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Páscoa é misericórdia, Páscoa é vida

Imagem Ressurreição de Cristo e mulheres no túmulo (det.) | Fra Angelico | 1442 | Convento de San Marco, Florença, Itália

Páscoa é misericórdia, Páscoa é vida

O tempo pascal mostra incontrovertivelmente que para se poder ser cristão, isto é, digno seguidor de Cristo, não se pode ser cobarde. Não por causa das pobres emoções de nível psicológico que os pormenores grosseiros associados à maldade humana expostos na fase mais dolorosa da paixão mostram, mas porque, para se ser digno seguidor de Cristo, é necessário, como ele, obedecer, até à morte, ao mandamento do amor.

Ora, o amor, como perene ato em favor do bem do que nos transcende e de nós próprios, assim transcendendo o nosso egoísmo, que nos arrasta para a bestialidade, implica coragem, determinação, capacidade e atualidade de possível padecimento. Implica ser capaz de, como Cristo, beber o cálice da amargura até ao fim, no mais incompreensível abandono, sem qualquer voz que nos aconselhe, mesmo a do Pai, sem qualquer colo que nos conforte, mesmo o da Mãe.

Tal é a condição, para sempre paradigmatizada na figura de Job, do ser humano na sua mais profunda condição de pessoa, realidade ontologicamente incomunicável, nunca comunicável psicológica ou socialmente, apenas comunicável através precisamente do ato do amor, que, permitindo o bem e agindo no sentido deste, implica que o meu ato comunique com o ato do amado, no e pelo bem que nele opero, imagem do ato criador de Deus.

Mas, neste ato, por melhor que seja o bem que faço, estou absolutamente só. Se encontrei Deus no mais fundo de mim próprio, como o velho Agostinho de Hipona, sei que cada ato meu corresponde ao desabrochar dessa presença. Mas essa presença, sem este meu ato, não ganha dimensão mágica, isto é, não opera por mim, na minha vez.

Por isso, tem Cristo de beber o seu cálice, seu e de mais ninguém, sem que alguém o ajude, sem que alguma voz se pronuncie, no que é o protótipo do momento mais absolutamente solitário da história da humanidade. Beber o cálice é o momento da cruz como forma espiritual: a cruz de madeira é a forma material consequente, mas impossível sem que a cruz do cálice fosse assumida e carregada.

Este momento é o momento salvífico por essência e substância. Tudo o mais daqui decorre. Tudo o mais para aqui converge: aqui, está a criação do mundo, a incarnação no ventre de Maria, a agonia final, a ressurreição, verdadeira Páscoa, porque verdadeira passagem novíssima, que recria o mundo, recria e assume toda a criação, assume, como a paixão e o cálice, todo o bem, mas, sobretudo, todo o mal.

A ressurreição anula o mal na sua consequência.

E o mal nada mais é do que consequência. Sem consequência, o mal é apenas uma recordação, um monumento à falha do poder do bem. Mais nada. Eis o poder de Deus: matar o mal, não como coisa, mas como significado, como absoluto de isso que semanticamente faz sofrer. E o mal é apenas esta semântica negativa. E esta negatividade é o sofrimento que o mal provoca e com que coincide, pois, sem sofrimento, não há e não pode haver mal.

É no sofrimento que o mal se revela diabólico. É na ação que anula o sofrimento, através do amor, da caridade, da ressurreição, que Deus, na carne de Cristo, anula o mal, porque anula o sofrimento, assim, anulando o alimento da diabólica figura, supremo paradigma do parasita. O diabo é o parasita do bem: não pode viver sem ele, vive da sua anulação, engorda com a morte da possibilidade do bem. O corpo do demónio é o mal realizado na forma do bem não feito. Mas, assim sendo, como todos os parasitas, é uma mera função de isso que parasita e, quando o parasitado se liberta do parasita, este definha e morre.

A ressurreição de Cristo mata o parasita. E mata-o definitivamente para todos os que, seguindo o exemplo de Cristo, sempre fizerem o bem.

Mas historicamente não é assim, diz-se. Não é verdade: para o Cristão, a Mãe de Cristo soube seguir tal exemplo, mesmo antes de ter podido perceber exatamente de quem era Mãe. Teve a sua recompensa imediata, indo viver – sim, viver verdadeiramente – com o Filho.

Todos nós, os que não somos capazes de fazer o mesmo, continuamos a ser convidados a fazê-lo.

Temos de nos lembrar em permanência que o alimento do parasita somos nós quem o fornece, sou eu quem alimenta o maligno, quando, em vez de amar, não amo: o diabo incha com o mal que eu faço. E as tentações não servem de desculpa, pois o próprio Cristo foi tentado e soube resistir. Somos tão humanos quanto Cristo era; humanamente, somos tão capazes de resistir quanto Ele.

Mas Ele tinha em si o elemento divino e nós não.

Falso. Na diferença que há entre mim e Cristo, permanece a semelhança da mesma humanidade nele e em mim, da divindade plena nele e da marca divina em mim, marca que é, em mim e na minha dimensão, tão divina quanto a dele na sua dimensão. Deus é Deus, e não há mais Deus ou menos Deus. Há é maior ou menor fidelidade a Deus.

