Primeira visita de um papa à Terra Santa e o abraço de Paulo VI ao patriarca Atenágoras aconteceram há 50 anos
Há 50 anos, a 4 de janeiro de 1964, começava a visita de Paulo VI à Terra Santa, que se concluiu na tarde de 6 de janeiro, dia da Epifania, com o abraço e as luzes do acolhimento entusiasta e comovedor de um milhão de romanos ao seu bispo.
A peregrinação tem origem no início do pontificado de Paulo VI, em junho de 1963, no silêncio do primeiro verão passado na residência estival da Santa Sé, em Castel Gandolfo, próximo de Roma.
Para a preparar, partem em segredo para o Próximo Oriente dois colaboradores estreitos do papa. Os emissários vão também a Damasco, mas verificam a impossibilidade de ali realizar uma etapa, como Paulo VI tinha desejado para honrar a memória do apóstolo do qual tinha escolhido o nome.
Quem, de surpresa, anuncia a viagem é o próprio pontífice, a 4 de dezembro de 1963, aos bispos reunidos para a conclusão dos trabalhos da segunda fase do Concílio Vaticano II: «Veremos aquele solo abençoado, de onde Pedro partiu e onde nenhum sucessor seu voltou».
Durante 57 horas, Paulo VI desloca-se de Amã ao rio Jordão e chega a Jerusalém, depois a Nazaré e ao lago de Tiberíades, regressando depois à cidade santa para visitar Belém, voltando por fim a Amã, de onde voltou para o Vaticano.
Uma viagem que o papa definiu «como um golpe de arado», que fecundou uma terra «ainda endurecida e inerte».
Publicamos a nota que Paulo VI redigiu a 21 de setembro de 1963 para enquadrar o sentido da peregrinação, e a conversa mantida às 21h30 de 5 de janeiro, na Delegação Apostólica de Jerusalém, com o patriarca de Constantinopla, Atenágoras. O encontro foi registado por microfones da RAI (radiotelevisão italiana), que por erro não foram desligados.
Nota sobre a viagem
    Vaticano, 21.9.1963,  festa de S. Mateus, apóstolo e evangelista
Depois de longa reflexão, e depois de ter invocado a luz divina, mediante a intercessão de Maria Santíssima e dos Santos Apóstolos Pedro e Paulo, parece dever-se estudar positivamente se e como possível uma visita do Papa aos Lugares Santos, na Palestina.
Tal visita deveria ter por objetivo prestar homenagem a Jesus Cristo, nosso Senhor, na terra que a sua vinda ao mundo tornou santa e digna de veneração e de tutela por parte dos Cristãos. Qualquer outro motivo, também bom e legítimo, deveria ser excluído desta peregrinação pontifícia, que deve ser e manifestar-se como eminentemente religiosa.
Esta peregrinação seja rapidíssima, tenha caráter de simplicidade. de piedade, de penitência e de caridade. Seja predisposta em silêncio, prevista e preparada em cada particular. Poucas e determinadas pessoas tomarão parte nela. Consista principalmente em atos de culto nos principais locais santificados pelos mistérios evangélicos de nosso Senhor.
O fim subordinado dessa peregrinação é a defesa moral daqueles Lugares Santos; é o despertar do interesse católico pela tutela, que a Igreja católica não pode eximir-se de desejar para si e de o exercitar; é a imploração da paz naquela terra bendita e atormentada; é a tentativa de um encontro fraterno, prelúdio de reconciliação mais estável, com as várias denominações cristãs separadas, ali presentes; é a esperança de encontrar alguma maneira conveniente de aproximação às outras duas expressões religiosas monoteístas, tão fortemente atestadas na Palestina, a judaica e a islâmica.
Deverá estudar-se o que é conveniente fazer durante a breve estadia do Papa na Palestina: que autoridades encontrar, que cerimónias celebrar, que instituições visitar, que doações distribuir, que lembranças deixar. A este último propósito é preciso ver que coisa o Papa deva e possa fazer para o restauro do arruinada edifício do Santo Sepulcro.
Encontro entre Paulo VI e Atenágoras
Paulo VI
  Exprimo-lhe toda a minha alegria, toda a minha emoção. Penso  verdadeiramente que este é um momento que vivemos na presença de Deus.
Atenágoras
  Na presença de Deus. Repito-o na presença de Deus.
Paulo VI
  E eu não tenho outro pensamento, enquanto falo com o senhor  [Vossa Santidade], que o de falar com Deus.
Atenágoras
  Estou profundamente comovido, Santidade. Vêm-me as lágrimas  aos olhos.
Paulo VI
  Como este é um verdadeiro momento de Deus, devemos vivê-lo  com toda a intensidade, toda a retidão e todo o desejo...
Atenágoras
  ... de avançar...
Paulo VI
  ... de fazer avançar os caminhos de Deus. Vossa Santidade  tem alguma indicação, algum desejo que eu possa realizar?
Atenágoras
  Temos o mesmo desejo. Quando tive conhecimento pelos jornais  que o senhor [Vossa Santidade] tinha decidido visitar este país, veio-me  imediatamente a ideia de exprimir o desejo de o encontrar aqui, e estava seguro  de que teria a resposta de Vossa Santidade...
Paulo VI
  ... positiva...
Atenágoras
