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Leitura: "Perdão e esperança - Restaurar o tempo"

Leitura: "Perdão e esperança - Restaurar o tempo"

Imagem Capa | D.R.

Pensar e viver o perdão «como libertação do presente da hipoteca do passado, para que se possa lançar nos espaços do futuro», e a esperança «como impulso para um horizonte futuro que encontra no seu próprio passado as razões capazes de transformá-la em qualquer coisa diferente de uma enganosa ilusão» são dois dos propósitos do novo livro "Perdão e esperança - Restaurar o tempo".

«Repercorrendo, portanto, as dimensões do tempo, dar-nos-emos conta de como perdão e esperança se entretecem de várias formas diferentes, na maneira como atravessam o presente e o futuro, e, sobretudo, como ambas fazem do presente o lugar da sua expressão mais vital, revelando o seu fruto mais precioso precisamente naquele «hoje» que em cada dia nos é oferecido como dom. O presente também é o seu ponto de partida, visto ser a partir dele que podemos começar a retornar ao passado, para perdoar, e é a partir daí que é necessário voltarmo-nos para o futuro, para esperar», escreve o autor, Sabino Chialà, na introdução.

A obra, lançada em março pela Paulinas Editora, divide-se em duas partes, cada uma composta por um tríptico. Na primeira, dedicada ao "Perdão", reflete-se sobre "A dificuldade de perdoar", "A dinâmica do perdão - Deixar-se perdoar e perdoar" (de que oferecemos um excerto) e "O êxito do perdão". "No presente: a audácia do quotidiano", "No passado: a memória de uma promessa" e "No futuro: a esperança do cumprimento" compõem o segundo capítulo, sobre a esperança.



O primeiro passo é o reconhecimento do facto de que nós, antes de mais, fomos perdoados, de que o perdão nos precede e nos constitui naquilo que somos. Segundo uma lógica profundamente evangélica, ele precede cada uma das nossas respostas e o nosso próprio estar no mundo. Nós existimos porque fomos perdoados, como sobreviventes resgatados por puro ato de misericórdia



A dinâmica do perdão - Deixar-se perdoar e perdoar"
Sabino Chialà
In "Perdão e esperança - Restaurar o tempo"

Reconhecer o perdão de Deus

Quando pensamos no perdão, a nossa reação imediata é sentirmo-nos diante de alguma coisa que somos chamados a fazer: devemos ser nós a perdoar. Revela-se aqui um reflexo daquele instintivo juízo positivo que fazemos acerca de nós mesmos, e, portanto, se houver necessidade de perdão, trata-se do perdão que nós devemos conceder. Numa dinâmica cristã, porém, não é esse o ponto de partida. O primeiro passo é o reconhecimento do facto de que nós, antes de mais, fomos perdoados, de que o perdão nos precede e nos constitui naquilo que somos. Segundo uma lógica profundamente evangélica, ele precede cada uma das nossas respostas e o nosso próprio estar no mundo. Nós existimos porque fomos perdoados, como sobreviventes resgatados por puro ato de misericórdia.

Trata-se de uma mensagem que perpassa as Escrituras. O Antigo Testamento, em particular, para transmitir de modo eficaz esse conceito, utiliza uma linguagem ousada, quando afirma que Deus, perante um «justo» castigo com que ameaçara o povo, «se arrepende» e detém a própria mão. A forma verbal hebraica utilizada (yinnahem) remete, precisamente, para esse movimento: arrepender-se, mudar de ideias. É apresentado, portanto, um Deus que «se arrepende» do mal que está prestes a infligir e que detém a sua mão destruidora (cf. Ex 32,14; 2 Sm 24,16; Jr 18,8; Am 7,1-3; Jn 3,10). Em relação à visão clássica de um Deus imutável e omnisciente, tal afirmação poderia parecer um contrassenso; contudo, ela é capaz de expressar a ideia de que a humanidade subsiste em virtude de um ato de misericórdia de Deus, por ter sido poupada por Ele.



«Qual é o Deus que, como Tu, apaga a iniquidade e perdoa o pecado do resto da sua herança? Não se obstina na sua cólera, porque prefere o amor. Uma vez mais, terá compaixão de nós, apagará as nossas iniquidades e lançará os nossos pecados ao fundo do mar.» Com efeito, o profeta Ezequiel recorda que não se alegra com a morte do malvado, mas com a sua vida (cf. Ez 18,23), passagem de que faz eco João 12,47: «Não vim para condenar o mundo, mas, sim, para o salvar.»



