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O Evangelho

Não sei quantas vezes vi já este filme que Pier Paolo Pasolini rodou em cima do relato do Evangelho de Mateus. Ao longo destes anos tenho reunido, numa espécie de paixão que raramente me toma, tudo, mas mesmo tudo, o que acerca desse filme esteve ao meu alcance. Tenho um cartaz enorme dele na única parede sem livros do quarto onde estudo e trabalho. Tenho dezenas de livros, um ficheiro organizado com artigos saídos em periódicos, duas ou três teses que se escreveram sobre o filme, recortes contendo aquele tipo de curiosidades que tranquiliza, por momentos, a imaginação do colecionador (por exemplo, uma entrevista que um jornal italiano faz a Enrique Irazoqui, o protagonista da película, trinta anos depois das rodagens ou um raro testemunho da romancista Natália Ginzburg, que tem uma participação de três minutos no filme), peças avulsas de um puzzle que já se confunde com a minha vida.

Ontem mostramos o filme na Capela do Rato. Eu fiquei à entrada, para ajudar a arrumar os que chegavam atrasados, e acabei por vê-lo de pé, encostado a uma parede, completamente comovido com a situação: do coro da Igreja descemos um lençol, giramos as cadeiras nessa direção, abrimos as portas, apagaram-se as luzes. E, já na escuridão, soube-me bem reencontrar, plano a plano, com familiaridade e estranheza, este que é um dos mais extraordinários e exigentes relatos da figura de Jesus.

São tantas as conexões que se podem descobrir, nesta singularíssima obra de um não-crente (era assim que Pasolini se definia), mas que restabelece a crença na sua autenticidade, despojada aqui é verdade, mas intensíssima e vital. «Por vezes, sinto-me como criança sem mãe. Por vezes, sinto-me como criança sem mãe» - É o que o canto diz (um inesquecível espiritual) na cena dos Reis Magos. E a simbólica da “mãe” vai revelar-se fundamental na apropriação silenciosa, e também biográfica, que o cineasta vai fazer da história de Jesus. De facto, temos duas mulheres a representar o papel de Maria. Se para a primeira fase (a de Nazaré e Belém) é escolhida, como seria de esperar, uma rapariga de jovem idade, a Maria da vida adulta de Jesus e da sua paixão é representada por Susana Pasolini, isto é, a própria mãe do realizador. Gera-se quase um efeito de corte, porque se diria que a mãe de Pasolini já é demasiado idosa para aquela função (na realidade, a Virgem Maria não teria talvez cinquenta anos à altura dos acontecimentos relatados e Susana Pasolini tem mais de setenta). Mas esse corte dá a ver o âmago da questão, que é não só a deste filme, mas a de todas as leituras da história de Jesus. O que é recordar Jesus? O que é evocá-lo, buscá-lo, revisitar a sua memória e os contornos indizíveis da sua atual presença na história? Não tenho dúvidas que passa por arriscar, com verdade, a hipótese: e se ele falasse para mim? E se tivesse sido eu, e os da minha casa, os seus companheiros? Se tivéssemos sido nós a acolher o silêncio enigmático da cruz? Se tivéssemos sido nós a chorar a sua morte e a acolher o sobressalto que a notícia da sua páscoa não cessou ainda de provocar?

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José Tolentino Mendonça
In Diário de Notícias (Madeira)
17.04.11

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Enrique Irazoqui

























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