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Recordar Ruy Cinatti

Imagem Ruy Cinatti | D.R.

Recordar Ruy Cinatti

Completaram-se a 8 de março 100 anos do nascimento do poeta Ruy Cinatti.

Em criança veio para Lisboa e formou-se em Agronomia. Foi meteorologista, secretário do governador de Timor, chefe dos Serviços Agronómicos no mesmo território e investigador da Junta de Investigação do Ultramar. Doutorou-se em 1961 na Universidade de Oxford, Inglaterra, em Antropologia Social e Etnografia.

Foi cofundador, em 1940, de “Os Cadernos de Poesia”, e em 1942 da revista “Aventura.” Recebeu o Prémio Antero de Quental em 1958, pela obra "O Livro do Nómada Meu Amigo", o Prémio Nacional de Poesia, em 1968, pela obra "Sete Septetos" e o Prémio Camilo Pessanha, em 1971, com "Uma Sequência Timorense".

Publicamos seguidamente excertos de "A condição humana em Ruy CInatti", tese de doutoramento do padre Peter Stilwell, atual reitor da Universidade de S. José (Macau).



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Os extratos, que omitem as notas de rodapé, são acompanhados por fotografias que Ruy Cinatti tirou em Timor, obtidas do espólio do poeta à guarda da Universidade Católica Portuguesa.

 

Assim nasci poeta

Ruy Cinatti Vaz Monteiro Gomes nasceu em Londres em 1915, neto do então Cônsul Geral português, Demétrio Cinatti. A mãe, Hermínia Celeste, morreu dois anos mais tarde, deixando ao filho as ténues recordações, duma beleza e tranquilidade obsidiantes, que este recolheu nas páginas introdutórias do seu primeiro livro de poesia, Nós não somos deste mundo (1941). O pai, António Vaz Monteiro Gomes, partiu entretanto para os Estados Unidos e por lá se deixou ficar cerca de oito anos, enquanto o filho permaneceu em Lisboa, entregue aos cuidados do avô materno.

Demétrio Cinatti era de origem toscana. Em casa, porém, mantinha um «ambiente oriental», como lembrou um dia o neto ao tentar identificar as origens da sua atração pelo Oriente. Servira com distinção na Armada Portuguesa em Macau e casara com Maria de Jesus Homem de Carvalho, de ascendência chinesa — a quem o poeta atribuía com orgulho os traços orientais da sua fisionomia.



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Demétrio morreu quando o neto tinha quase sete anos. Entregue agora aos cuidados dos avós paternos, o pequeno Ruy foi colocado como aluno interno nos Pupilos do Exército. As férias, passava-as na quinta dos Monteiro Gomes, no Ribatejo, onde se imaginava explorador de países tropicais.

Em 1925, António Monteiro Gomes regressou. Casado em segundas núpcias, trazia consigo a esposa e a filha, Amélia, meia-irmã de Cinatti. Foi o início dum período de grandes tensões entre pai e filho que haviam de explodir de forma violenta no termo do curso liceal. Concluídos os estudos secundários, Cinatti quis estudar Agronomia mas o pai pretendia que ingressasse na Marinha. Nem um nem outro se deixou demover e, em setembro de 1934, António Monteiro Gomes colocou ao filho um ultimato: se não acatasse a sua vontade teria de abandonar a casa paterna. Cinatti inscreveu-se em Agronomia e voltou a residir com a avó.

No fim do seu primeiro ano de universidade, participou no I Cruzeiro de Férias às Colónias Portugueses da África Ocidental. A «beleza intensa destas novas paisagens» encheu-o de entusiasmo e resolveu que de futuro havia de dedicar-se profissionalmente a algum dos territórios ultramarinos.



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Visitou nessa viagem as ilhas de S. Tomé e Príncipe, e viu nelas tudo o que sonhara serem as Ilhas do Mar do Sul. A experiência esteve na origem duma pequena obra-prima, o "Conto do Ossobó" (1936). Mais tarde fixaria num dos seus poemas mais citados a impressão indelével que lhe ficou de ver erguer-se ao longe a ilha do Príncipe: «Suave, doce, lânguida ilha / Aberta como flor na distância do mar».

