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Leitura: "Superar o muro"

Imagem Capa (det.) | D.R.

Leitura: "Superar o muro"

O abraço muito especial, profundamente simbólico, que uniu o papa Francisco, o responsável islâmico Omar Abboud e o rabino Abraham Skorka diante do Muro das Lamentações, em Jerusalém, constitui o pretexto para o livro “Superar o muro”, recentemente lançado pela Paulinas Editora.

Num tempo em que os efeitos mortais do fundamentalismo religioso marcam presença diária nos médias, e em que, ao mesmo tempo, se questionam as virtudes e os limites do diálogo inter-religioso, o abraço entre os três líderes é um gesto profético que a violência e a intolerância não fazem esquecer.

O livro, redigido pelo padre italiano António Spadaro, contém as suas entrevistas a Omar Abboud e Abraham Skorka, seguidas de discursos proferidos pelo papa durante a sua peregrinação à Terra Santa, em maio de 2014.

A última parte oferece um testemunho dos episódios que envolveram a visita de Francisco a Israel e à Palestina e, depois, o encontro de oração pela paz nos jardins do Vaticano, que juntou o papa e os presidentes de Israel e Palestina, Shimon Peres e Mahmoud Abbas, no mês de junho.

Apresentamos alguns excertos da obra, correspondentes à entrevista com Omar Abboud, secretário do Centro Islâmico da Argentina, com subtítulos de contextualização acrescentados pelo Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura.

 

Como Omar Abboud conheceu o cardeal Bergoglio

Conheci o então arcebispo de Buenos Aires num dos momentos mais difíceis por que passou a Argentina. O início do milénio surpreendeu o meu país num estado de desagregação social como nunca sucedera até então. A pobreza, o desemprego e a falta de respostas dos políticos tinham criado um clima de caos e de incerteza. Ainda hoje continuamos a tentar resolver muitos dos problemas que foram gerados nessa época, e a pagar as suas consequências. Perante a falta de credibilidade da política, uma das principais redes sociais que resistia e que continuava a ter autoridade era a das diversas instituições religiosas dirigidas pela Igreja católica. Para aqueles dentre nós que trabalhavam em instituições ligadas à religião, o arcebispo Bergoglio era uma figura conhecida e respeitada. Era um homem relutante em aparecer, mas presente e atento, não só às necessidades particulares da Igreja, mas também às situações que diziam respeito ao país em geral. A primeira vez que o vi pessoalmente foi num certo 25 de maio, durante o “Te Deum”.

Recordo que participei no mesmo, na companhia do então presidente do Centro Islâmico, Adel Mohamed Made, e que no fim da cerimónia, como prescrito pelo protocolo, o saudámos enquanto representantes da comunidade islâmica. Depois conheci o padre Guillermo Marcó, porta-voz e adido de imprensa do arcebispado. Manifestei-lhe o desejo de me encontrar pessoalmente com o cardeal Bergoglio, e ele combinou uma entrevista, depois da qual acolhemos, pela primeira vez, um arcebispo de Buenos Aires, no Centro Islâmico da República Argentina. (…)

A visita não passou em silêncio, na nossa comunidade: foi muito bem acolhida e, a partir daquele momento, entre o nosso presidente, Adel Made, Jorge Bergoglio e eu, que na época era secretário cultural da instituição, estabeleceu-se uma relação especial. Como arcebispo, Bergoglio visitou várias vezes a comunidade islâmica de Buenos Aires e sempre teve uma atitude positiva em relação a ela. Nunca se intrometeu na sua vida interna, mas sempre teve a cortesia de nos enviar uma saudação por ocasião das festas islâmicas. Recordo as palavras que o cardeal escreveu no “Livro de Visitas”do Centro Islâmico: «Agradeço a Deus, o Misericordioso, pela hospitalidade fraterna, pelo espírito de patriotismo argentino que encontrei e pelo testemunho de empenho pelos valores históricos da nossa pátria.» A partir de então, tive a oportunidade de visitar o arcebispo de Buenos Aires com uma certa regularidade, inicialmente em ocasiões institucionais e, mais tarde, pelo simples e gratificante prazer de conversar. (…)

Tenho muitas recordações, maravilhosas e até edificantes [de Bergoglio enquanto arcebispo de Buenos Aires]. Em certos momentos difíceis da minha vida soube pronunciar a palavra certa que me permitiu enfrentá-los melhor. Foi sempre atento e afetuoso. Muitas vezes, nestes últimos anos, fui ter com ele durante o mês do Ramadão, em horários que coincidiam com o momento de quebrar o jejum, e ele nunca deixou de me servir água, café e qualquer coisa para comer. Uma solicitude completamente inesperada, que sempre considerei um sinal de grande respeito. É difícil escolher uma recordação entre as inúmeras que conservo dele, mas há um episódio que ficou particularmente gravado em mim.

