Projecto cultural
Fé-Cultura

O processo de inculturação

Depois da apresentação de uma proposta de definição de inculturação e de termos estabelecido que o seu paradigma é Jesus Cristo, aproximamo-nos agora das questões mais difíceis que nos põe a pastoral concreta da tarefa evangelizadora: como elaborar um projecto de evangelização inculturada, como fazer os discernimentos necessários em todo esse processo, como entender aí a participação dos vários agentes em presença.

É que “a inculturação abarca toda a realidade da Igreja: a formação da comunidade local dos cristãos e a formação dos sacerdotes e religiosos; o seu estilo de vida ou adaptação sociológica; a incarnação do evangelho nas situações vitais concretas nas esferas da vida pessoal e familiar, assim como nas actividades sociais e cívicas; os sistemas socio-económicos e políticos e as culturas dos distintos países; a teologia, a espiritualidade; o tríplice ministério da Palavra (pregação, evangelização, catequese); o culto (liturgia); o serviço (formação e organização da comunidade cristã com vista à sua maturidade, o testemunho na sociedade, o humilde serviço no amor)» (D. Amalorparvadass, Evangelización y Cultura, Concilium 134 (1978).

Seguindo de perto o esquema proposto por M. Azevedo dum processo de evangelização inculturada em quatro níveis (cf. M. Azevedo, Comunidades Eclesiais de Base e Inculturação da Fé, Loyola), dele faremos um resumo, mas completá-lo-emos com observações que consideramos úteis e necessárias. De salientar, desde já, que são quatro níveis e não quatro etapas a percorrer cronologicamente: trata-se de um processo dinâmico onde há interacção contínua desses quatro níveis.

 

Conhecimento e identificação da cultura que se quer evangelizar

Trata-se de um diálogo entre o evangelizador e os sujeitos dessa cultura onde se descobrirão as ‘sementes do Verbo’, os vestígios de Deus já ali presentes. Os critérios para conseguir tal são o Homem e Jesus Cristo: o que na cultura corresponde verdadeiramente a estes dois critérios deve ser objecto de uma proclamação (ainda que indirecta, não explícita). Trata-se essencialmente duma descoberta dos valores culturais autóctones em sintonia com o Evangelho: “em qualquer cultura há critérios de humanização e libertação ou de desumanização ou alienação” (S. Galilea, Religiosidade popular y pastoral, Cristianidad).

Este ponto é fundamental, e condição de possibilidade de uma verdadeira emergência da fé. Caso contrário, dar-se-á pura e simplesmente aculturação, com imposição maior ou menor de cultura estrangeira (em geral ocidental mas não só). Razão pela qual não se pode considerar este nível como uma estratégia de dominação ou como um interesse folclórico superficial pela cultura que se quer evangelizar. Não se deve pensar também em extrair rapidamente, dessa cultura, os elementos ditos cristianizáveis: ainda que haja incompatibilidades com o Evangelho, a cultura em presença deve ser tomada no seu todo, deverá ser objecto de uma compreensão global por parte dos agentes que intervêm na inculturação. E não se poderá esquecer que, na maioria dos casos, há uma união profunda entre cultura e religião, sendo difícil separá-las quer teórica quer praticamente.

O Evangelho só será Boa Nova se em contexto, me situação, no concreto da vida e de uma cultura. Há assim como que um ‘inventário do humano’ que positivamente é vivido em tal espaço socio-cultural e constitui autêntica revelação de Deus. Tais situações têm de ser também parte indispensável da missão, ainda que apenas como proclamação implícita, pois salientam a dimensão religiosa do homem, a sua abertura à Transcendência.

Por outro lado, é dentro desse âmbito que se há-de propor e anunciar o Evangelho. Nesse sentido, é necessário lembrar que já no NT encontramos formas distintas de pregação, exactamente a partir das diferentes culturas em presença. No entanto, os ‘receptores’ da mensagem têm de ser preparados a discernir não só os valores mas também os contravalores duma cultura: é um outro nível que veremos já de seguida e onde se torna patente a necessidade de praticar uma pedagogia do dom, no dar e receber.

 

Descobrir o que na cultura é incompatível com o Evangelho

Trata-se também dum diálogo entre os sujeitos dessa cultura e o evangelizador. E os critérios continuam a ser o Homem e Jesus Cristo. Descobrir tais incompatibilidades é, no fundo, procurar evitar, na medida do possível, os perigos do sincretismo. Este assunto é delicado e terá de ser mais desenvolvido. Para já interessa focar a questão nesta perspectiva: há que evitar os sincretismos sempre que possível, não como recusa das necessárias conversões-purificações dos modelos culturais da fé ou da Igreja (do Ocidente), mas em nome do próprio Homem e sua plena libertação – meta que a Boa Nova de Jesus Cristo nos propõe. Sem nada impor ‘de fora’, trata-se de propor que – quer ao nível individual quer ao nível comunitário – os membros dessa cultura façam uma nova leitura da sua cultura. Deseja-se uma purificação da sua cultura, de modo a nela potenciar e fazer emergir o Homem Novo.

As incompatibilidades entre cultura e Evangelho podem ser absolutas e/ou relativas. Quanto às absolutas, podem-se apontar, a título de exemplo, os casos de escravidão, discriminação, crueldade-violência, algumas concepções da ética sexual-matrimonial, práticas de mutilação, casos de injustiça estrutural, marginalizados. Admitir a existências destes contravalores humanos é necessidade evidente, pois qualquer cultura há-de perceber que é parcial, que não esgota a virtualidade cultural do Homem.