Nos anos que se seguiram envolveu-o uma saudade profunda pela mãe, ao mesmo tempo que se insurgia contra as ondas de violência que se abatiam sobre o mundo. Foi a época em que despertou para a poesia. Por fim, a Guerra Civil em Espanha, a II Guerra Mundial e a polarização ideológica crescente nos meios intelectuais portugueses levaram-no a esboçar formas de protesto que culminaram no lançamento, com Tomás Kim e José Blanc de Portugal, da primeira série dos Cadernos de Poesia (1940).

 

«Abri caminhos mas não os cumpri»

As estadias de Cinatti em Timor (1946-1947 e 1951-1955), períodos mal conhecidos do grande público, não foram tempos fáceis. A paixão que a ilha e os seus habitantes despertaram surgiu acompanhada duma enorme frustração. Era incapaz, com os meios de que dispunha, de fazer frente aos atentados contra a Natureza e às injustiças perpetradas por alguns responsáveis contra a população indígena.

É verdade que anotou critérios ainda hoje válidos para um desenvolvimento sustentável do território. Chamou desde logo a atenção para a necessidade de centrá-lo na pessoa humana, de respeitar os recursos naturais e de devolver à população timorense a responsabilidade pelo seu próprio destino. Era uma visão excessivamente rasgada para a época e para o regime, e pouco ou nada conseguiu realizar. Foi-lhe por isso particularmente doloroso assistir à destruyção do ecossistema e ao desprezo pela cultura timorense delicado equilíbrio do homem com a Natureza que o tempo e a sabedoria haviam decantado.



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Morte em Timor

Sobre Timor um fogo fino paira, 
alastra, crepita quando da terra se aproxima 
e crescente, envolvente, cerca os montes 
e coroa se afirma.

Meus olhos sentem a beleza rubra 
ululante de cães pela noite fora, 
a paciência da floresta destruída 
catana na raiz e depois cinza.

Minha incompreensão em vão procura 
ressuscitar as crenças vãs de outrora, 
os bosques sagrados onde o frio habita 
no temor que as mãos prende e petrifica.

Minha imaginação em vão procura
deter com astros e outras mãos a sina
insidiosa qual a morte de homem
ancorado na árvore que sobre a terra se persigna.

E vejo um monte de palha
ardendo do cimo ao mar que ondula e se derrama nas praias
e contra o denso fumo que circunda,
avanço, resoluto, archote em vida,
proclamando a verdade do cântico,
a dança terreal que me fascina.

 

Em dezembro de 1955 partia, desiludido, de Timor.



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«Deitando contas à vida»

De regresso à Metrópole, o seu relato circunstanciado das irregularidades praticadas em Timor permitiu que os superiores pusessem termo a um número considerável de injustiças. Entretanto, não abandonou por completo a ideia de voltar àquele território, mas, aos, quarenta anos sentia necessidade de rever opções, deitando contas à vida.

O seu terceiro livro de poesia, O livro do nómada meu amigo (1958), dá testemunho dessa meditação. Encontramos nos poemas o encanto dos mares e das praias tropicais. Mas, numa leitura atenta, apercebemo-nos que o quadro idílico é atravessado pelas angústias do poeta: a sua dedicação aos timorenses; a tristeza ao ver valores característicos da presença portuguesa noutros tempos desbaratados pelos erros crassos duma administração local; e como se isso não bastasse, as perturbações remotas de caráter afetivo que a todo o momento o atingia. É um período de escuridão em que os grandes símbolos da Fé Cristã se erguem como referência para o guiar. Como, por exemplo, na sequência "Sunt lacrimae rerum...", que culmina:

Lágrimas são a chuva que nos molha
A vida inteira.
As alegrias são
As ilusões que fenecem
A vida inteira.
Dou de costas à luz. Calmo contemplo
Os horizontes perdidos.
O mar tem fundos nus de areia fina.
Cristo morreu na cruz.

