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Leitura: "O desejo e sua transformação no seguimento de Jesus"

Leitura: "O desejo e sua transformação no seguimento de Jesus"

Imagem Capa | D.R.

«Uma verdadeira teologia do desejo, trabalho inédito no panorama português», é como é apresentado o livro "O desejo e sua transformação no seguimento de Jesus - Uma leitura dos escritos de Sebastian Moore, O.S.B.".

A obra, resultado da tese de doutoramento de Teresa Messias, foi recentemente publicada pela Paulus Editora e será apresentada esta quarta-feira, em Lisboa, pelo Fr. Bento Domingos, O.P. e P. Vasco Pinto de Magalhães, S.J.

A sessão de apresentação decorre a 26 de abril, às 19h00, na Universidade Católica, sala de exposições, 2º andar do edifício da biblioteca João Paulo II.

 

"O desejo e sua transformação no seguimento de Jesus"
Excertos do capítulo III
Teresa Messias

O teólogo beneditino compreende o homem desde si mesmo, do seu sentir, experimentar, compreender, raciocinar, julgar e valorizar, discernir e decidir, emocionar-se, experimentar a conversão atuada por Deus em si, ser amado. Compreende-o desde as estruturas de consciência, do processo de transcendência e transformação, onde é e atua dentro e fora de si mesmo.»

«O sujeito existencial é, portanto, aquele que se compromete totalmente em e desde o seu ser, aquele que “joga” a sua essência pessoal no ato de viver a sua vocação radical à transcendência. É aquele que percebe a sua própria transformação e os seus bloqueios, tomando decisões em função da perceção recebida. É, de modo eminente, o homem capaz de atuar no mundo, aquele em quem a energia interna aos processos autoconscientes, os sentimentos que permeiam todos os atos conscientes culminam na ação livre, decidida e amorosa que afirma o bem de valor.



O encontro dos discípulos com Jesus ressuscitado é o acontecimento determinante que culmina o processo transformativo do desejo humano sob a ação de Deus em Cristo, tal como S. Moore o contempla e reflete



Ação desde si e sobre si mesmo e no mundo. Ação transformadora e, por isso, dramática: constrói ou destrói o sujeito. Faz dele uma fonte de valor e de bem, leva-o à sua plenitude enquanto homem ou cava a sua própria degradação. Ação transformadora que atua segundo a verdade, o bem e o amor, que é alcançada pelo dom de Deus (de Deus e dos outros homens e mulheres) e alcança a experiência da comunhão. O que pode ser afirmação do mal.

O sujeito existencial fiel ao seu dinamismo interno é o que acede a um saber veraz de e sobre o homem e a sua estrutura existencial, desde a sua mesma existência pessoal, as suas experiências. Assim, adquire um saber que tem validade não só para si como também para todos. Pode ser recebido e verificado na experiência pessoal dos demais seres humanos sem deixar de ser confrontado no seu núcleo com a tradição para ser também enriquecido, desafiado e confirmado por ela.

Esta possibilidade de comunicação e reflexo entre a experiência de Moore e a nossa é relevante e fundamental na sua antropologia. É ela, por outro lado, que permite a cada um de nós, seus leitores, refletir e sentir ressoar nos textos a nossa própria existência subjetiva de busca e encontro do fundamento do nosso ser consciente que é, simultaneamente, origem e destino último da nossa entrega pessoal total.»



Moore nunca considera a relação Ressuscitado-discípulos como algo externo a estes últimos, como a palavra “visão” pode, de algum modo, induzir a pensar. O termo “experiência”, muito usado por Moore, traduz com maior precisão o facto de este acontecimento entre o Mestre e os discípulos produzir alterações internas, as quais são consciencializadas pelo sujeito (o que não quer dizer que as possa explicar ou interpretar instantaneamente), das quais se autoapropria



«Na obra de Sebastian Moore, todo o processo de transformação do desejo vivido pelos discípulos no seguimento do Mestre encontra o seu sentido, resolução e inteligibilidade na experiência que lhe sobrevém no encontro com Jesus ressuscitado.»

 

A experiência do encontro com o Ressuscitado
Capítulo VI

«O encontro dos discípulos com Jesus ressuscitado é o acontecimento determinante que culmina o processo transformativo do desejo humano sob a ação de Deus em Cristo, tal como S. Moore o contempla e reflete.