Há também incompatibilidades relativas, isto é, há elementos nas culturas que devem ser reorientados, já que envolvem valores autênticos mas ambíguos: não se pode valorizar o indivíduo, a sociedade, a dimensão sexual do homem, uma raça oprimida, em nome, respectivamente, do individualismo, duma ditadura, da pornografia, do racismo-tribalismo.

É evidente que, ao assinalar tais ambiguidades e incompatibilidades numa cultura face ao Evangelho, se está a fazer também outro tipo de proclamação indirecta da mensagem cristã.

Este nível dentro do processo global da evangelização inculturada, procura começar já a responder às dificuldades que pode oferecer um método de tipo intuitivo e ascendente: as experiências humanas, a vida em concreto, a cultura não pode ser compreendida nem tomada como medida da Verdade Revelada. O Evangelho e o encontro pessoal com Jesus Cristo devem relativizar e criticar toda e qualquer realidade cultural, declarando e assumindo rupturas necessárias no processo de re-leitura cristã da realidade cultural. Esta chamada à conversão não constitui nenhuma violentação cultural, pois acreditamos e constatamos que quando se assume a realidade humana em profundidade e a Revelação de Deus também em profundidade, há sintonia! Eis porque o anúncio explícito da mensagem cristã – de que falaremos em seguida – se torna também indispensável.

 

Proclamação explícita da mensagem cristã

Do diálogo sobre o Homem – em que as culturas e o Evangelho tanto têm em comum – passa-se a introduzir a novidade de Jesus Cristo, no que ele representa para as relações entre os homens e com Deus. Ainda que não haja possibilidade de transmitir uma fé, mensagem cristã ou evangelho ‘quimicamente puros’, há-de reconhecer-se que também é possível distinguir minimamente entre Jesus Cristo, Boa Nova e cristianismo ocidental ou qualquer outra roupagem. Há que ter consciência de que se Jesus foi Boa Nova, Novidade, para a sua própria cultura, que assumiu, pelo menos em igual medida o será para todas as culturas. “Na inculturação há sempre uma última ‘reserva’ – uma reserva-limite, da parte do missionário, e uma reserva questionante, por parte da mensagem. Essa reserva, essa inculturação não-identificante, leva o mensageiro e a sua mensagem a uma presença solidária e ao mesmo tempo crítica em face da cultura do outro” (P. Suess, Inculturação e Libertação, Vozes).

Este anúncio de Jesus Cristo, a sua proclamação, contudo, deve ter estas características: partir das sementes do Verbo já presentes nesse meio, dar primordial importância à Palavra de Deus, favorecer e trabalhar pela reflexão-discussão teológica dos autóctones e, tudo isto, numa perspectiva libertadora: “a libertação que nos trouxe Jesus Cristo é também uma libertação religiosa, dos servilismos do temor e do ritualismo formal” e “toda a evangelização deve estar unida ao projecto humano e social de libertação popular” (S. Galilea). (…)

Por seu turno, e à luz do que foi dito, a pedagogia de todo o anúncio querigmático tem de actualizar a Palavra de Deus. Por um lado, não pode ser uma transmissão atemporal e a-histórica da mensagem cristã, fazendo tábua rasa das culturas, do seu dinamismo; por outro lado não pode recusar-se ao anúncio do evangelho, deixando às culturas o serem critério decisivo de avaliação da Boa Nova.

 

A Igreja – parte e objecto da proclamação

O espaço de todo este processo de evangelização é a Igreja, a comunidade de fé. Ela é simultaneamente originante e destinatária da evangelização inculturada. Em primeiro lugar há-de assumir-se como originante: quer testemunhando, explicitando a presença salvadora de Deus na história concreta de cada cultura, quer anunciando a novidade de Jesus Cristo. Por outro lado, a Igreja assumir-se-á como destinatária de todo o processo evangelizador, na medida em que também faz parte constituinte da Revelação: apesar das suas pobrezas e incoerências, dos seus pecados históricos, a Igreja-comunidade de fé é um espaço privilegiado da experiência de salvação em Jesus Cristo. Nesse sentido, a Igreja também se proclamará a si mesma, levando à emergência de uma nova comunidade de fé – Igreja local – que, sem perder a sua originalidade e riqueza própria, e não julgando a fé do povo mas educando-a e tomando-a como é, se incorporará na grande comunidade de fé que é a Igreja universal. Esta não é somatório das Igrejas locais, mas está presente, em todas as dimensões, em cada uma das comunidades fé particulares, que têm por isso mesmo valor universal. A unidade da Igreja ir-se-á então construindo e enriquecendo na diversidade destas vivências culturais da Fé, razão pela qual não há justificação para imposição de ‘modelos eclesiais’ completamente estranhos a uma cultura. Em todo este processo, “a meta há-de ser a originalidade criadora do Espírito – segundo o modelo do Pentecostes – que faça surgir na unidade de fundo eclesial a rica diversidade dos distintos povos, criando uma comunhão ‘que enriquece ao mesmo tempo a própria Igreja e as diferentes culturas’ (LG 48)” (A. Torres Queiruga, Inculturacíón de la fe, in C. Floristán - J. Tamayo, Conceptos Fundamentales de Pastoral, Cristiandad). Haveria que fazer aqui, então, uma distinção entre o verdadeiro sujeito da inculturação e de toda a acção evangelizadora (que é Deus… Ele é o primeiro ‘emissor’ e tudo é acontecimento-dom do Espírito Santo!) e o terreno – necessariamente cultural – dessa acção proclamada e anunciada.

 

Artigos relacionados:
Jesus Cristo, paradigma da inculturação
Uma definição de Inculturação

José Nunes, op

in Teologia da Missão - Notas e perspectivas, Obras Missionárias Pontifícias, 2008

28.03.2008

 

 

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