São versos que parecem traduzir a resolução de entregar a vida por Timor.



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«Estoirar por uma causa em que acredito»

A exploração dos parcos recursos de Timor sem uma perspetiva de conjunto e de longo prazo viria, na opinião de Cinatti, não só a provocar danos irreparáveis no ecosistema como destruyr a cultura local, deixando as populações sem recursos, e sem defesas perante a voragem da modernidade. Contudo, já não lhe interessava intervir no território ao nível exclusivamente agrícola. A experiência ensinara-lhe que o ponto nevrálgico do desenvolvimento era a cultura.

Optou, por isso, por uma nova estratégia pessoal. Pediu a integração como investigador na Junta de Investigações do Ultramar e, uma vez aceite, candidatou-se a um curso de Antropologia Cultural na Universidade de Oxford. Obteve um diploma ao fim do primeiro ano, e, quando retomou os estudos no ano seguinte, atendendo ao trabalho desenvolvido, a Universidade propôs-lhe que se candidatasse de imediato ao doutoramento. Iniciou então uma tese ambiciosa intitulada, nessa altura: "A ecologia, história e cultura material do Timor Português, com especial referência ao habitat das populações nativas".

A última descrição pormenorizada que temos da evolução dos seus estudos data de 1961. Nela Cinatti refere-se a uma inflexão na abordagem da problemática escolhida. Do ponto de vista antropológico, qualquer desenvolvimento integrado, mormente em Timor, deveria radicar, na sua opinião, numa correta perceção da dimensão religiosa da cultura local. Influenciava-o, na época, a visão de Teilhard de Chardin duma humanidade que sobe e converge para a sua plenitude em Cristo. Era o critério teológico que presidia agora aos seus estudos. Afastava-se assim cada vez mais do nacionalismo do regime português que noutros tempos o entusiasmara, e passava a encarar o desenvolvimento de Timor como parte integrante da evolução da humanidade no seu conjunto. Pouco depois, o Concílio Vaticano II viria confirmar os valores da justiça, do respeito pela dignidade humana e da solidariedade por que sempre lutara e reforçar as suas novas convicções. Por contraste, parecia-lhe que o isolamento crescente de Portugal representava uma dessintonia com os dinamismos profundos da humanidade.



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Embora não tenha chegado a concluir a tese, visitou três vezes ainda o território de Timor (1958, 1961-1962 e 1966), e na segunda dessas estadias firmou pactos de sangue com dois liurais.

Apoiado no prestígio do seu currículo, procurava, entretanto, influenciar a política ultramarina do Governo Português e assumia-se como advogado dos timorenses nos corredores do poder em Lisboa. Todavia as guerras em Angola, Moçambique e Guiné Portuguesa tornavam as autoridades pouco permeáveis aos seus avisos e por certo lhes pareceu irrelevante o choque cultural vivido na minúscula e paupérrima província do Extremo Oriente. Provavelmente por isso, a insistência de Cinatti tornou incómoda a sua voz e, pouco a pouco, foi sendo marginalizado na vida profissional, as suas propostas qualificadas de irrealistas e as suas críticas rejeitadas como delírios de poeta.

A erosão sistemática da sua capacidade de intervenção teve custos pessoais. Em fins de 1966 Cinatti sofreu uma profunda crise psicológica. Um confronto providencial com o diabo, que narra em "Manhã imensa" (1984), precipitou uma experiência de conversão espiritual. Não é fácil delinear os contornos exatos do conflito interior que o assolou, mas dele emergiu com um novo entendimento da sua condição humana e da Fé. A solidariedade e o amor que se esforçara por viver residiam, afinal, não no fazer mas no ser. Não eram um dever imposto, a sublinhar fragilidades morais e a incapacidade de corresponder aos ideais que se propunha. Eram, pelo contrário, a expressão mais simples e profunda daquilo que ele não podia deixar de ser. Essa intuição luminosa ergueu-se então como apelo a aceitar-se nas suas contradições; a abrir mão de si mesmo e a confiar na voz que lhe dizia: «Eu sou o cordeiro! / Eu sou o Amor!». Foi uma experiência libertadora de "reintegração na Graça, mantida a condição humana."



