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Pai Natal ou Menino Jesus?

Pai Natal ou Menino Jesus?

Imagem leaf/Bigstock.com

Quando chega o Natal há uma insistência contumaz em temas de concórdia, paz, consenso e solidariedade. Natal não é momento de conflito e dissenso. Há que buscar, outrossim, caminhos de concórdia, superando as desavenças familiares, eclesiais, políticas ou que tais.

No entanto, no imaginário sobretudo infantil, mas não menos no adulto, a conceção do Natal repousa hoje sobre um conflito dificilmente reconciliável: Pai Natal ou Menino Jesus? Enquanto muitos da minha geração ouviam falar do Pai Natal, montavam a árvore, mas tinham o foco da festa sobre o presépio e o Menino recém-nascido, hoje estes são senão ignorados pelo menos obscurecidos pelos presentes sob a árvore. E sobretudo pelo Pai Natal.

Adultos e pequenos adejam em torno de símbolos natalícios, ávidos pela troca de presentes, que se tornou o momento álgido da festa. Comer e gastar: infelizmente esse é o lema em que se transformou o Natal, sob a batuta do bom velhinho que vai aos centros comerciais e tira fotos com as criancinhas ao colo. E isso revela-nos tristemente que estamos rapidamente a regredir para um neopaganismo. Expulsam-se as tradições religiosas e culturais que fizeram a nossa civilização, para dar lugar a seres lendários e mágicos que possam povoar o nosso imaginário de magia e crenças supersticiosas em maior ou menor grau.

Quem é o Pai Natal. Trata-se de figura lendária cuja existência encontra a sua origem em contos hagiográficos tendo como fundo a figura histórica de S. Nicolau. Varia e tem simulacros noutras latitudes, como na Grécia, onde a 1 de janeiro se celebra Basílio de Cesareia, respeitável Padre da Igreja, responsável pela teologia do Espírito Santo no Credo Niceno-Constantinopolitano e que jamais deve ter imaginado que iriam associar o seu nome à troca de presentes na festa natalícia.



Ninguém ou muito poucos se recordam daquele que é ou devia ser o centro da festa: a criança divina que se fez carne e nos trouxe a salvação. Ninguém olha para ela, tão quietinha e humilde na manjedoura ao lado dos seus pais



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Já em Espanha e nos países de língua espanhola em geral, o dia dos presentes é 6 de janeiro, quando são celebrados os Reis Magos. A data tenta preservar a conexão com o cristianismo, já que os três sábios do Oriente levaram ao Menino presentes carregados de simbolismo: ouro, a realeza; incenso, a divindade; mirra, a humanidade.

Miméticos que somos, ficámos com o Pai Natal da neve, do Norte, que teve a sua imagem associada à Coca Cola e a todas as marcas comerciais possíveis e imagináveis. Fazemos neves de algodão, rodeamos o velhinho de renas (animal inexistente nas nossas paragens) e caímos de boca nos presentes, fazendo listas e percorrendo-as de alto a baixo.

Até de S. Nicolau, responsável pela origem do Pai Natal, nos afastamos, uma vez que este era arcebispo de Mira, na Turquia, e viveu no século IV. Destacou-se pela caridade, ajudando anonimamente os pobres, distribuindo moedas de ouro pelas chaminés das casas. A sua transformação em símbolo natalício ocorreu na Alemanha e a partir daí correu mundo.

S. Nicolau, com os seus trajes de bispo, foi substituído pelo velhinho de roupa vermelha e botas. Mora numa terra de neve eterna, ou na sua casa no Polo Norte. E tem até uma esposa, Mãe Natal, que não tem tanta popularidade entre nós. O que tem, sim, popularidade é o seu séquito de renas voadoras, que trazem num trenó os brinquedos para os depositar nas chaminés, e os elfos mágicos que os fabricam, todos vindos ao encontro dos desejos daqueles que têm poder aquisitivo, inundando as casas e as festas natalícias. As crianças fazem listas e cartas ao velhinho, pedindo os presentes, e os pais servem-se disso para fazê-los comportarem-se bem.