O beneditino não se expande nos seus escritos em considerações sobre o que seja a Ressurreição em si mesma. Centra-se, antes, na experiência subjetiva que os discípulos fazem do Ressuscitado. É a partir do que acontece aos discípulos, da sua experiência interna de uma mudança que os afeta na sua identidade radical, não autoprovocada mas causada pelo encontro com Jesus depois da sua morte, que Moore se aproxima do que é a terceira e determinante etapa da transformação do self humano, do dinamismo desejante central à consciência.



Ser tocado por Deus é experimentar, apesar de muito débil e elusivamente, a realidade fora da qual não tenho significado e assim não tenho ser. […] A relação com Deus, seja qual for o aspeto em que se considere, é desdobramento, até à plenitude, de uma qualidade de relacionamento que é própria da estrutura da minha mente e do meu coração. Só nestes termos pode Deus ser coerentemente acreditado como pessoa. Ele é tudo ou nada



O teólogo usa vários termos ou categorias para caracterizar o impacto causado pela pessoa de Jesus, com as suas novas características após a Ressurreição, nos seus discípulos. Essas categorias são: visão, experiência, encontro. De entre elas há uma clara preferência pelas categorias “experiência” e “encontro”. Na realidade, Moore nunca considera a relação Ressuscitado-discípulos como algo externo a estes últimos, como a palavra “visão” pode, de algum modo, induzir a pensar. O termo “experiência”, muito usado por Moore, traduz com maior precisão o facto de este acontecimento entre o Mestre e os discípulos produzir alterações internas, as quais são consciencializadas pelo sujeito (o que não quer dizer que as possa explicar ou interpretar instantaneamente), das quais se autoapropria. A experiência causada por um influxo do Ressuscitado produz, pensa Moore, uma mudança interna radical no sujeito. No entanto, é talvez categoria “encontro interpessoal” a que melhor significa aquilo que acontece nesta ação produzida no discípulo pelo Ressuscitado, uma vez que ela subsume a dinâmica experiencial interna e a componente intersubjetiva: encontro é a categoria que relaciona experiência e intersubjetividade, que dá relevo a uma transformação que é comunhão entre duas alteridades. No artigo "Some Principles For An Adequate theism", Moore ocupa-se em clarificar os limites, dificuldades e virtudes do uso desta categoria para expressar a experiência de se conhecer unido a Deus. A esse respeito afirma:

"A noção de 'encontro com Deus', especialmente quando esta noção degenera em cliché, é enganadora, porque há nela algo adventício.  Encontramos toda a espécie de coisas, e encontramos pessoas, e a noção de encontro assim construída impede-nos de pensar a coisa encontrada como relacionada transcendentalmente com a mente e a estrutura psíquica total. Com a experiência de Deus, esta relação transcendental é o facto todo-controlador, todo-modelador. Ser tocado por Deus é experimentar, apesar de muito débil e elusivamente, a realidade fora da qual não tenho significado e assim não tenho ser. […] A relação com Deus, seja qual for o aspeto em que se considere, é desdobramento, até à plenitude, de uma qualidade de relacionamento que é própria da estrutura da minha mente e do meu coração. Só nestes termos pode Deus ser coerentemente acreditado como pessoa. Ele é tudo ou nada. […] O "self" é autotranscendente. Na medida em que experimento a minha autotranscendência como tal, sou tocado por uma realidade que é a razão última da minha autotranscendência. Sou tocado pelo que me faz o que sou e quem sou. Experimento ser criado."



O desaparecimento súbito da vida e da presença de Jesus, de Deus em e através de Jesus, sentida durante a vida pública nos seus efeitos internos, provoca o esvaziamento no desejo (centro do "self") de uma vitalidade, desejabilidade, gozo e prazer, sentido e comunhão antes experimentada. Deus já não é sentido como estando presente ou atuante. O desejo já não é experiência de gozo, de valor, de desejabilidade



Só é possível compreender, com Sebastian Moore, a visão, experiência ou encontro do Ressuscitado com os discípulos como um preenchimento do desejo se tivermos conseguido, previamente, acompanhar o autor na sua contemplação e explicitação da participação dos discípulos na paixão e morte de Jesus. Percebendo o que terá sido essa grande experiência de esvaziamento do desejo, de desolação mais total ou de morte em vida, estamos em condições de compreender o encontro com o Ressuscitado como preenchimento de um vazio, como vida emergindo do interior da morte.