Deus perdoa por ser infinitamente compassivo. A Escritura vê precisamente nessa qualidade divina o traço distintivo que distingue Deus do ser humano, como o próprio Senhor afirma numa passagem do profeta Oseias: «Como poderia abandonar-te, ó Efraim? Entregar-te, ó Israel? Como poderia Eu abandonar-te, como a Adma, ou tratar-te como a Seboim? O meu coração dá voltas dentro de mim, comovem-se as minhas entranhas. Não desafogarei o furor da minha cólera, não voltarei a destruir Efraim; porque sou Deus e não um homem» (Os 11,8-9). A diferença entre Deus e os homens consiste precisamente nisto: Deus treme de compaixão e arrepende-se, evitando espalhar destruição; os homens, pelo contrário, não são capazes disso. É precisamente pela sua capacidade de perdoar que Deus revela a sua qualidade divina e a sua diferença em relação ao homem.

O perdão está inscrito no próprio nome de Deus, segundo a autorrevelação concedida a Moisés em Êxodo 34,6: «Senhor! Senhor! Deus misericordioso e clemente, vagaroso na ira, cheio de bondade e de fidelidade, que perdoa...» É esse o seu nome e esta também a sua atuação, desde o início. Deus estremece perante o pecado dos homens e enche-se de ira, mas, depois, é o primeiro a sofrer por causa do mal, e também é Ele que lhe dá remédio. Frente à rebeldia dos seres humanos, Deus mostra constantemente sentimentos de compaixão que se transformam em perdão e cuidado, desde aquele primeiro gesto de ternura no jardim do «no princípio», quando confeciona túnicas de pele para os nossos primeiros pais, já conscientes da sua própria nudez, para que possam proteger-se da sua vergonha (cf. Gn 3,21). Gesto extraordinário em que o perdão se manifesta sobretudo como tentativa de aliviar o peso da vergonha que sobrecarrega e avilta aqueles que prevaricaram. Deus apercebe-se desse peso e, num primeiro gesto, ajuda o ser humano a não ser esmagado por ele.



Chegamos assim ao segundo movimento do itinerário, que se torna ativo, mas não se trata ainda do perdão a conceder ao outro; há qualquer coisa que o precede: deixar-se perdoar e perdoar a si próprio



Toda a história da salvação é perpassada por uma promessa de perdão sempre renovada, como o atesta de modo particular a literatura profética. Pensemos em Jeremias 31,34, em que Deus diz: «Perdoarei as suas faltas, e não mais lembrarei os seus pecados »; ou em Jeremias 33,8, onde também afirma: «Purificá-los-ei de todos os pecados que cometeram contra mim e vou perdoar-lhes todas as suas faltas que cometeram contra mim»; e Miqueias 7,18-19 exclama: «Qual é o Deus que, como Tu, apaga a iniquidade e perdoa o pecado do resto da sua herança? Não se obstina na sua cólera, porque prefere o amor. Uma vez mais, terá compaixão de nós, apagará as nossas iniquidades e lançará os nossos pecados ao fundo do mar.» Com efeito, o profeta Ezequiel recorda que não se alegra com a morte do malvado, mas com a sua vida (cf. Ez 18,23), passagem de que faz eco João 12,47: «Não vim para condenar o mundo, mas, sim, para o salvar.»

O perdão de Deus tem, portanto, como qualidade particular, o ser sempre preveniente e gratuito. Segundo o profeta Isaías, Deus diz: «Dissipei as tuas revoltas como uma névoa, e os teus pecados como uma nuvem. Volta para mim, porque Eu te resgatei» (Is 44,22); e Paulo: «Deus demonstra o seu amor para connosco: quando ainda éramos pecadores é que Cristo morreu por nós» (Rm 5,8). Deus não perdoa porque Israel se converteu, mas para que se possa converter. Cada verdadeira conversão brota de se ter compreendido e acolhido o perdão preveniente e incondicional de Deus. Trata-se de uma lógica bem ilustrada em célebres passagens do Evangelho. Pensemos no encontro de Jesus com a mulher adúltera, que termina com a palavra do Mestre dirigida à mulher: «Também Eu não te condeno. Vai e de agora em diante não tornes a pecar» (Jo 8,11); ou no episódio da pecadora em casa de Simão o Fariseu, em que Jesus, segundo uma tradução que me parece mais fiel ao sentido do discurso, afirma: «São-lhe perdoados os seus muitos pecados, porque muito amou» (Lc 7,47); o amor da mulher nasce de ter sentido sobre si, na sua própria vida, o poder regenerador do perdão, e é a essa memória que ela vai buscar a força do próprio amor e a coragem da conversão.

Deus, portanto, é amor preveniente que se manifesta antes de mais no perdão com que acompanha a humanidade e cada ser vivo. A consciência desse sentimento divino é o fundamento de qualquer experiência de fé. Daí poderemos concluir que ser crentes significa, em primeiro lugar, acreditar no perdão concedido.



