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A religião e o futebol

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A religião e o futebol

O campeonato do mundo de futebol «assume características próprias das religiões», nomeadamente a taça, «que funciona como um verdadeiro cálice sagrado, um santo Graal buscado por todos» e, «valha o respeito», a bola «funciona como uma espécie de hóstia que é comungada por todos».

Com o seu estilo provocador, o brasileiro Leonardo Boff (um dos "pais" da teologia da libertação) apresenta o futebol como «religião laica universal» em texto publicado no seu blogue na véspera do campeonato do mundo da modalidade, no Brasil, em 2014.

O teólogo, cujas reflexões ambientais são citadas na encíclica "Louvado sejas", do papa Francisco, explica que «no futebol como na religião» há «os onze apóstolos (Judas não conta) que são os onze jogadores, enviados para representar o país». Mas as comparações temerárias vão mais longe. Existe «um Papa que é o presidente da Fifa, dotado de poderes quase infalíveis. Vem cercado de cardeais que constituem a comissão técnica responsável pelo evento. Seguem os arcebispos e bispos que são os coordenadores nacionais do campeonato». Os sacerdotes são os «treinadores, estes portadores de especial poder sacramental de colocar, confirmar e tirar jogadores». E assim como «nas religiões e igrejas existem ordens e congregações religiosas, assim há as “torcidas organizadas”. Elas têm os seus ritos, os seus cânticos e a sua ética».

O estádio como uma catedral? Qualquer um poderia torcer o nariz diante de um paralelismo ousado em certos passos. No entanto, já S. Paulo via uma espécie de afinidade eletiva entre competição e sagrado, ao ponto de fazer da primeira o termo de comparação para ilustrar um ideal ético e ascético e superior. Na primeira Carta aos Coríntios, escrevia: «Não sabeis que os que correm no estádio correm todos, mas só um ganha o prémio? Correi, pois, assim, para o alcançardes. Os atletas impõem a si mesmos toda a espécie de privações: eles, para ganhar uma coroa corruptível; nós, porém, para ganhar uma coroa incorruptível».

Neste sentido surge como menos imprudente a aproximação do antropólogo francês Marc Augé, que define o futebol como «uma nova religião». Na verdade, o investigador acrescenta um ponto de interrogação. Porque, sustenta, em torno a um campo de jogo «talvez o Ocidente esteja a antecipar uma religião e ainda não o sabe». É o que escreve no livro "Football", em que propõe uma leitura da bola como «fenómeno religioso».

O opúsculo agora publicado em Itália (48 págs., ed. Dehoniane) é filho daquela atenção à «antropologia do quotidiano» urbano que Augé colocou no centro das suas pesquisas, depois de ter observado, com múltiplas investigações etnográficas, a África. O ex-diretor da Escola dos Altos Estudos em Ciências Sociais de Paris descreve uma partida à maneira de um rito «celebrado num espaço colocado no centro da cena por vinte e três oficiantes e alguns secundários, diante de uma multidão de fiéis de importância variável que pode alcançar os 50 mil indivíduos». Mas não só. Como uma missa transmitida em direto pela televisão, o jogo «é seguido com a mesma fé por milhões de praticantes em casa, de tal modo conhecedores dos detalhes da liturgia que, aparentemente sem trocar uma palavra, se levantam, gritam, berram ou voltam a sentar-se ao mesmo ritmo da multidão reunida no estádio».

A semelhança entre futebol e credo não é nova. Augé cita Émile Durkheim, sociólogo e historiador das religiões do final do séc. XIX, mas também o colega inglês Robert W. Coles, que em 1975 tinha proposto uma análise sobre o futebol como uma religião substituta.

Todavia o investigador francês acusa as ciências sociais de não ter defrontado este tema de forma sistemática e de nutrir uma singular relutância em relação aos imponentes rituais modernos. O ponto de chegada de Augé é amargo: a bola elevada a fé é «característica de uma época e de uma sociedade» nas quais se está convencido de que «estes fragmentos de tempo bastam para a nossa felicidade». Para entender a sua perspetiva, é preciso afirmar que «a relação entre desporto de massa e religião não tem nada de metafórico». Hoje, nota o antropólogo, no Ocidente «o sentido da existência constrói-se empiricamente». De facto, estamos perante «atividades que são suficientes para dar sentido à vida, desde o momento que dão forma sensível e social às expetativas individuais que contribuem a criar».