Certo dia, convidei-o para fazer uma conferência num espaço onde se reunia um grupo chamado «Conceito». Teria de fazer um discurso de duas horas, e Bergoglio decidiu falar do tema «Humanismo e política». Depois de uma dissertação magistral, abordando temas sociais e doutrinais cristãos, chegou o momento reservado às perguntas do público, um público variado, que incluía até dirigentes comunitários, funcionários e sindicalistas. Alguns quiseram apenas apresentar-se, outros fizeram intervenções autorreferenciais, mas, por fim, vários fizeram-lhe perguntas. Um senhor que parecia muito culto, e que se exprimia numa linguagem muito erudita, perguntou-lhe porque é que a delinquência estava sobretudo concentrada nos bairros pobres da cidade. Bergoglio olhou-o fixamente e respondeu-lhe: «Sabe uma coisa, o que acontece de facto nos outros bairros é que têm advogados melhores.» Com um humor fino, replicou a uma pergunta que se repete com frequência entre aqueles que caem na leviandade de criminalizar a pobreza. (…)

Pela minha experiência, a colaboração sempre foi ótima. Quando tivemos de interagir em termos institucionais, sempre houve liberdade para propor ou sugerir, mesmo que muitas vezes isso nem sequer fosse necessário: com efeito, como se tratava de momentos de diálogo inter-religioso, a escolha das palavras e das atividades era sempre adequada e excluía qualquer sensibilidade negativa. Isso não acontece por acaso: provém do conhecimento e do respeito pelas tradições do outro.

 

Desafios do diálogo inter-religioso

O maior desafio, às vezes, não é sentarmo-nos com aqueles que praticam uma religião diferente, mas convencer aqueles que praticam a nossa. Um aspeto da questão do diálogo, que não se deve negligenciar, é que o modo como o travamos hoje é relativamente novo, porque nos dedicamos a um espectro de atividades muito mais largo do que no passado. Não quero dizer que não houvesse contactos anteriormente, mas é inegavelmente diferente o relevo que tal instância assumiu hoje. Frente a esta nova perspetiva, há quem dê sinais de desconfiança, talvez por medo de explorar este percurso ou por temor de que de algum modo as identidades se possam mesclar. (…)

Sob muito aspetos, o peso da história é inimigo do diálogo, visto que, no passado, houve muitos recontros. Porém, cada um de nós, na sua individualidade ou olhando às raízes do grupo a que pertence, tem toda a liberdade para tomar da história e salientar os acontecimentos com os quais se identifica de modo especial. Isso não significa, com efeito, alterar um acontecimento histórico ou aderir simplesmente àquilo que mais nos faz sentir à vontade, porque a história se mantém invariável e, em última análise, como todos sabemos, «o passado já passou». Todavia, na conceção global de um período histórico, e sem perder de vista o seu contexto, podemos escolher e pôr em destaque aquilo que consideramos útil, aquilo que nos serve para viver, os factos que de algum modo podemos tomar como exemplo para o nosso presente. (…)

A mim, o bom senso diz-me para me sentar à mesa a fim de dialogar e raciocinar com o outro, com quem é diferente, e que não se corre perigo nenhum de deformar a identidade, se tivermos confiança e estivermos seguros daquilo em que cremos. Por outro lado, juntam-se conhecimentos e perspetivas, questões que facilitam a consolidação da convivência. O modo como a história passada se desenrolou não é da nossa responsabilidade: é uma espécie de herança, ao passo que é nossa responsabilidade o modo pelo qual se desenvolverá o futuro. Nesse sentido, temos o dever de construir uma herança.

