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Para pensar a liberdade

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Para pensar a liberdade

«Quando estou a cantar não estou preso»

No dia 24 de julho a SIC transmitiu, no jornal da noite, uma reportagem especial, da autoria de Raquel Marinho, com o título “Quando estou a cantar não estou preso”. O foco da reportagem é o projeto “Ópera na prisão”, trabalhado no Estabelecimento Prisional de Leiria. Não dá para ver esta peça sem pôr em questão uma série de clichés adquiridos: da prisão como gueto, como lugar de ainda maior desintegração, como espaço dos bandidos, como lugar onde a redenção, num sentido mais humano ou mais transcendente, não chega. Não é possível ficar indiferente a passagens da reportagem sobre este que é «muito mais que um projeto de música» em que percebemos que o que podia ser apenas uma forma de trabalhar a ordem e a disciplina se torna numa clara abertura de horizontes: o que eram gritos, agora são palavras; o bem surge como uma possibilidade real; um libreto de ópera transforma-se em leitura de cabeceira.

De dentro da tradição religiosa, não consigo deixar de pensar esta experiência como uma missão de resgate. Pensar em “Ópera na prisão” é lembrar aquela antiga homilia de Sábado Santo em que Jesus estende a mão a Adão para o resgatar do seu túmulo. Ver as transformações que este projeto vai operando naqueles jovens é imaginá-los a responder ao apelo de Jesus a Adão no diálogo que trava com ele nessa mesma homilia: «Desperta», «levanta-te», «vinde para a luz», «saiamos daqui». Aqueles que habitavam o grau zero da humanidade têm, agora, nova oportunidade de se pôr a caminho. Os que não conseguiam ver mais que sombras e estradas sem saída veem, agora, longas retas bem iluminadas.

«Acho que foram as leituras que me começaram a abrir a mente»

Ver esta reportagem fez-me lembrar o contacto que eu próprio tive com o Estabelecimento Prisional de Leiria. No dia 21 de março deste ano, convidado pelo diretor do Estabelecimento Prisional, o poeta José Ricardo Nunes, entrei na prisão para participar numa Maratona de Poesia pensada em conjunto pelo Estabelecimento Prisional e a Biblioteca Municipal de Leiria. O convite era para que levasse dois poemas, um meu e um de outro autor. Lembro-me de, nos dias anteriores a essa visita, passar bastante tempo a pensar em que poemas levar. Assumo que estava condicionado por uma certa atitude paternalista segundo a qual era essencial ir ler textos que tivessem explícita a palavra liberdade, como se a experiência da reclusão fosse sempre de completa ausência de liberdade, como se a única forma de restringir a liberdade fossem muros e arame farpado. Refletindo no assunto, acabei por tomar outra opção: todo o poema é um transporte da realidade quotidiana para uma outra mais perene, mesmo que passe desapercebida ao olhar comum (como diria Carlos Queirós, «O que os olhos veem/ é frágil e vão/ por dentro das coisas/ é que as coisas são») e, assim, qualquer texto poético é uma experiência de liberdade. Escolhi, meu, um poema chamado Borboletas:

no primeiro andar da casa antiga
já não se ouvem passos
dantes sonoros no chão de madeira.
a secretária está abandonada,
resta um caderno preto
e uma antologia de poetas chilenos
que vai ganhando pó e bichos.
há um guarda-fatos aberto no quarto
com camisolas de lã todas iguais
cobertas de borbotos
que o seu dono se entreteria a tirar
enquanto esperava vez na fila das finanças.
ao longe o sino da igreja ainda dá as meias-horas.
aqui já não há ninguém para o ouvir.
as larvas não se incomodam
com o passar do tempo.

De outro, escolhi um poema de Ondajki, do livro Os modos do mármore + 3 poemas.

Chegado à prisão, onde a Maratona contou com a presença de outros poetas, onde o diretor do Estabelecimento Prisional, de dinamizadores culturais, de professores e técnicos da escola que funciona naquele local, de guardas prisionais e de um grupo considerável de reclusos, percebi que tinha tomado a opção certa. O meu primeiro pensamento paternalista foi contrariado pela realidade: o que poderia ser uma exibição dos poetas e da sua poesia foi um verdadeiro momento de comunidade e de partilha. Também os guardas partilharam os seus poemas, também os reclusos leram os seus poemas. À procura de levar a poesia àquelas pessoas descobri presos poetas. Presos capazes do tal exercício de liberdade verdadeira, capazes de falar de um mundo, de uma gente, de sentimentos (o amor e a saudade) que está para lá das fronteiras da prisão. Pessoas com gosto genuíno pela leitura e pelas possibilidades múltiplas que ela abre.

Nessa tarde houve tempo para percorrer várias dimensões da poesia: mais lúdica, mais introspetiva, mais narrativa. Enquanto observava a participação e a reação dos reclusos pensava que talvez lhes estivesse a passar pela cabeça o mesmo que expressaram a propósito da “Ópera na prisão”: «quando leio poesia não estou preso», «quando escrevo poemas não estou preso». Naquele dia conheci uma prisão em que, como cantavam estes jovens no fim do seu Don Giovanni, apresentado em pleno grande auditório da Fundação Calouste Gulbenkian, «a liberdade está a chegar». Porque consegue saltar os muros e o arame farpado da prisão e entrar, nas palavras ditas e cantadas, onde verdadeiramente importa: nas cabeças que quer mudar para melhor.

 

André Capinha
Professor de EMRC, poeta
Publicado em 27.07.2016 | Atualizado em 19.04.2023

 

 

 
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Todo o poema é um transporte da realidade quotidiana para uma outra mais perene, mesmo que passe desapercebida ao olhar comum (como diria Carlos Queirós, «O que os olhos veem/ é frágil e vão/ por dentro das coisas/ é que as coisas são») e, assim, qualquer texto poético é uma experiência de liberdade
À procura de levar a poesia àquelas pessoas descobri presos poetas. Presos capazes do tal exercício de liberdade verdadeira, capazes de falar de um mundo, de uma gente, de sentimentos (o amor e a saudade) que está para lá das fronteiras da prisão. Pessoas com gosto genuíno pela leitura e pelas possibilidades múltiplas que ela abre
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