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Os anjos e o cristianismo

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Os anjos e o cristianismo

Será possível falar, à luz dos escritos neotestamentários, de uma angelogia tipicamente cristã? É que a emergência do cristianismo coincide com um surto assinalável de movimentos religiosos, filosóficos e místicos onde a questão dos seres invisíveis é dominante. Mas no cristianismo das origens ela aparece, mais do que ofuscada, claramente secundarizada, pela polaridade hermenêutica representada por Jesus. O epíteto de «judeu marginal», que Crossan cunhou para Jesus, em muitos sentidos é adequado.

Quando se percorre o cânone do Novo Testamento, sobretudo no confronto com a religiosidade popular daquela época, surpreende a escassez de presenças angélicas. A figura de Jesus relega-as para um segundo plano, tornando inoportuna ou subsidiária qualquer outra manifestação divina. Nos relatos evangélicos, em vez de um vaivém ininterrupto, aos seres angélicos como que é restringida a presença, estipulando que eles se manifestem prevalentemente em duas ocasiões: o princípio e o fim da vida de Jesus. Um anjo anuncia em sonhos a José o nascimento de Jesus (Mt l ,20-33), cumprindo as profecias messiânicas. Um outro ordena que fuja para o Egito, e depois que reentre na Palestina após a morte de Herodes (Mt 2,13-23). Lucas começa também a sua narração com duas aparições simétricas, utilizando o procedimento literário da síncrise que lhe é tão caro: um anjo anuncia a Zacarias o nascimento de João Batista (Lc 1,11-20) e o arcanjo Gabriel anuncia a Maria o nascimento do Salvador (Lc 1,26-38). A manifestação aos pastores fecha com amplidão e emaravilhamento a sequência da Natividade, pois o mensageiro é acompanhado por um exército celeste (Lc 2,8-14). À entrada de Jesus na vida pública, iniciada com o batismo, segue-se um retiro de quarenta dias no deserto, durante os quais Jesus deve sofrer os assaltos de Satanás. Lá ainda os anjos vêm servi-lo (Mt 4,11; Mc 1,13; Lc 4,9-13).

ImagemCaravaggio | D.R.

E depois, no corpo do Evangelho, praticamente os anjos desaparecem. Sobre as parábolas de Jesus, Paul Ricoeur escreve um parágrafo que pode bem iluminar esta verdadeira viragem que Jesus protagoniza: «A primeira coisa que pode interpelar-nos é que as parábolas são relatos radicalmente profanos. Não há nem deuses, nem demónios, nem anjos, nem milagres, nem tempo anterior ao tempo, como nos relatos fundadores, nem mesmo acontecimentos fundadores como o relato do Êxodo. Nada disto, mas precisamente gente como nós: proprietários palestinenses partindo em viagem e alugando os seus campos, gerentes e trabalhadores, semeadores e pescadores, pais e filhos; numa palavra: gente comum fazendo coisas comuns. Vendendo e comprando, lançando uma rede ao mar e por aí fora. Aqui se encontra o paradoxo inicial: por um lado estas histórias são - como disse um crítico - relatos da normalidade, mas por outro lado, é o Reino de Deus que é dito ser como isso. O extraordinário é como o ordinário.»

ImagemDomenico Ghirlandaio | D.R.

Apenas no termo do ministério de Jesus os anjos retornam: no dia de Páscoa, na vizinhança do sepulcro vazio. Às mulheres que se deslocam ao sepulcro eles entregam a mensagem: «Ele ressuscitou.» Esta manifestação surge revestida de maravilhoso (Mt 28,1-8; Mc 16,1-8; Lc 24,1-8) próprio às encenações do tempo escatológico. Fecha-se assim o círculo: ao anúncio do nascimento terrestre corresponde o anúncio da Ressurreição como evento último.