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«O nómada em escala de partida»

(...) A experiência ocorrida em fins de 1966 marcou uma viragem profunda na sua atuação. Pela primeira vez assumiu a centralidade da sua vocação de poeta, e em quatro anos organizou treze livros de poesia — nem todos publicados. São várias as linhas em que evolui a sua obra. Há livros que refletem a sua peregrinação interior, a luta que empreendeu para se aceitar a si mesmo. Outros inauguram um diálogo com os povos e culturas das províncias ultramarinas. Um terceiro grupo interpela, frontal e ironicamente, o estilo de vida e as circunstâncias políticas da sociedade portuguesa na Metrópole. Destacam-se as obras que dão a conhecer a um público alargado a grandeza e as misérias, a beleza natural e os sofrimentos vividos no território longínquo de Timor.

Em 1974, entusiasmou-o a Revolução de abril, mas em breve percebeu-lhe as contradições. Nesse mesmo ano, anteviu o perigo duma invasão de Timor pela Indonésia e lançou publicamente o seu aviso contra as tentações de aventureirismo político por parte dos movimentos timorenses. «Se os Timorenses quiserem ser independentes, / Construam-se!», recomendou-lhes. Era necessário, na sua opinião, investir primeiro no desenvolvimento económico e cultural do território. Só depois poderia pensar-se numa independência política viável.



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A invasão de Timor em dezembro de 1975, embora prevista, deixou-o profundamente abalado. Pareceu ter perdido a razão. E foram de novo a poesia e as convicções religiosas que o conduziram na escuridão. Escrevia continuamente. Policopiava os versos e distribuía-os por onde passava, com sentido missionário e como gesto de intervenção. De cruz bem em evidência ao peito, percorria as ruas de Lisboa e os bares do Cais do Sodré, desafiando os que encontrava a um momento de oração. Diversas vezes foi espancado, e roubaram-lhe bens de valor. Mas contam-se também histórias de como nos locais mais inesperados o acolheram com respeito e carinho. Por fim, recuperou. E nos últimos cinco anos de vida (+ 1986) teve a satisfação de ver a sua obra apreciada por uma nova geração de críticos e poetas, e viveu em paz consigo mesmo como raras vezes até então. (...)

 

Conclusão

É notável o vigor revelado pelo catolicismo português no meio universitário lisboeta do início da década de '40. Refeita da experiência traumática dos primeiros anos da República, a Igreja colhia os resultados duma década de investimento sério na formação do laicado; e Cinatti — «católico poeta» como ele mesmo se apelidava — e um grupo significativo dos seus amigos representavam os primeiros frutos desse trabalho. Foi no contacto com o ambiente da Ação Católica e das Conferências de São Vicente de Paulo que pela primeira vez Cinatti se viu estimulado a empreender uma meditação poética dos desafios da vida e do mundo à luz duma Fé criticamente alicerçada. A formação religiosa que então recebeu, longe de se reduzir a um qualquer pietismo sentimental, envolveu, pelo contrário, uma sólida preparação espiritual, teológica e social; e as referências nos seus escritos revelam como os espaços de Igreja que frequentava eram permeáveis às obras dos grandes pensadores católicos dentro e fora do país. Poderá mesmo dizer-se que as correntes de pensamento que atravessavam nessa altura o catolicismo europeu, e que viriam mais tarde a desembocar no "aggiornamento" do Concílio Vaticano II, encontravam já eco e um desenvolvimento próprio nesses setores da Igreja Católica em Portugal.



