Projecto cultural
Fé e Cultura

Jesus Cristo, paradigma da inculturação

O primeiro concílio da Igreja (Jerusalém, ano 50) traçou o caminho da inculturação - a fé não está sujeita à cultura Judaica (as obras da lei de Moisés) nem a qualquer outra cultura. A praxis missionária de Paulo foi bem consequente com este princípio e o anúncio de Jesus Cristo respeitou as culturas locais (veja-se, por exemplo, o discurso em Listra - Act.14, ou o discurso em Atenas - Act.17).

Mas na abordagem de qualquer tema ou questão teológica, a referência a Jesus é importante, é critério último da nossa reflexão e das nossas opções. É certo que não abundam os estudos sobre este ponto preciso que aqui queremos tratar, assim como é certo que nos Evangelhos não encontramos nenhuma doutrina bem estruturada sobre a cultura judaica ao tempo de Jesus nem tão pouco qualquer reflexão sobre a forma como Jesus pensava e reagia à sua cultura de origem.

Contudo, o conjunto do Novo Testamento, em especial os evangelhos, fornece-nos indícios mais ou menos claros sobre o assunto, indícios esses confirmados plenamente por alguns textos, tudo apontando para a seguinte conclusão: por um lado, Jesus assumiu a sua cultura de judeu e, por outro lado, Jesus sentiu a necessidade de se ‘des-culturalizar’.

 

Jesus assimilou a sua cultura

A pedagogia da revelação de Deus é basicamente histórica e cultural, é pedagogia da revelação que aceita a mediação humana, E a lncarnação do Filho de Deus – Jesus – torna-­se, afinal, a melhor prova daquilo que acabamos de afirmar:

Deus que vem partilhar a vida e o mundo com os homens, incarnando como homem verdadeiro num tempo, lugar e cul­tura determinados. Assim, Jesus é filho da sua época, da cultura local e das modalidades da tradição judia: festas, peregrinações, o culto num templo, o rito pascal, os costumes populares, os gestos e fórmulas comuns da religiosida­de ambiente e até a metodologia pedagógica rabínica, lhe serviram para tornar compreensível aos mais simples os seus ensinamentos.

Sem querermos ser exaustivos na recolha de textos evangélicos, pensamos que alguns ilustram bem o que afir­mamos: em Luc. 2, 39-40 e 2, 51-52, percebemos que a célula familiar é, em toda a sociedade, um elemento básico da cultura respectiva, podendo apresentar modalidades próprias, conforme os diversos povos, tempos e lugares. Já o noivado de José e Maria se pautara pelos ritos culturais pró­prios da tradição judia e o nascimento e crescimento de Jesus dentro daquele quadro familiar, como qualquer judeu, é indicativo de que assimilou os usos e costumes da vida quotidiana, familiar e social. Jesus, ainda jovem, ajudaria até nos trabalhos de carpintaria...

Em Luc. 2, 21-24, constatamos os ritos da circuncisão dos nascidos do sexo masculino e da apresentação no templo e resgate do primogénito, bem como o rito de purificação das mulheres que haviam dado à luz (dependendo o tempo de realização desse rito do facto de se tratar de um filho do sexo masculino ou feminino). Ora tudo isso foi religiosamente cumprido, como dado cultural inquestionável de pertença à tradição e povo judaicos. Já Luc. 3, 21 nos mostra que o facto de Jesus se ter decidido a receber o baptismo de João como toda a gente, revela também, à sua maneira, a forma como Ele se quis solidário com o povo (pelo menos alguns grupos) de que fazia parte - isto independentemente de toda a significação teológica de tal gesto. O texto de Mt. 5, 17-19 lembra que a cultura é sempre herança social, pois é transmitida de geração em geração. Essa é até uma das suas características fundamentais. Ao anunciar que veio para dar cumprimento à Lei (de Moisés, dos Profetas, de Deus), Jesus assume exactamente os ensinamentos que, no seu conjunto, Lhe haviam sido transmitidos. Jesus, porém, não aceitava de uma forma apenas passiva os ensinamentos tradicionais da Lei, mas proclamava-os recriando-os: cf. Luc.4, 16-19.31 - texto que lembra claramente que Jesus cumpria o sábado e ia à sinagoga, reflectindo e interpretando a tradição cultural expressa no Antigo Testamento (neste texto concreto cita a Is. 61,12; em Mt. 12, 7 cita a Oséias 6, 6; em Mt. 19, 4-6 repete o Gen. 2, 24; e assim por diante...).

Para além de todos estes textos aqui enunciados a modo de exemplo, é claro que Jesus certamente adoptou os usos e costumes do seu povo no comer e no vestir, usou a mesma língua para se comunicar, adorou o mesmo Deus dos ante­passados e contemporâneos (o Deus de Abraão e de Moisés), numa palavra, Jesus assumiu a sua cultura de judeu.

 

Jesus ‘desculturalizou-se’:

A outra vertente da praxis de Jesus é a do combate sem tréguas à sua cultura, pelo menos em alguns aspectos. Quando judeus como J. Klausner (por princípio inclinados a não ver ‘originalidades’ nas atitudes de Jesus de Nazaré, mas antes a vê-lo como puro judeu), afirmam insuspeitadamente que Jesus «punha em perigo a civilização judia», já nos podemos dar conta da violência de tal confronto com a cultura judaica, cujos chefes, aliás, ao não suportarem tal contestação, pura e simplesmente decidiram matá-lo.