Particularmente concentrada nas extremidades dos Evangelhos, e com um uso económico e parcimonioso, a presença angélica volta a estar mais disseminada nos Atos dos Apóstolos: ela acompanha os primeiros passos da Igreja. No momento da ascensão de Jesus, dois anjos apresentam-se aos discípulos e lembram-lhes a sua missão (Act 1,10-11). Os Apóstolos aprisionados são libertados por um Anjo do Senhor que lhes abre a porta (Act 5,19). Mais adiante, a mesma aventura ocorre com Pedro, prisioneiro do rei Herodes Agripa (Act 12,6-11). Numa passagem onde a fé evidentemente interpreta a história, este monarca é fulminado por um anjo, por não ter dado glória a Deus (At 12,21-23). E é frequente a intervenção do mensageiro celeste a traduzir uma inspiração do Espírito: um anjo assinala a Filipe a estrada que há de tomar (Act 8,26); outro ordena a Cornélio que mande buscar a Jope o apóstolo Pedro (Act 10,3-33) ou adverte Paulo de um naufrágio (At 27,22-25).

ImagemBenozzo Gozzoli | D.R.

Os anjos aparecem e reaparecem como figuras de um discurso que reflete a diversidade das heranças, influências e controvérsias na construção da narrativa cristã. Ajudam a perceber a sua função programática (Deus precede a história); performativa (Deus muda o rumo da história); e interpretativa (Deus revela o sentido da história). Mas do Novo Testamento destaca-se sobretudo um duplo esforço: situar exatamente a figura do anjo face ao significado central de Jesus Cristo, e integrar de uma forma expurgada e num quadro teológico novo elementos da herança da angeolologia hebraica. Diz-se, por exemplo, que a Lei de Moisés foi ditada pelos anjos, e não por Yahveh diretamente (At 7,53; He 2,2). Disso deriva a superioridade da Nova Aliança sobre a antiga, a proeminência do Filho sobre os anjos, a primazia da profecia sobre a Lei. O mistério da encarnação do Verbo foi escondido aos anjos, e, por isso, Cristo convida a reinterpretar as Escrituras, que os judeus não podem compreender corretamente. Paulo recusa a mediação angélica (Gal 1,8; 3,19; 1Tim 2,5) que é suplantada definitivamente pela efusão do Espírito Santo. Como mediador supremo, Jesus abarca integralmente a função soteriológica [salvadora], e por isso «os céus abertos» e o movimento dos anjos de Deus, de que São João fala, na cena da vocação de Natanael, «um verdadeiro israelita», fazendo alusão à escada de Jacob («Em verdade, em verdade vos digo: vereis o Céu aberto e os anjos de Deus subindo e descendo por meio do Filho do Homem» - Jo 1,51), foram interpretados como a manifestação de uma nova hierarquia dos céus, que passa a ter em Cristo o referencial.

ImagemLorenzo di Credi | D.R.

Os Anjos e a representação da experiência cristã

Era fervilhante deste ponto de vista o mundo a partir do qual o cristianismo se inscreve. No início do I século, a comunidade de Qumran acreditava existir uma correspondência, ou mesmo um sincronismo, entre as suas celebrações e as liturgias angelicais. Assim se consuma o sentido profundo do culto aos anjos. Transbordam igualmente de anjos as doutrinas gnósticas, em plena expansão. Não para de crescer o seu encargo teofânico. Se o iniciado alcança a iluminação interior, é porque os mensageiros celestes o conduzem nesse escondido percurso unitivo com a sua essência espiritual e celeste. Esta viagem é descrita como uma espécie de dramaturgia não apenas individual, mas cósmica, e aí assoma o dualismo entre Luz e trevas, entre entidades eéons do mundo espiritual. Nos meios do horizonte greco-romano desenvolve-se também o discurso angelológico.

ImagemMiguel Ângelo | D.R.