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Importante é também observar como a Fé Católica orientou a consciência de Cinatti numa apreciação responsável dos acontecimentos do seu tempo. Atravessava-se um período crítico na Europa. Ao choque da Revolução de outubro seguira-se o abalo económico e social da Grande Depressão e logo, em crescendo, os confrontos ideológicos que conduziriam à Guerra Civil na vizinha Espanha e à conflagração quase apocalíptico da II Guerra Mundial. Parecia desenhar-se no horizonte a derrocada da milenária civilização ocidental, e Cinatti sentiu-se desafiado a intervir. Mestres que admirava, como Maritain e Eliot, haviam lançado o alarme. Estava em gestação uma nova realidade cultural e ao cristão competia lutar para que fosse o diálogo a dá-la à luz, e para que viesse a caracterizar-se por um respeito pela pessoa acima de qualquer ideologia. Assim nasceram a sua colaboração nos Cadernos de Poesia, os seus primeiros livros publicados e sobretudo a revista Aventura que dirigiu.

Decorrido meio século, a visão de Cinatti surpreende ainda pela ousadia e atualidade. Com uma intuição de inspiração evangélica, e evocando a perspetiva ecuménica dum S. Justino - que pressupunha a existência de vestígios de Deus para lá das fronteiras do povo eleito e da Igreja -, o poeta coloca o dedo na ferida das sociedades contemporâneas ao eleger para questão fulcral da sua constituição a necessidade de se tornarem comunidades abertas e plurais, capazes de articular um sentido ético com a tolerância, e ambos com um desenvolvimento assente nos avanços das ciências e das técnicas. À pergunta de como visualizar uma sociedade plural assim, sem ser em termos da luta de classes sem tréguas da proposta marxista, ou em termos da concorrência desenfreada de certo liberalismo económico, Cinatti responde com uma aposta no poder construtivo do diálogo mesmo entre perspetivas aparentemente antagónicas. Tal é possível, na sua opinião, a partir do entendimento cristão e católica da realidade. Pois este, retomado na sua pureza original e não no facciosismo dos seus desvios históricos, convida a encarar como «objec­to da nossa admiração todas as expressões de beleza, todas as formas do trabalho do homem, não por um premeditado desejo de pros­elitismo, mas, sim, por essas mesmas expressões e por Deus - motivo de toda a criação, origem de toda a justiça». O modo como, na prática, isso podia ser vivido, testemunhou-o Cinatti na sua poesia. Os seus versos irão evoluir um dia no sentido de fixar momentos em que a sua vida quase se funde com as paisagens de Timor. Mais tarde — a partir de 1967 — tornar-se-ão um diálogo aberto com os outros e com Deus. Neste período inicial, porém, caracterizam-se ainda por um pendor marcadamente introspetivo. Não que tenha havido ruturas nessa evolução. Tratou-se sobretudo duma questão de acento. Na verdade, em cada etapa, como recorda Eduardo Lourenço, «o relacionamento [de Cinatti] com a transcendência é o fundamento de tudo o resto. No seu mundo, tudo gira em volta da interpelação de que ele é objeto, enquanto criatura». Mesmo na fase mais introspetiva, a aventura poética foi sempre encarada por ele como resposta a esse apelo e assumida como serviço. Viveu-a como obra de descobrimento e enfrentou as suas tempestades interiores com o sentido de desbravar o caminho para outros. Em seu entender, a vida do espírito humano espelhava a da sociedade em geral, e o desafio na construção do futuro era conhecer as «leis psicológicas que atualmente estão formando o mundo, que atual­mente lhe estão caracterizando a existência». A sua proverbial inquietação, motivada por razões de ordem psicológica, foi assim acolhida e analisada para bem de todos. Do que nascera fragilidade, o engenho fez virtude.