Disto são um exemplo os grandes jogos do campeonato nacional ou europeu ou mundial. Assim, «os estádios tornam-se um lugar de sentido, de contrassenso e de não-senso, um símbolo de esperança, de erro ou de horror». Instalações que, no entanto, não entram na categoria dos "não-lugares", segundo a teoria que tornou célebre Augé e que vê nas áreas de serviço, centros comerciais ou hotéis - apenas para indicar alguns casos - espaços alheados e dominados pela ausência de história, identidade, relações. Entre tribunas e bancadas, ao contrário, cumprem-se «grandes rituais, gestos repetitivos que são também iniciações». E se de cada ritual se espera que aconteça alguma coisa - que a chuva caia, que uma epidemia cesse, que as colheitas sejam boas -, «no ritual desportivo a expetativa preenche-se com a própria celebração: no fim do tempo regulamentar as sortes estarão decididas mas o futuro terá existido, fragmento de tempo puro, graça proustiana de uso popular».

Que o futebol é uma liturgia laica mostram-no também os coros, que, observa o especialista, «se ouvem geralmente em alternância e quase não se sobrepõem», como pode acontecer ao ouvir-se uma comunidade monástica que canta o saltério durante a Liturgia das Horas. Além disso, segundo o antropólogo, podem nutrir o mesmo fascínio e comover da mesma maneira o odor do incenso, os órgãos monumentais, o verde cintilante do relvado à noite ou o rumor que ressoa sobre um grande estádio de futebol.

Em face de um jogo em qualquer um dos maiores estádios, é de interrogar se não se perpetua a ideia de Marx sobre o «ópio do povo». É o que faz também Augé. E admite que um desafio é no século XXI considerado uma «fonte de espetáculo», mas a dimensão cenográfica e majestosa do desporto pode ser julgada como «fundamento da sua natureza religiosa». Que conquista todos, sem distinção de idade e condição, como se percebe ao entrar no meio do público.

Vem à mente o papa Francisco, que várias vezes recorreu ao ícone do futebol para falar da fé. Na audiência geral de 13 de junho de 2013, afirmou: «Se num estádio, numa noite escura, uma pessoa acende uma luz, apenas se entrevê, mas se os outros 70 mil espetadores acendem cada um a própria luz, o estádio ilumina-se. Façamos com que a nossa vida seja uma luz de Cristo».

E aos jovens tinha dito, em 2013, durante a Jornada Mundial da Juventude, no Brasil: «O que é que faz um jogador quando é convocado a fazer parte de uma equipa? Deve treinar-se, e muito! Assim é a nossa vida de discípulos do Senhor». Palavras de um pontífice "desportivo" que levou até ao Vaticano o amor pela camisola do San Lorenzo, clube da sua Buenos Aires.

 

Giacomo Gambassi
In "Avvenire"
Trad.: Rui Jorge Martins:
Publicado em 29.05.2016 | Atualizado em 17.04.2023

 

 
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Marc Augé acusa as ciências sociais de não ter defrontado este tema de forma sistemática e de nutrir uma singular relutância em relação aos imponentes rituais modernos. O ponto de chegada de Augé é amargo: a bola elevada a fé é «característica de uma época e de uma sociedade» nas quais se está convencido de que «estes fragmentos de tempo bastam para a nossa felicidade».
Em face de um jogo em qualquer um dos maiores estádios, é de interrogar se não se perpetua a ideia de Marx sobre o «ópio do povo». É o que faz também Augé. E admite que um desafio é no século XXI considerara uma «fonte de espetáculo», mas a dimensão cenográfica e majestosa do desporto pode ser julgada como «fundamento da sua natureza religiosa». Que conquista todos
«O que é que faz um jogador quando é convocado a fazer parte de uma equipa? Deve treinar-se, e muito! Assim é a nossa vida de discípulos do Senhor». Palavras de um pontífice "desportivo" que levou até ao Vaticano o amor pela camisola do San Lorenzo, clube da sua Buenos Aires
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