Assim se revela a importância decisiva de todo o capítulo VII que consistiu em clarificar como o autor contempla o encontro do Ressuscitado como uma experiência que acontece, eminentemente, não fora do sujeito e captada pelos seus sentidos (sem que este aspeto seja negado), mas sobretudo como acontecimento que tem fundamentalmente lugar dentro da consciência. Mais especificamente, Moore entende-o como realidade que provoca efeitos dentro da consciência na sua abertura a Deus, na desejabilidade caracterizada pela sua dinâmica sensibilidade-afetividade que, apesar de aberta à transcendência, se encontra num estado de perda relacional, de isolamento, de sofrimento, de incapacidade para se sentir e se conhecer como agradável, desejável, valiosa e valorizável. Mais ainda, o ato transformador acontece num desejo que perdeu o impulso dinâmico, a confiança para se arriscar, desde si mesmo, a uma entrega a outra pessoa. É um desejo vazio também porque perdeu Jesus, no qual estava centrado e com o qual vivia em comunhão unificadora. A iniciativa de Jesus tinha sido o estímulo para o despertar da desejabilidade do discípulo para um novo conhecimento da sua identidade, valor, potencialidade. O Mestre constituir-se-á, com a sua personalidade, lugar de orientação e receção do desejo do discípulo, no outro com quem se viveu a reciprocidade de desejos, em comunhão pessoal onde Deus estava presente.

Com a morte de Jesus desaparece a experiência de uma ação de Deus sensível, estimuladora e reveladora o desejo humano do discípulo. Essa ação produzira nos discípulos uma transformação que tinha sido, também, uma revelação: o conhecimento e acesso ao mais profundo, valioso e desejável da sua identidade, da sua vida como valor inalienável, amante e amável.



A experiência do vazio constitui em Moore um modo de tornar inteligível e compreensível, desde a experiência do sujeito existencial, a mais profunda experiência da condição criatural na sua radical impotência para existir desde si mesma, por si mesma, para chegar a Deus desde si



Em termos da dinâmica psicológica implicada neste processo intersubjetivo, vimos como a relação com Jesus transformou as forças profundas que sustentam a consciência dinâmica de identidade ("self" e ego, sentimento de ser unido e ser separado). Jesus proporcionou a cada discípulo um novo sentimento de união com o Mistério fundante do ser, mediado pela sua presença concreta, uma nova consciência de ser valorizado e aceite na sua diferença como um bem a desenvolver. Uma nova identidade, um novo acesso a si mesmo (ao "self") e uma nova imagem de si frente ao mundo e aos outros (ego) tinham sido despertadas e sustentadas pela relação com Jesus. Em todo o processo de seguimento de Jesus até à Paixão, Moore sempre considerou o Espírito Santo também agente no processo, através do seu influxo atuante nos discípulos na relação que Jesus estabeleceu com eles. No momento da morte de Jesus, o influxo do Espírito Santo que podia ser comunicado por meio da mediação externa de Jesus, na sua condição de homem, tinha atingido o seu máximo. O desejo dos discípulos tinha sido intensificado o mais possível por Jesus desde a sua situação de mediador externo.

Esse processo de morte (em vida) significou uma real transformação da consciência do discípulo, mas a morte, por si só, não conduz à maior profundidade do processo de transformação do desejo. Por causa do pecado no discípulo – a misteriosa incapacidade de se aceitar, de se reconciliar consigo mesmo, a divisão interna ao desejo que a pessoa é e que impede a aceitação confiante e a entrega amorosa aos demais – não tinha sido anulada. A criatura tinha sido levada à máxima resposta possível desde a sua finitude, ainda não radicalmente transformada por Jesus. Para que esta transformação se possa dar, Jesus tem de se fazer interior ao discípulo. Tem de entrar na sua realidade a partir do seu centro, assumir e unir-se à sua situação de pecado, aceitar o seu bloqueio e a sua violência, a autorrejeição de si mesmo imposto pelo mistério do pecado ao "self". É essa descida ao “inferno” da situação do discípulo – que se relaciona também com a descida aos infernos de Jesus como assunção da realidade última criada pelo pecado, prisão e morte espiritual do homem para além da morte corporal – e a sua aceitação incondicional aquilo que Jesus realiza na sua paixão e morte. Uma descida para assumir aquilo que depois será levantado e libertado com a força do amor do Pai pelo seu Filho e fará do Cristo ressuscitar o “Senhor” que, sendo Deus, vence e domina sobre todos os poderes da morte sobre a vida resgatada com amor até ao extremo (cf. Jo 13,1).