E voltamos ao cálice: a mesma situação de Cristo e minha. Que fazer? Ser fiel a Deus ou não?

É a mesma situação, sempre a mesma situação. E é esta mesmidade prototípica humana que faz de Cristo e de mim pertencentes a uma mesma humanidade matricial: ser-se humano, é estar sempre situado na cena do cálice. Cálice-nosso-de-cada-dia em que eu digo sim a Deus ou digo não a Deus, como Cristo teve oportunidade de fazer. Mas Cristo disse sim.

E o que se seguiu transformou o mundo de uma forma radical. Salvar-se, é dizer sim a Deus, mesmo que tal implique muito sofrimento. Mas, no fim dos fins, é Deus que me vem buscar e nada, mas mesmo nada, se pode opor a tal abraço paternal. Como em Job.

Na espantosa cena da Piedade de Maria, Maria não está só com o cadáver do Filho ao colo. Com Maria, presente no ventre de Maria, está o Espírito, em luto pela Outra Pessoa infinitamente amada. E é este Espírito que é a presença do Pai, no ventre, na matriz, no cerne da carne de Maria e de toda a humanidade, que embala o Filho morto, como diz o Poeta.

Este Filho sou eu. Maria é minha Mãe. No seu ventre está o meu Pai, no Espírito que clama pela minha vida, que quer que eu suba dos infernos da ausência de amor e me reencontre comigo próprio, que deixe de me dividir em espírito e cadáver, amantes separados, e volte a ser carne.

A carne é o ato do espírito em forma de matéria. Com ele, a matéria passa a veículo de sentido. Sentido, «logos». Isso que era no princípio, segundo João. Isso sem o que nada é. Nem a matéria. Isso que, como carne, sou eu, somos todos nós. Isso que Deus pôs como mundo para que este pudesse saborear-se como absoluto de bondade, precisamente como isso que Deus criou e que viu que era bom. «Logos», o divino sabor.

O mundo, que não é panteísta corpo de Deus, precisou do corpo de Deus-Cristo para poder ser diretamente santificado. De corpo a corpo. A bênção do Espírito recebe-a o corpo do mundo através do corpo de Cristo. E não há outra forma direta de o fazer.

Daqui provém a sensação que muitos têm da «distância» de Deus ao mundo. Mas é mesmo assim: sem magia, sem que possa interferir no criado sem ser através de criaturas, não há outra forma de Deus comunicar diretamente com o mundo senão através da tomada de forma semelhante à da das criaturas. Sem redução, mas sem magia e sem arrogância. Através de um corpo humano: Maria.

Cristo é «Logos» de Deus, mas é carne de Maria. Perfeitamente um e a outra.

Pode, assim, o Papa Francisco dizer, na sua Misericordiae vultus, que «Jesus Cristo é o rosto de misericórdia do Pai.» (1, início).

Misericórdia que não é uma abstração ou um mito ou uma piedosa intenção vazia, mas um ato de carne, pois é um rosto. Só as pessoas têm rosto. Os cadáveres não têm rosto. Os cadáveres não têm coisa alguma: suprema lição de humildade para os que querem substituir o espírito pela ilusão da posse.

Na Páscoa, celebramos – mas esta celebração deve ser toda a nossa vida – a carne de Deus feita rosto de misericórdia, ato de divino amor que nos permite que nos salvemos ao aceitarmos beber o cálice com Cristo, com a mesma atitude, com a mesma confiança, com a mesma graça, nome antigo para essa caridade que faz de nós pessoas, filhos de Deus, não bestas diabólicas.

Páscoa é misericórdia, Páscoa é vida.

O mais é do maligno.

 

Américo Pereira
Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Católica Portuguesa
Publicado em 17.02.2016

 

 
Imagem Ressurreição de Cristo e mulheres no túmulo (det.) | Fra Angelico | 1442 | Convento de San Marco, Florença, Itália
Se encontrei Deus no mais fundo de mim próprio, como o velho Agostinho de Hipona, sei que cada ato meu corresponde ao desabrochar dessa presença. Mas essa presença, sem este meu ato, não ganha dimensão mágica, isto é, não opera por mim, na minha vez
Na diferença que há entre mim e Cristo, permanece a semelhança da mesma humanidade nele e em mim, da divindade plena nele e da marca divina em mim, marca que é, em mim e na minha dimensão, tão divina quanto a dele na sua dimensão. Deus é Deus, e não há mais Deus ou menos Deus. Há é maior ou menor fidelidade a Deus
Salvar-se, é dizer sim a Deus, mesmo que tal implique muito sofrimento. Mas, no fim dos fins, é Deus que me vem buscar e nada, mas mesmo nada, se pode opor a tal abraço paternal. Como em Job
Sem magia, sem que possa interferir no criado sem ser através de criaturas, não há outra forma de Deus comunicar diretamente com o mundo senão através da tomada de forma semelhante à da das criaturas
Na Páscoa, celebramos – mas esta celebração deve ser toda a nossa vida – a carne de Deus feita rosto de misericórdia, ato de divino amor que nos permite que nos salvemos ao aceitarmos beber o cálice com Cristo, com a mesma atitude, com a mesma confiança, com a mesma graça, nome antigo para essa caridade que faz de nós pessoas, filhos de Deus
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