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A experiência poética de Cinatti, e a reflexão de Maritain que tanto nele influiu, convergem num ponto essencial: os versos que escreve não resultam duma ponderação prévia. A palavra e o conhecimento poéticos, tal como ele os vai vivendo, brotam duma região que antecede a consciência tematizada. Aí emergem na sua força primordial os grandes símbolos do psiquismo humano — a luz e as trevas, o dia e a noite, vida e morte, pai e mãe, partida e aventura. Levedados então pelas referências da Fé Cristã do poeta, revelam um poder acrescido e abrem caminho para lá de si mesmos ao «único poema escrito» e aos «silêncios do Amor ao centro do mistério».

Nesta lenta transfiguração, o outro é o horizonte que o interpela. Num primeiro tempo é refugio (a mãe), apoio (os amigos) ou resposta aos anseios de plenitude (Deus como Absoluto). Mas gradualmente transforma-se no lugar para onde que o chama o amor; no poder que o liberta da timidez afetiva, do isolamento da sua individualidade. Solidário com esse outro que o chama, o poeta acede a um olhar renovado sobre o mundo que inicialmente renegava. A atração pela mãe é transposta para Maria «mãe de todos», e descobre a tristeza profunda que nela inspira o estado da Humanidade dividida. A comunhão da amizade, quando assumida ao nível da Fé, dá-lhe a medida da Igreja. Percebe nela os Espírito de «Deus em chamas» que a envia ao mundo para o encaminhar. E a experiência salva-o também a ele, pois liberta-o daquela ânsia de Absoluto que, tomando o nome de Deus em vão, ameaça reduzi-l'O a uma inflação do "eu". O Deus que encontra agora, que o toca e envia, é um “Deus connosco”; um Deus que se revela nas circunstâncias da história; presença assinalada pelos gestos de atenção pessoal, de justiça e de amor; murmúrio de ondas no silêncio da noite.



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Dois poemas inéditos de Ruy Cinatti

 

Navios de vento

Fechei a minha janela
ao vento que vem do largo
que entra pela foz do rio
e declina pela cidade
silvando pelos telhados
que lhe servem de desvio.
No rio sobem navios
que apitam de quando em quando.
Oh mudo pranto fechado,
que se ouve no meu quarto!

Mas o vento força a porta
sublinha-se pelas frinchas
com denodado desígnio
que me fere de malícia.
Abro a janela fecho-a
e recebo-o em minha casa
com honras de visitante,
pé atrás, outro adiante,
como se fosse esperado.
Oh pranto desenganado!

Não converso, não me espanto
com o que o vento sussurra
quando entra de improviso.
O que se ouve no meu quarto
é um anjo apavorado
que me pretende assustar
com uma voz de além-túmulo
ouvida algures, além mar.
Oh lamento recordado
de uma criança a chorar!

Eu vejo cavalos brancos
galopando sobre as nuvens,
as crinas ao ar soltando
como um cardume assustado.
O vento que me percorre
rodopia sem cessar
enche-me o quarto todo
de furtivos sentimentos
difíceis de controlar.
Oh mudo pranto fechado
a sete chaves pelo vento!



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[Meu o testamento]

Meu o testamento
o que possuo na memória de outros
que me transcenderam
e o que me custou a declarar
a quem – cerrados dentes – 
tinha horizontes,
ilhas por cartografar
e sendo um dos poucos neste mundo
digno do seu nome,
não lamentarei,
antes lhe calçarei sandálias de ouro,
minhas calças por provar ainda.
Um destino de nunca acabar
dou-lhe por aumento
de uma força que nos una a todos.

Sim – não desistamos!
Sim – não nos magoemos!
Antes lembremos o pronunciamento
com Che Guevara e com mestre Heráclito!
Tudo flui
como num rio outro
e todos os rios cessam no mar.
Os inimigos poderão ser muitos.
Com todos eles estaremos a par.
É no mar de móveis horizontes
que nos juntaremos
a sós com os elementos
água, céu e fogo.

