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Questões de fé para quem crê e não crê: O Deus dos massacres

Imagem Albrecht Altdorfer (det.) | 1529 | Pinacoteca de Munique, Alemanha | D.R.

Questões de fé para quem crê e não crê: O Deus dos massacres

Não é possível ficar indiferente quando se descobre nas páginas do Antigo Testamento os massacres ordenados por Deus, perpetrados com zelo e entusiasmo pelos seus mensageiros. Tomemos um exemplo no livro de Josué. Uma frase resume bem toda uma lista de crueldades sagradas descritas nos capítulos 6 a 10: «Josué feriu toda a terra (...) sem poupar ninguém, votando ao anátema tudo o que respirava, segundo a ordem do Senhor, Deus de Israel» (10, 40). Que dizer igualmente da última "bem-aventurança" do Salmo 137, 8-9: «Cidade da Babilónia (...), feliz de quem agarrar nas tuas crianças e as esmagar contra as rochas»? Ou a pena de morte pormenorizada no "Código da Aliança" do Êxodo (21, 12-27), incluindo a lapidação, ou, como se pode ler no Levítico (20, 14; 21, 9), a cremação? E mesmo Cristo nos convida a usar a espada, porque Ele não veio «trazer a paz» (Mateus 10, 34).

A questão suscitada pelo leitor foi-me colocada uma centena de vezes ao longo do meu percurso de biblista, em conferências, encontros, escritos, intervenções na televisão.

Se se têm em conta as estatísticas estabelecidas pelo investigador alemão Raymund Schwager, há pelo menos 600 passagens na Bíblia onde povos, reis e indivíduos atacam outros e os aniquilam; a cólera de Deus desencadeia-se em mais de mil passagens, «punindo pela morte, a ruína, o fogo devorador, julgando, vingando-se, ameaçando tudo destruir», e Deus «ordena expressamente que se matem homens» mais de cem vezes.

Ser fiel ao princípio de que «está na Bíblia, por isso é preciso acreditar» pode ser perigoso se as palavras são seguidas de maneira literal e mecânica. É o "fundamentalismo", que já evocámos: partindo de boa fé pessoal e de um desejo de fidelidade absoluta, encerra-se no paradoxo, se não no absurdo ou no trágico.

É sempre necessária a justa interpretação das Escrituras, com, por um lado, a componente literária (a linguagem, a maneira de se exprimir, os géneros, etc.) e, por outro, a componente teológica fundamental.

A Bíblia - Antigo e Novo Testamento - não é uma simples coleção de teses ou teoremas abstratos que é preciso aceitar e praticar automaticamente. Cada página deixa transparecer a história da salvação.

Deus revela-se no interior da história da humanidade, reprovando o pecado e conduzindo o ser humano lentamente, passo a passo e com paciência, até horizontes de verdade e amor mais elevados e mais perfeitos.

A revelação não é, por isso, uma palavra suspensa nos céus e unicamente acessível pelo êxtase; ela é concebida como uma semente que abre um caminho sob a terra sombria e opaca da existência terrena.

Neste sentido, não se deve ficar retido numa palavra isolada: trata-se da lenta educação paciente de Deus face à «dureza de coração» do ser humano (isto é verdade igualmente para as violências do período cristão, não obstante a contradição desse comportamento com o Evangelho).

Sem minimizar a novidade trazida por Cristo, «nossa paz», como lhe chama S. Paulo, que nos convida a «dar a outra face», o Antigo Testamento apresenta-nos já um Deus que perdoa até à milésima geração (cf. Êxodo 34, 7) e impede a sua justiça de irromper pelo mal perpetrado pela humanidade (cf. Ex 32, 14).

Citemos a este propósito dois textos significativos. O primeiro é extraído do livro do profeta Ezequiel: «Porventura me hei-de comprazer com a morte do pecador - oráculo do Senhor Deus - e não com o facto de ele se converter e viver? (...) Eu não me comprazo com a morte de quem quer que seja» (18, 23.32).

E depois, o livro da Sabedoria: «Tu, que dominas a tua força, julgas com bondade e nos governas com grande indulgência (...). Ao atuar assim, Tu ensinaste o teu povo que o justo deve ser amigo dos homens» (12, 18-19).

A frase de Jesus citada pelo nosso interlocutor merece uma explicação particular: «Não penseis que vim trazer a paz à Terra; não vim trazer a paz, mas a espada» (Mateus 10, 34).

O verdadeiro sentido da frase é linear: através da imagem da espada, Cristo apresenta-se como um «sinal de contradição» (Lucas 2, 34), como aquele que exige uma tomada de posição clara face à sua mensagem. Ele está longe de ser indiferente ou neutro perante as escolhas morais e vitais de quem o decide seguir.

A confirmação desta interpretação encontra-se nas palavras que Ele repete aos seus discípulos na última noite da sua vida terrestre, ao exortar: «Quem não tem espada venda a capa e compre uma». Face à reação literal e limitada dos discípulos, que lhe respondem «Senhor, aqui estão duas espadas», Jesus exclama: «Basta!» (Lucas 22, 35-38).

 

Card. Gianfranco Ravasi
Biblista, presidente do Pontifício Conselho da Cultura
In "150 questions à la foi", ed. Mame
Trad. / edição: Rui Jorge Martins
Publicado em 02.02.2015

 

 
Imagem Albrecht Altdorfer (det.) | 1529 | Pinacoteca de Munique, Alemanha | D.R.
Não se deve ficar retido numa palavra isolada: trata-se da lenta educação paciente de Deus face à «dureza de coração» do ser humano (isto é verdade igualmente para as violências do período cristão, não obstante a contradição desse comportamento com o Evangelho)
Através da imagem da espada, Cristo apresenta-se como um «sinal de contradição», como aquele que exige uma tomada de posição clara face à sua mensagem. Ele está longe de ser indiferente ou neutro perante as escolhas morais e vitais de quem o decide seguir
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