Se, por um lado, Sebastian Moore entende o "self" como desejo que é em si mesmo dádiva, uma potencialidade e não uma carência ou vazio a preencher, por outro lado deixa bem claro que essa potencialidade é dom recebido, é participação do Mistério que cria e sustenta o "self"



No entanto, para Moore, como foi dito no capítulo anterior, a morte do Mestre leva também o discípulo a uma experiência de morte. Morte entendida como perda de sentimento de união com Jesus, da experiência de um desejo unitivo criador de identidade, de sentido e horizonte para a existência, de missão. A morte do Mestre causou, segundo contempla Moore, uma desolação total na consciência do discípulo, na sua identidade, tanto no acesso e unidade interna de si mesmo como no conhecimento de quem é, no sentido que dá à sua existência. O desaparecimento súbito da vida e da presença de Jesus, de Deus em e através de Jesus, sentida durante a vida pública nos seus efeitos internos, provoca o esvaziamento no desejo (centro do "self") de uma vitalidade, desejabilidade, gozo e prazer, sentido e comunhão antes experimentada. Deus já não é sentido como estando presente ou atuante. O desejo já não é experiência de gozo, de valor, de desejabilidade.

Na tentativa de descrever a experiência subjetiva inerente a um tal estado, Moore chama-o de “inferno” ou “morte em vida”. A morte é a perda de relação com o Outro, com o Outro desejante que, porque é Deus, permite ao discípulo entrar na profundidade da sua consciência onde o "self" é aberto ao Mistério e autorrecebido em e desde o Mistério. A experiência do vazio constitui em Moore um modo de tornar inteligível e compreensível, desde a experiência do sujeito existencial, a mais profunda experiência da condição criatural na sua radical impotência para existir desde si mesma, por si mesma, para chegar a Deus desde si. Se, por um lado, Sebastian Moore entende o "self" como desejo que é em si mesmo dádiva, uma potencialidade e não uma carência ou vazio a preencher, por outro lado deixa bem claro que essa potencialidade é dom recebido, é participação do Mistério que cria e sustenta o "self". O "self" é autorrecebido do Mistério criador como dom gratuito. Mais ainda, tem as forças de pecado e morte a rodeá-lo, atacá-lo e dividi-lo.

O vazio do desejo do discípulo experimentado com a morte de Jesus produz uma privação que é, também, conhecimento por parte do discípulo da sua verdade, da sua criaturalidade, da sua finitude, da sua radical dependência de Deus para existir, para desejar como experiência de expansão do ser, de gozo, de bondade e de gratuitidade, de ser-para-o-outro e do seu pecado.

Esta é a experiência de chegar, entrar e estar num estado do qual nada nem ninguém o pode tirar. Só Deus. Só Deus pode abrir desde o interior, desde as profundidades do "self" em experiência de desintegração e morte, este estado, conferindo-lhe sentido, vida, bondade, identidade e fecundidade. Este vazio é a consequência da abrupta perda de identidade até aqui adquirida, a desaparição da relação a outro (e por consequência a si mesmo) que estruturavam a consciência de si no seu centro mais profundo e global ("self") e na imagem de si construída desde as interações intersubjetivas, sociais, históricas.»



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SNPC
Publicado em 24.04.2017

 

Título: O desejo e sua transformação no seguimento de Jesus - Uma leitura dos escritos de Sebastian Moore
Autora: Teresa Messias
Editora: Paulus
Páginas: 674
Preço: 23,00 €
ISBN: 9789723019650

 

 
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