Meu o testamento
a quem o dito, a quem o testemunho,
a quem o transmito,
antes mesmo de iludir a forma
de que me revisto.
O estilo será outro, mas a forma
é imortal
e chama-se alma.
Que ma tomem os que ainda pressinto
terem o íntegro
poder de audácia
revolucionária
por nunca se satisfazerem com o mínimo
neles apenas surto
de começos sempre no plural.

A quem transmito o meu testamento,
cabe, piedoso,
distribuí-lo entre os mais escolhidos,
os que sonharam não serem vencidos,
os que sonharam 
voltar um dia ao país natal,
bemaventurados
de nobre escolha e firme propósito:
Um dia livre
de miseráveis concessões políticas;
um dia ímpar
que nos redima para toda a vida;
um dia igual
ao das minhas-nossas gerações futuras.

O meu desejo:
Que o meu país se encontre de novo.
Que se anuncie Portugal!



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P. Peter Stilwell
Reitor da Universidade de S. José, Macau
In Didaskalia (1992), vol. 2
Poemas inéditos e fotografias recolhidas do espólio do autor, à guarda da Universidade Católica Portuguesa
Poemas inéditos: seleção de P. Peter Stilwell
Publicado em 09.03.2015

 

 
Imagem Ruy Cinatti | D.R.
Cinatti quis estudar Agronomia mas o pai pretendia que ingressasse na Marinha. Nem um nem outro se deixou demover e, em setembro de 1934, António Monteiro Gomes colocou ao filho um ultimato: se não acatasse a sua vontade teria de abandonar a casa paterna. Cinatti inscreveu-se em Agronomia e voltou a residir com a avó
A Guerra Civil em Espanha, a II Guerra Mundial e a polarização ideológica crescente nos meios intelectuais portugueses levaram-no a esboçar formas de protesto que culminaram no lançamento, com Tomás Kim e José Blanc de Portugal, da primeira série dos Cadernos de Poesia (1940)
As estadias de Cinatti em Timor (1946-1947 e 1951-1955), períodos mal conhecidos do grande público, não foram tempos fáceis. A paixão que a ilha e os seus habitantes despertaram surgiu acompanhada duma enorme frustração. Era incapaz, com os meios de que dispunha, de fazer frente aos atentados contra a Natureza e às injustiças perpetradas por alguns responsáveis contra a população indígena
De regresso à Metrópole, o seu relato circunstanciado das irregularidades praticadas em Timor permitiu que os superiores pusessem termo a um número considerável de injustiças. Entretanto, não abandonou por completo a ideia de voltar àquele território, mas, aos, quarenta anos sentia necessidade de rever opções, deitando contas à vida
A exploração dos parcos recursos de Timor sem uma perspetiva de conjunto e de longo prazo viria, na opinião de Cinatti, não só a provocar danos irreparáveis no ecosistema como destruir a cultura local, deixando as populações sem recursos, e sem defesas perante a voragem da modernidade
Do ponto de vista antropológico, qualquer desenvolvimento integrado, mormente em Timor, deveria radicar, na sua opinião, numa correta perceção da dimensão religiosa da cultura local. Influenciava-o, na época, a visão de Teilhard de Chardin duma humanidade que sobe e converge para a sua plenitude em Cristo
O Concílio Vaticano II viria confirmar os valores da justiça, do respeito pela dignidade humana e da solidariedade por que sempre lutara e reforçar as suas novas convicções. Por contraste, parecia-lhe que o isolamento crescente de Portugal representava uma dessintonia com os dinamismos profundos da humanidade
Apoiado no prestígio do seu currículo, procurava, entretanto, influenciar a política ultramarina do Governo Português e assumia-se como advogado dos timorenses nos corredores do poder em Lisboa. Todavia as guerras em Angola, Moçambique e Guiné Portuguesa tornavam as autoridades pouco permeáveis aos seus avisos e por certo lhes pareceu irrelevante o choque cultural vivido na minúscula e paupérrima província do Extremo Oriente