O verdadeiro prodígio não é ver os anjos, mas ver o homem que se é, ver-se a si próprio. Aliás, Jesus tinha dito que viera para os pecadores, e não para os justos (cf. Mt 9,13). Assim, quem julga não ter necessidade de perdão coloca-se fora da sua ação amorosa. Facto ainda mais grave, contudo: coloca-se num espaço de falsidade



Deixar-se perdoar e perdoar-se a si próprio

Todavia, não basta reconhecer o perdão de Deus, ou seja, ter uma vaga opinião sobre o facto de Ele ter perdoado os nossos pecados: também é necessário acolher esse perdão, dar-lhe espaço; trata-se de uma operação só aparentemente simples, pois pressupõe o discernimento do próprio pecado e a disponibilidade para nos perdoarmos a nós mesmos. Chegamos assim ao segundo movimento do itinerário, que se torna ativo, mas não se trata ainda do perdão a conceder ao outro; há qualquer coisa que o precede: deixar-se perdoar e perdoar a si próprio.

Deixar que o perdão entre, antes de mais, no próprio ser, constitui uma ação que pressupõe a dolorosa obra da verdade, da admissão da necessidade de se ser perdoado e, portanto, do próprio pecado. Significa aceitar uma imagem de si mesmo que não corresponde à imagem ideal que por vezes se cultiva no próprio íntimo, e que muitas vezes também se tenta apresentar aos outros. O acolhimento do perdão de Deus pressupõe o reconhecimento da própria verdade que, como recordam os Padres, é o ato mais difícil, mas também o maior ato, que um ser humano pode praticar. Diz Isaac de Nínive, fazendo-se eco de um apotegmados Padres do Deserto, ampliando-o:

«Aquele que é sensível aos seus pecados é maior do que aquele que socorre a terra habitada, mostrando-se a ela.
Aquele que geme [nem que seja] por um único instante sobre si próprio é maior do que aquele que ressuscita os mortos com a sua oração [...] Aquele que se tornou digno de se ver a si mesmo, é maior do que aquele que se tornou digno de ver os anjos.»



Ainda não chegou o momento do perdão do outro; ainda há alguma coisa que o precede: perdoarmo-nos a nós mesmos. Deus perdoa-nos, e nós consentimos em perdoar-nos a nós próprios. De facto, só se formos capazes disso, poderemos também tentar perdoar o outro, segundo uma dinâmica que recorda a do amor: «Amarás o teu próximo como a ti mesmo»



O verdadeiro prodígio não é ver os anjos, mas ver o homem que se é, ver-se a si próprio. Aliás, Jesus tinha dito que viera para os pecadores, e não para os justos (cf. Mt 9,13). Assim, quem julga não ter necessidade de perdão coloca-se fora da sua ação amorosa. Facto ainda mais grave, contudo: coloca-se num espaço de falsidade, segundo o que afirma a Primeira Carta de João: «Se dizemos que não temos pecado, enganamo-nos a nós mesmos, e a verdade não está em nós. Se confessamos os nossos pecados, Deus é fiel e justo para nos perdoar os pecados e nos purificar de toda a iniquidade. Se dizemos que não somos pecadores, fazemo-lo mentiroso, e a sua palavra não está em nós» (1 Jo 1,8-10).

Esse discernimento abre a porta ao perdão de Deus, que assim pode penetrar no homem e sarar as suas feridas. Ao mesmo tempo, enquanto deixamos o campo livre à ação de Deus, começamos a tornar-nos, também nós, dispensadores de perdão, mas para connosco mesmos. Ainda não chegou o momento do perdão do outro; ainda há alguma coisa que o precede: perdoarmo-nos a nós mesmos. Deus perdoa-nos, e nós consentimos em perdoar-nos a nós próprios. De facto, só se formos capazes disso, poderemos também tentar perdoar o outro, segundo uma dinâmica que recorda a do amor: «Amarás o teu próximo como a ti mesmo» (Mt 19,19), que poderíamos parafrasear assim: «Perdoarás ao teu próximo como a ti mesmo.»

Perdoar-se significa reconciliar-se consigo mesmo (que é o pressuposto essencial para a reconciliação com o universo inteiro); acolher-se na própria verdade, desmascarando a ilusão de ser diferente. Significa, em suma, perdoarmo-nos a nós mesmos por não sermos diferentes, por não sermos aquilo que sonhámos, que projetámos, com que nos iludimos, até nos convencermos que o somos, e, portanto, sofrermos de cada vez que isso é desmentido; e, a partir daí, a começarmos a amar-nos na nossa própria autenticidade.