Nunca em toda a minha vida, em alguns momentos de vitória profissional, de alegria celebrativa ou de reconhecimento académico, me lembro de me ter sentido tão honrada, tão privilegiada como naquela ocasião em que carreguei com imenso cuidado a imagem rosada do Menino



Mas esse bom comportamento é quase impossível, já que não há ceia de Natal que possa fluir em conversação agradável e afetuosa com os pequenos indóceis e rondando a árvore, gemendo e gritando de ansiedade pelos seus presentes, olhando ávidos os misteriosos embrulhos que ali faíscam como pepitas de ouro. Há que proceder à distribuição, dizendo que foram trazidos pelo Pai Natal, para ver se eles se acalmam, embora ao fim da noite já estejam entediados do que lhes coube e comecem a discutir pelo presente do irmão ou do primo.

Ninguém ou muito poucos se recordam daquele que é ou devia ser o centro da festa: a criança divina que se fez carne e nos trouxe a salvação. Ninguém olha para ela, tão quietinha e humilde na manjedoura ao lado dos seus pais, Maria e José, jovens e honrados israelitas, obrigados a obedecer às absurdas leis do ocupante romano.

Lembro-me quando no colégio, ainda pequena, íamos à missa do Galo. E uma de nós era sorteada para carregar o Menino Jesus e depositá-lo no presépio. Nunca em toda a minha vida, em alguns momentos de vitória profissional, de alegria celebrativa ou de reconhecimento académico, me lembro de me ter sentido tão honrada, tão privilegiada como naquela ocasião em que carreguei com imenso cuidado a imagem rosada do Menino com os braços abertos até o altar.

Havia peças de teatro que encenávamos nós mesmos sobre o Evangelho do nascimento de Jesus. Já fui rei, já fui pastora, já fui Maria nessas ocasiões. De todas as vezes sentia fundo a narrativa que ao longo de mais de vinte séculos vem inspirando e resgatando o género humano da banalidade assassina do biológico des-animado (sem alma) e do consumismo desenfreado.



Que o mistério de Belém não perca o poder de nos encantar e, sobretudo, a capacidade de voltar o nosso olhar para os pobres e necessitados



Tudo isso parece que vai se esvaindo, esfumando na noite dos tempos. Não totalmente, graças a Deus. Por isso é urgente resgatar essa memória que não se pode perder. As futuras gerações necessitam de esperança e o Pai Natal não lhes pode dar isso. Precisam de crer em Deus, e não numa figura lendária, que é como um anão da Branca de Neve mais alto. E de S. Nicolau ficar com a parte importante: a caridade que fazia com os pobres, deixando para os mesmos peças de ouro na chaminé.

O Deus de Israel em quem cremos como o Pai amoroso de Jesus de Nazaré não se identifica nem com fenómenos da natureza, ou com ciclos de fertilidade, ou menos ainda com figuras de lendas. As lendas são o que são: podem interessar o senso estético, mas não podem provocar e convocar a fé. No Natal, o gesto mais inaudito de Deus desencadeia no mundo o facto cristão: a Encarnação, Deus que se faz carne, um de nós, igual em tudo menos no pecado. O Infinito no finito, o Absoluto no relativo, o Rico na pobreza e no despojamento.

Se esse mistério for banido das nossas vidas, se o Menino envolto em faixas e deitado numa manjedoura for definitivamente substituído pelo velhinho de vermelho no seu trenó de renas voadoras, não nos teremos tornado menos religiosos ou menos crentes. Mas sim, infelizmente, menos humanos.

Que Deus não permita que isso nos aconteça. E que venha o Natal, com muito Menino Jesus e pouco Pai Natal, como diz o meu querido amigo Frei Betto. Que o mistério de Belém não perca o poder de nos encantar e, sobretudo, a capacidade de voltar o nosso olhar para os pobres e necessitados. Feliz Natal!



 

Maria Clara Bingemer
In Jornal do Brasil
Adapt.: SNPC
Publicado em 23.12.2017

 

 
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