Um confronto providencial com o diabo, que narra em "Manhã imensa" (1984), precipitou uma experiência de conversão espiritual. Não é fácil delinear os contornos exatos do conflito interior que o assolou, mas dele emergiu com um novo entendimento da sua condição humana e da Fé. A solidariedade e o amor que se esforçara por viver residiam, afinal, não no fazer mas no ser
Pela primeira vez assumiu a centralidade da sua vocação de poeta, e em quatro anos organizou treze livros de poesia — nem todos publicados. São várias as linhas em que evolui a sua obra. Há livros que refletem a sua peregrinação interior, a luta que empreendeu para se aceitar a si mesmo. Outros inauguram um diálogo com os povos e culturas das províncias ultramarinas. Um terceiro grupo interpela, frontal e ironicamente, o estilo de vida e as circunstâncias políticas da sociedade portuguesa na Metrópole
Em 1974, entusiasmou-o a Revolução de abril, mas em breve percebeu-lhe as contradições. Nesse mesmo ano, anteviu o perigo duma invasão de Timor pela Indonésia e lançou publicamente o seu aviso contra as tentações de aventureirismo político por parte dos movimentos timorenses
A invasão de Timor em dezembro de 1975, embora prevista, deixou-o profundamente abalado. Pareceu ter perdido a razão. E foram de novo a poesia e as convicções religiosas que o conduziram na escuridão. Escrevia continuamente. Policopiava os versos e distribuía-os por onde passava, com sentido missionário e como gesto de intervenção. De cruz bem em evidência ao peito, percorria as ruas de Lisboa e os bares do Cais do Sodré, desafiando os que encontrava a um momento de oração
A visão de Cinatti surpreende ainda pela ousadia e atualidade. Com uma intuição de inspiração evangélica, e evocando a perspetiva ecuménica dum S. Justino - que pressupunha a existência de vestígios de Deus para lá das fronteiras do povo eleito e da Igreja -, o poeta coloca o dedo na ferida das sociedades contemporâneas ao eleger para questão fulcral da sua constituição a necessidade de se tornarem comunidades abertas e plurais
À pergunta de como visualizar uma sociedade plural assim, sem ser em termos da luta de classes sem tréguas da proposta marxista, ou em termos da concorrência desenfreada de certo liberalismo económico, Cinatti responde com uma aposta no poder construtivo do diálogo mesmo entre perspetivas aparentemente antagónicas
Em cada etapa, como recorda Eduardo Lourenço, «o relacionamento [de Cinatti] com a transcendência é o fundamento de tudo o resto. No seu mundo, tudo gira em volta da interpelação de que ele é objeto, enquanto criatura»
Mesmo na fase mais introspetiva, a aventura poética foi sempre encarada por ele como resposta a esse apelo e assumida como serviço. Viveu-a como obra de descobrimento e enfrentou as suas tempestades interiores com o sentido de desbravar o caminho para outros
A experiência poética de Cinatti, e a reflexão de Maritain que tanto nele influiu, convergem num ponto essencial: os versos que escreve não resultam duma ponderação prévia. A palavra e o conhecimento poéticos, tal como ele os vai vivendo, brotam duma região que antecede a consciência tematizada. Aí emergem na sua força primordial os grandes símbolos do psiquismo humano
Nesta lenta transfiguração, o outro é o horizonte que o interpela. Num primeiro tempo é refugio (a mãe), apoio (os amigos) ou resposta aos anseios de plenitude (Deus como Absoluto). Mas gradualmente transforma-se no lugar para onde que o chama o amor; no poder que o liberta da timidez afetiva, do isolamento da sua individualidade
A comunhão da amizade, quando assumida ao nível da Fé, dá-lhe a medida da Igreja. Percebe nela os Espírito de «Deus em chamas» que a envia ao mundo para o encaminhar. E a experiência salva-o também a ele, pois liberta-o daquela ânsia de Absoluto que, tomando o nome de Deus em vão, ameaça reduzi-l'O a uma inflação do "eu"
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