Depois de se ter feito, na própria carne, a experiência devastadora do mal de que se é capaz e se reconheceu a sua ação, também será possível reconhecer a mesma dinâmica no outro



Perdoar ao outro

A par e passo com o perdão para connosco, e como seu corolário, é possível empreender um caminho de reconciliação com o outro. Quem chegou a acolher o perdão de Deus e a perdoar-se, também poderá usar de misericórdia. Poderá fazê-lo porque, graças à consciência do próprio pecado, será capaz de ver o outro não só na sua qualidade de causa do mal, mas também saberá apreender nele os traços de quem é, ao mesmo tempo, vítima, talvez inconsciente, daquilo de que também é artífice. Depois de se ter feito, na própria carne, a experiência devastadora do mal de que se é capaz e se reconheceu a sua ação, também será possível reconhecer a mesma dinâmica no outro. A consciência da própria vulnerabilidade em relação ao mal, e do próprio pecado, poderá levar àquele autodescentramento e àquele desmantelamento da própria autossatisfação tão necessários para olhar o ofensor com olhos novos, com os olhos de Deus.

Esta complexa dinâmica do perdão ao outro faz-nos compreender, então, que este nunca é fruto do nosso esforço, pois, se confiássemos apenas nas nossas forças, seria impossível, e o peso da nossa incapacidade para perdoar correria o risco de nos esmagar. Inevitavelmente, portanto, ele ocorre sempre numa dinâmica que envolve o próprio Deus, porque, em última análise, é obra sua. Não consiste numa prestação de contas entre dois adversários. Se assim fosse, na melhor das hipóteses, chegar-se-ia a um pacto ou a umas tréguas. «O perdão não é uma coisa que eu crio em mim – escreve José Tolentino. – É uma coisa que eu deixo Deus fazer em mim. Deixar que Deus venha à minha história e que a sua lógica se faça minha. Para conseguir perdoar, eu tenho de abrir a minha relação com o outro à presença de um terceiro, que é Deus. E tentar que seja, de facto, a maneira de ver de Deus aquilo que predomina».



A incapacidade de perdoar é, muitas vezes, consequência do esquecimento do próprio pecado e da remissão obtida. Essa parábola, porém, ousa ir mais longe, afirmando que aquilo que cada um concede ao outro é sempre muito menos do que aquilo que lhe foi perdoado



Para perdoar é necessário deixar Deus atuar e deixar que Deus entre na história entre mim e o outro. Isso permitir-nos-á sair da pura horizontalidade, não por uma fuga espiritualista para o alto, mas por uma descida às profundezas do ser e da relação, onde será possível descobrir uma presença comum aos dois sujeitos, na qual também poderão reencontrar uma via de comunhão. Desse modo, é como se se concedesse a Deus um espaço de intervenção no conflito, dando-lhe voz, a fim de que prevaleça a sua lógica, e não a nossa.

Nesse processo, revela-se de fundamental importância a memória do perdão recebido de Deus. Dizer que Deus está presente no perdão concedido ao irmão significa dizer que aquilo que se concede é apenas um reflexo do perdão recebido de Deus. Dizer que Deus está presente no perdão concedido ao irmão significa que aquilo que se concede é apenas um reflexo do perdão recebido de Deus, que agora passa de um sujeito para outro, e aquele a quem foi oferecido torna-se, por sua vez, capaz de o conceder. É esta a lógica subjacente a uma das passagens neotestamentárias mais conhecidas sobre o tema do perdão: «Pedro aproximou-se e perguntou-lhe: “Senhor, se o meu irmão me ofender, quantas vezes lhe deverei perdoar? Até sete vezes?” Jesus respondeu: “Não te digo até sete vezes, mas até setenta vezes sete”» (Mt 18,21-22). Pedro considerava-se generoso ao mostrar-se disposto a um perdão tão abundante, mas ainda limitado; Jesus, porém, pede mais, apresentando em seguida uma razão incontestável com o relato da parábola dos dois servos devedores ou do servo implacável (cf. Mt 18,23-35). A incapacidade de perdoar é, muitas vezes, consequência do esquecimento do próprio pecado e da remissão obtida. Essa parábola, porém, ousa ir mais longe, afirmando que aquilo que cada um concede ao outro é sempre muito menos do que aquilo que lhe foi perdoado. Só essa consciência poderá tornar o perdão possível.



 

Edição: SNPC
Publicado em 06.03.2017

 

Título: Perdão e esperança - Restaurar o tempo
Autor: Sabino Chialà
Editora: Paulinas
Páginas: 96
Preço: 5,85 €
ISBN: 978-989-673-559-3

 

 
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