É com imagens tradicionais desses diversos mundos que o Novo Testamento vai confrontar-se. Filipe F. Ramos escreve que, neste domínio, «a cenografia do Novo Testamento coincide com a do Antigo». A representação dos céus aparentemente não se altera ou altera-se pouco: eles são sempre povoados por anjos, cujos coros rodeiam o trono divino, aclamam o Senhor (Ap 5,11-14), cumprem uma liturgia eterna (At 19,1-10). Contudo, se ocorre uma recuperação de imagens e metáforas anteriores, há a preocupação de enquadrá-las numa arquitetura muito própria, ao serviço de uma verdade original, a do significado escatológico do Filho do Homem.

ImagemRubens | D.R.

A costura mais íntima e também a mais visível do Apocalipse são os anjos: o livro constitui-se a partir da revelação angélica (Ap 1,1) e eles são atores na própria trama. Cabe-lhes o desenrolar das visões e do seu sentido: dão a ver a grande cidade infiel (Ap 17) e o seu contraponto, a nova Jerusalém, esposa do Cordeiro (Ap 21,9-27). Através de polaridades paradoxais declaram o plano de Deus e apresentam-se como seus executores. E investem-se de uma função cheia de consequências políticas: como anjos-príncipes dos reinos do Oriente (Ap 9,13) e das Igrejas da Ásia (Ap 1,20), são protetores das comunidades humanas. Já em Lucas, no chamado «Evangelho dos perdidos», constituído pelas parábolas da misericórdia do capítulo 15, se refere a solicitude dos anjos para descrever como o inteiro céu conspira e festeja o reencontro dos que se haviam perdido.

ImagemLourdes Castro | D.R.

Mas, mesmo no plano mais próximo, o do destino pessoal, uma relação com os anjos se vai cimentando: na parábola do pobre Lázaro, depois de todos os seus tormentos, são os anjos que conduzem ao céu a sua alma (Lc 16,22). De novo aqui percebemos o cristianismo a dialogar com os seus arredores. «Já os essénios ensinavam que os homens viviam permanentemente sob o olhar dos anjos e os pregadores judaicos proclamavam que cada indivíduo era acompanhado aqui em baixo por um bom anjo e um mau anjo.» Aquilo que a tradição cristã vai tematizar com a figura do anjo da guarda não anda longe destas conceções. Um paralelo pode ser entrevisto na passagem de Mt 18,10, onde Jesus diz: «Livrai-vos de desprezar um só destes pequeninos, pois digo-vos que os seus anjos, no Céu, veem constantemente a face de meu Pai que está no Céu.» E sabemos o prodigioso desenvolvimento que, na piedade cristã, este tema conheceu.

ImagemSimone Martini | D.R.

Quanto à natureza dos anjos e ao seu enquadramento na cosmologia, o assunto não deixa de produzir espanto, acolhendo-se naquele claro-escuro de uma linguagem que diz não dizendo, própria da Fé e das suas representações. Um exemplo paradigmático é o de Paulo. No seu epistolário, o Apóstolo parece ligar-se ainda, e quase desconcertantemente, a velhas representações dos espíritos aéreos e astrais, que arriscam mediar a relação entre o homem e Deus. Porém, revisitando esse estaleiro iconográfico, a teologia paulina não pode ser mais veementemente clara: estas potências existem sob o poder de Cristo glorioso, que tem submetido todo o universo (1 Cor 4,9): «para que, ao nome de Jesus, se dobrem todos os joelhos, os dos seres que estão no céu, na terra e debaixo da terra» (Fl 2,10). Podemos, por isso, concluir que, mais importante que o esclarecimento ontológico dos personagens ou, como no Antigo Testamento, a determinação do seu âmbito de funções, o essencial é verificar que a angelologia é agora inseparável da cristologia. Com o seu poder vocativo que não se dissolve, a angelologia cristã sublinha o que, de forma lapidar, se escreve na Carta aos Colossenses: «A realidade está em Cristo» (Col 2,17).

 

José Tolentino Mendonça
In A leitura infinita, ed. Assírio & Alvim
Esta transcrição omite as notas de rodapé da edição em papel
Publicado em 02.10.2014

 

 
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