Não vamos aqui discutir pormenorizadamente o ‘porquê’ do combate de Jesus à sua cultura, Mas a razão principal está certamente no facto do judaísmo constituir um sistema sócio-religioso fechado, querendo-se de privilégio, cheio de leis e prescrições para os homens e, para mais, tudo isso jus­tificado com uma lei divina. De facto, os representantes do sistema judaico, que acabaram por matar a Jesus, «representavam e garantiam uma arte de viver, uma cultura, apoiada no sagrado, tempo (sábado), lugar (templo) e costumes que separavam, em nome de Deus, as pessoas puras e impuras, pecadoras e justas. Este sistema cultural é que tinha as regras pelas quais Deus se orienta e pelas quais orienta os homens, A este sistema sagrado tudo tem de ser sacrificado. Quem pretender ‘desinculturar-se’ ou quem não aguenta o sistema já sabe que há gente que recebeu instrução, gente treinada na arte de matar à pedrada».

Jesus não aceitou tal sistema nem tais ‘amarras’, e muito menos o facto de se utilizar a Deus para isso (como justifica­ção). Poder-se-á então dizer que Jesus foi um revolucionário social ou político, poder-se-á afirmar que ele trazia uma outra imagem de Deus e uma outra relação com Deus, etc; não vamos entrar em tais discussões, mas constatar apenas - também aqui através de alguns textos - que Jesus combateu efectivamente a sua cultura, em nome da vida e da libertação de todo o homem e do homem todo. Além disso, a sua acção não deve ser nunca vista como a de um taumaturgo, com soluções para todos os problemas, mas um estimulo a que os homens, por meio das ciências, técnicas e artes, e com a conversão do coração, se decidam «a colocar as capacidades de todos os homens e lugares e culturas ao ser­viço de todos, em iguais condições fraternas». Atentemos nalguns textos exemplares:

Mc. 3, 31-35: tocar na célula base da sociedade que é a família, nem que seja ao de leve, é sempre perigoso, é sempre um minar da ‘paz social’. Ao apontar para uma nova con­cepção de família, mais universal e não só por laços de sangue, Jesus está a subverter a imagem de tal instituição cultural, o que é plenamente confirmado pela sua autoritária proibição do divórcio e pela relativização da sexualidade procriativa (cf. Mat.19,1-12).

Luc. 13, 10-17: do ponto de vista religioso cultural, certamente que não havia instituição mais importante que o ‘sábado’. O combate de Jesus à opressão em que o sábado se havia convertido -  em nome da liberdade do homem e para uma nova imagem, e relação com Deus - explica, por si só, a maior parte do ódio e perseguição que lhe moveram os representantes do sistema cultural judaico.

Mt. 5,17-44: a sucessiva repetição do ‘disseram-vos... mas eu digo-vos’ confirma também, a seu modo, a originalidade de Jesus na forma de entender a cultura tradicional transmitida: mais do que um combate, poderíamos e deveríamos falar aqui de uma ‘recriação’ original da herança cultural.

Luc. 4,1-13: a resistência de Jesus às tentações da glória e do poder atingem também, de uma forma global, todo o tecido social: trata-se da recusa de um certo tipo de sociedade e duma motivação cultural que é a do ‘ter’ (e não do ‘ser’).

Mt. 8, 5-13: é certo que Jesus revelou um trato e uma abertura especiais aos estrangeiros, gente que também fazia parte do grupo dos prosélitos pela cultura e sociedade judaicas. A consciência clara de Jesus de que a eleição de Israel não pode ser entendida como um privilégio de exclusividade, levou-o até a declarar que fora de Israel existia muito mais fé…, o que mina pela base todo o edifício do sistema judaico, alicerçado sobre essa falsa e abusiva ‘teologia da eleição exclusiva’. Jesus é o sinal de que a salvação de Deus é para todo o mundo e todo o homem, qualquer que seja o espaço geográfico-cultural em que se situe. De facto, «a sua prática colocava, como centro dos interesses de Deus, a cura, a vida, a libertação, o convívio fraterno de todos os homens, de todos os povos, de todas as tendências, de todas as culturas. ..»

Haveria muitos mais textos a lembrar aqui. Contudo, julgamos já ser suficiente para dar a ideia de como Jesus foi critico à sua cultura, tanto nos aspectos que diziam respeito ao transcendente, como naqueles mais directamente vinculados às relações entre os homens e, até, na forma como encarava a relação com a natureza e os bens da criação (cf. Mt.6,25-34)...

A perspectiva e espírito da acção de Jesus foram, numa palavra, os de uma missão universalista, de inclusão e abertura a todos os povos e culturas.

Da posição de Jesus face à sua cultura poderíamos então concluir, brevemente, que mais do que uma assimilação de completa identificação ou do que uma oposição total, a sua atitude é a de quem assume recriando a tradição cultural herdada. O assumir da cultura judaica era, para Jesus, uma questão de levar às últimas consequências a realidade da lncarnação; e o recriar inovador dessa mesma herança cultural constituía a necessária fidelidade ao mistério da sua filiação divina e da pregação do Reino, porquanto qualquer realização cultural sempre é obra de mãos humanas e algo de muito relativo, não esgotando nunca as infinitas virtualidades do Homem como imagem de Deus.

Assim, «os Evangelhos mostram Jesus de Nazaré inculturado no particular de uma determinada classe social e cultural. O filho do carpinteiro incarnou-se na classe trabalhadora, como carpinteiro, e na cultura dos nazarenos. Jesus aceitou os desafios culturais, mas rejeitou a alienação cultural com tudo aquilo que destrói o próprio povo e o indivíduo: ‘passou pelas mesmas provações que nós, com excepção do pecado’ (Heb. 4, 15)».

 

Artigos relacionados:

O processo de inculturação
Uma definição de Inculturação

 

Nota: Nao incluímos neste artigo as notas de rodapé que constam na edição original.

José Nunes, op

in "Teologia da Missão - Notas e Perspectivas", Obras Missionárias Pontifícias, 2008

27.03.2008

 

 

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Jesus Cristo e a samaritana
junto ao poço
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