  ... positiva, porque eu tenho confiança em Vossa Santidade.   Eu vejo-a, vejo, sem a adular, nos Atos dos Apóstolos. Vejo-a  nas cartas de São Paulo, de quem tem o nome; vejo-a aqui, sim, vejo-a em...
Paulo VI
  Falo-lhe como irmão: saiba que eu tenho a mesma confiança no  senhor [Vossa Santidade].
Atenágoras
  Penso que a Providência escolheu Vossa Santidade para abrir  o caminho dos seus...
Paulo VI
  A Providência escolheu-nos para nos entendermos.
Atenágoras
  Séculos para este dia, este grande dia... Que alegria neste  lugar, que alegria no Sepulcro, que alegria no Sepulcro, que alegria no  Gólgota, que alegria na estrada que o senhor [Vossa santidade] percorreu  ontem...
Paulo VI
  Estou de tal forma repleto de sensações que precisarei de  muito tempo para fazer emergir e interpretar toda a riqueza de emoções que  tenho na alma. Quero, todavia, aproveitar este momento para lhe assegurar a  absoluta lealdade com a qual tratarei sempre com o senhor [Vossa Santidade].
Atenágoras
  A mesma coisa da minha parte.
Paulo VI
  Nunca lhe esconderei a verdade.
Atenágoras
  Terei sempre confiança.
Paulo VI
  Não tenho qualquer intenção de o desiludir, de tirar  proveito da sua boa vontade. Não desejo outra coisa que não percorrer o caminho  de Deus.
Atenágoras:
  Tenho em   Vossa Santidade uma confiança absoluta.
Paulo VI
  Esforçar-me-ei sempre...
Atenágoras
  Estarei sempre ao seu lado.
Paulo VI
  Esforçar-me-ei sempre por merecê-la. Que Vossa Santidade  saiba, a partir deste momento, que nunca cessarei de rezar, todos os dias, por  Vossa Santidade e pelas intenções comuns que temos para o bem da Igreja.
Atenágoras
  Foi-nos feito o dom deste grande momento; por isso  permaneceremos juntos. Caminharemos juntos. Que Deus... Vossa Santidade, Vossa  Santidade enviada por Deus... o papa do grande coração. Sabe como a chamo? O megalòcardos, o papa do grande  coração!
Paulo VI
  Somos apenas humildes instrumentos.
Atenágoras
  Assim devemos ver as coisas.
Paulo VI
  Quanto mais pequenos formos, mais instrumentos seremos; isto  significa que deve prevalecer a ação de Deus, que deve prevalecer a norma de  todas as nossas ações. Da minha parte permaneço dócil e desejo ser o mais  obediente possível à vontade de Deus e de ser o mais compreensivo possível  consigo, Santidade, com os seus irmãos e com o seu meio.
Atenágoras
  Acredito-o, não tenho necessidade de pedir-lho, acredito.
Paulo VI
  Sei que isto é difícil: sei que há suscetibilidades, uma  mentalidade...
Atenágoras:
  ... que há uma psicologia...
Paulo VI
  Mas sei também...
Atenágoras
  ... de ambas as partes...
Paulo VI
  ... que há uma grande retidão e o desejo de amar Deus, de  servir a causa de Jesus Cristo. É sobre isto que reponho a minha confiança.
Atenágoras
  Sobre isto eu reponho a minha confiança. Juntos, juntos.
Paulo VI
  Não sei se este é o momento. Mas vejo o que se deve fazer,  isto é, estudar juntos ou delegar alguém que...
Atenágoras
  De ambas as partes...
Paulo VI
  E desejarei saber qual é o pensamento de Vossa Santidade, da  Vossa Igreja, sobre a constituição da Igreja. É o primeiro passo...
Atenágoras
  Seguiremos as suas opiniões...
Paulo VI
  Dir-lhe-ei aquilo que acredito que é exato, derivado do  Evangelho, da vontade de Deus e da autêntica Tradição. Exprimir-lho-ei. E se  houver pontos que não coincidam com o seu pensamento sobre a constituição da  Igreja...
Atenágoras
  Farei o mesmo...
Paulo VI
Discutir-se-á, procuremos encontrar a verdade...
Atenágoras
  A mesma coisa da nossa parte, e estou seguro de que  estaremos sempre juntos.
Paulo VI
  Espero que isto seja provavelmente mais fácil do que  pensamos.
Atenágoras
  Faremos todo o possível.
Paulo VI
Há dois ou três pontos doutrinais sobre os quais tem havido, da nossa  parte, uma evolução, devido ao avanço dos estudos. Exporemos o porquê desta  evolução e a submeteremos à sua consideração e à dos vossos teólogos. Não  queremos inserir nada de artificial, de acidental naquele que julgamos ser o  pensamento autêntico.
Atenágoras
  No amor de Jesus Cristo.
Paulo VI
  Uma outra coisa que poderia parecer secundária, mas que  contudo tem a sua importância: para tudo aquilo que diz respeito à disciplina,  às honras, às prerrogativas, estou disposo a escutar o que Vossa Santidade crê  que seja melhor.
Atenágoras
  A mesma coisa da minha parte.
Paulo VI
  Nenhuma questão de prestígio, de primado, que não seja aquele...  estabelecido por Cristo. Mas absolutamente nada que trate de honras, de  privilégios. Vejamos aquilo que Cristo nos pede e cada um toma a sua posição;  mas sem nenhuma ambição humana de prevalecer, de ter glória, vantagens. Mas de  servir.
Atenágoras
  Como o senhor [Vossa Santidade] me é caro no profundo do  coração...
Paulo VI
  ... mas de servir.

In Osservatore Romano
        Trad.: rjm
        04.01.14
      

Paulo VI e patriarca Atenágoras













 
    
  




















