente ao sol «filho do Bem», e o filho não se confunde com o pai. Nem a irradiação do sol se confunde com o sol: este irradia, mas há um sol que irradia, não apenas uma irradiação solar, isto é, os participantes do bem são bem como participantes, pois são absolutamente o que são, contra o nada, mas não são absolutamente o bem como um todo, cada um deles não o esgota, assim como cada filho não esgota a fertilidade de seus pais, sobretudo se esta for infinita.

Se aplicarmos este esquema metafísico, metaforicamente veiculado, à relação bíblica entre Deus e a criatura, isto é, entre Deus e tudo que constitui o ser – dado que, se percebermos bem Platão, Deus não é «ser», mas está acima de tal como criador do ser, é sempre um «híper-ser», isso de que nunca haverá intuição cabal, podendo, do ser sempre haver tal intuição, pois o ser é precisamente isso que a nossa intuição descobre em ato, ou não há intuição alguma de ser algum, logo, não há ato de inteligência algum, o que é logicamente indiscernível do nada absoluto –, podemos perceber bem o que está em causa: do nada do ser, Deus, que transcende todo o ser, cria precisamente o ser, o ser todo, todo o ser.

Porquê? Porquê e por quê esta criação?

Platão não nos dá resposta, assumindo que há um sentido de absoluta bondade no que é, em tudo o que positivamente é, eternamente Deus se dando em ser, em possibilidade de ser: um «para que possas ser», um «que sejas» infinito e eterno, eternamente contrariando o nada através do dom metafísico de possibilidade de ser que é a ação de Deus para com as criaturas, que, na sequência, se desenvolvem numa autonomia ecológica e económica mais ou menos perfeita, cabendo ao ser humano o papel de se aproximar o mais possível de uma perfeição que o torne digno de um bom fim de uma boa caminhada, podendo alcançar algo como um «céu» definitivo ("República", final "Livro X").

Não há outro «porquê» para além da intuição do bem como isso que é uma infinita graça de positividade ontológica em absoluta oposição ao nada, e que, por tal, se dá em ser.

Metafisicamente, a posição do Génesis não pode logicamente ser diferente desta. A diferença reside em que esta graça é dada a partir de um ato de vontade, mais precisamente de amor: o Deus que de nada necessita resolve pôr em ser entes que a ele se assemelhem, isto é, que possam intuir o absoluto da presença na antítese do nada: daqui a necessidade da morte, pois, sem ela, não é possível à criatura perceber o que é o possível nada de si própria, e apenas tal intuição proléptica pode dar valor ao que o estar em ser significa. É este o significado profundo da árvore do bem e do mal, isto é, do absoluto do ser e do absoluto do não-ser. Provar de seu fruto é ficar a saber, por antegosto, a que sabe a morte, a possibilidade do não-ser absoluto.

O pecado não é uma falta moral, é a forma antecipada da aniquilação. O amor cria, o pecado aniquila: eis as duas grandes verdades da condição humana universal (não é coisa que se aplique a “cristãos” apenas).

O ser humano preferiu a morte eterna à vida eterna, como Job teria feito se não se tivesse mantido fiel ao amor de Deus e a Deus.

Apenas através da mesma forma total que tal operou poderia a vida ser restaurada em sua plenitude: assim, Deus, o infinito que anula o nada, toma a forma finita do salvável, como salvador, e, pela vida e morte sua, anula a anulação, restaura a possibilidade real da vida eterna em Deus, com Deus, por Deus, mas no ser humano, por Cristo, tão ser humano quanto os demais, só que perfeito na dimensão da finitude, assim anulando definitivamente a igualdade necessária entre finitude e imperfeição. Com Cristo, a finitude passa não só a poder ser perfeita, mas passa a ser, nele e com ele, perfeita.

Basta, agora, ao ser humano ser perfeito em sua finitude humana como Cristo foi na dele. Basta amar como Cristo amou, isto é, infinitamente na sua finitude. Este amor é salvífico, pois é precisamente isso que Deus queria do ser humano quando o criou. Não esqueçamos que é o amor de Deus que põe a criatura no ser, logo, a criatura é ato incoativo de amor de Deus em si e este mesmo amor incoativo de Deus na criatura é precisamente o ato de possibilidade de todo o amor criatural. Este, quando é, é amor de Deus em ato, no e pelo ato da criatura.

Percebe-se, assim, melhor a razão pela qual, quando se recita o Credo, quando se chega ao momento da incarnação de Cristo, se incline a cabeça, pois este é o momento que não apenas recapitula, mas que, de algum modo, repete, retoma, a criação e, assim, transporta em si todo o absoluto peso metafísico e ontológico da diferença absoluta entre o ser nosso e o possível nada nosso.

Como não reverenciar tal ato?

E o Menino-homem-Deus que deste modo vem ao ser mundano recapitula e assume toda a bondade e toda a beleza da criação, toda, a incoativa e toda a que esta permitiu, absolutizando-a, porque a chama a si. O mal, essa impotência de fazer bem, perante o absoluto da beleza, que é esplendor do bem, de Deus, de insignificante, passa a nulo. Mas não sem que, antes, o Menino, feito homem, tenha de, a fim de tudo ser perfeito na atualização do possível, experimente, não o mal, mas as suas consequências, para logo, manifestando o absoluto poder do bem, da vida, e do bem da vida, restaurar a plenitude da possibilidade do bem, através da sua ressurreição, segundo Natal, segundo absoluto de beleza.

A beleza é sempre a marca da presença de Deus no mundo, a custódia irradiante do absoluto da bondade, isso que dá o ser apenas pelo bem de fazer bem.

A experimentar pelo ser humano, esta glória do bem que se faz, de Deus que vem ao mundo em cada meu ato de bem.

Perante isto, como empalidece toda a idolatria do mal de que em grande parte é feita a história.

Santo Natal.

 

Américo Pereira
Universidade Católica Portuguesa, Faculdade de Ciências Humanas
Publicado em 21.12.2015

 

 
Imagem Natividade (det.) | Giotto | C. 1311-1320 | Basílica de S. Francisco, igreja superior, Assis, Itália
É este o significado profundo da árvore do bem e do mal, isto é, do absoluto do ser e do absoluto do não-ser. Provar de seu fruto é ficar a saber, por antegosto, a que sabe a morte, a possibilidade do não-ser absoluto
O pecado não é uma falta moral, é a forma antecipada da aniquilação. O amor cria, o pecado aniquila: eis as duas grandes verdades da condição humana universal (não é coisa que se aplique a “cristãos” apenas)
O Menino-homem-Deus que vem ao ser mundano recapitula e assume toda a bondade e toda a beleza da criação, toda, a incoativa e toda a que esta permitiu, absolutizando-a, porque a chama a si. O mal, essa impotência de fazer bem, perante o absoluto da beleza, que é esplendor do bem, de Deus, de insignificante, passa a nulo
A beleza é sempre a marca da presença de Deus no mundo, a custódia irradiante do absoluto da bondade, isso que dá o ser apenas pelo bem de fazer bem.A experimentar pelo ser humano, esta glória do bem que se faz, de Deus que vem ao mundo em cada meu ato de bem
Relacionados
Destaque
Pastoral da Cultura
Vemos, ouvimos e lemos
Perspetivas
Papa Francisco
Teologia e beleza
Impressão digital
Pedras angulares
Paisagens
Umbrais
Evangelho
Vídeos