 

O abraço diante do Muro das Lamentações

O abraço diante do muro foi sem dúvida, um dos gestos mais emocionantes da viagem. Naquele instante, tentei suspender o diálogo interior e creio que aquele momento terá sido um reflexo daquilo a que eu gosto de chamar a “Jerusalém”ou “Al-Quds”celeste. Se esta cidade sagrada foi e continua a ser, para as tradições monoteístas, testemunha de inúmeras divergências, a sua projeção em termos metafísicos é certamente a de um lugar de encontro. Passado o momento tão especial do abraço com o papa Francisco e com o rabino Skorka, comecei a refletir. Penso que o Papa tem inaugurado formas de comunicação de alto valor. Dizemos muitas vezes que uma imagem vale mais que mil palavras, mas, muitas vezes, centenas de imagens não valem um único conceito ou ideia. O Papa gera imagens conceptuais, de altíssimo valor simbólico, mas que também convidam à reflexão profunda. O mesmo faz com os silêncios.

 

Religião da paz, religião da guerra

Eu creio que a religião pode conduzir o homem por um caminho de perfeição, mas também o pode converter num demónio. Pode convertê-lo num demónio colocando-lhe na boca, precisamente, o nome de Deus. O martelo pode ser usado para construir ou para destruir. O mesmo livro sagrado pode ser lido para construir o amor e pode ser usado para construir a guerra. A diferença é estabelecida pelo homem e pelo seu modo de se colocar diante dos outros. Já várias vezes disse que são duas as bases sobre as quais se apoia o grande mal do homem moderno. A primeira é a falta de pessoas, alta e moralmente, representativas a nível global. Por isso é muito importante a figura do papa Francisco em termos de representatividade e de autoridade espiritual. A outra base do problema consiste na forte tendência para o fundamentalismo de tipo político, económico e social. Não me refiro apenas ao fundamentalismo religioso como abordagem de leitura aos textos sagrados, mas ao facto de que se eu raciocino de modo não conforme com a maioria do meu grupo de pertença, sou automaticamente considerado um traidor.

O diálogo inter-religioso, portanto, deve desenvolver-se a dois níveis: com as outras religiões, mas também no interior da mesma religião. É fundamental o diálogo entre as religiões monoteístas: Cristianismo, Islão e Judaísmo. Mas é igualmente fundamental o diálogo dos muçulmanos com os muçulmanos, dos cristãos com os cristãos, e dos judeus com os judeus. Numa época marcada por conflitos a vários níveis, corre-se o risco de que quem toma muito a peito o diálogo apareça como uma figura débil. Como me sinto eu, enquanto muçulmano, ao ver que em alguns países islâmicos matam os cristãos? Não posso evitar a vergonha! Um cristão deveria sentir-se do mesmo modo ao ver um muçulmano ser discriminado ou humilhado. A religião deve ter uma forte componente de empenho social. Também aprendi isto com o papa Francisco, ao ouvi-lo falar da necessidade de sair, de nos pormos a caminho para ir ao encontro dos outros. Para nos encontrarmos de verdade com eles.

 

A oração

Ao longo da minha vida, a oração tem significado muitas coisas, ou, melhor dizendo, tem assumido várias formas. Como se sabe, a oração é um dos pilares do Islão, que recomenda que se reze cinco vezes por dia. Esta maneira de rezar não se baseia apenas na palavra, requerendo também gestos corporais, e faz-se virando o rosto para a cidade santa de Meca (muitos não o sabem, mas os primeiros muçulmanos viravam-se para Jerusalém). Além das condições específicas em que se deve fazê-lo, porém, o que dá um valor efetivo a este ato de culto é a pureza de intenção. O mesmo acontece quanto aos outros pilares da religião: o testemunho de fé, o jejum, o contributo social ou “zakat”e a peregrinação. A intenção pertence ao mundo da realidade interior da pessoa, ou seja, ao âmbito que você e Deus conhecem.

A partir de um versículo do Alcorão, comecei a atribuir à oração um outro tipo de sentido: «Criámos o homem e sabemos o que a sua alma lhe confidencia, porque estamos mais perto dele do que a (sua) artéria jugular» (50,16). A sensação de proximidade leva-nos a procurar, e a segurança da presença divina na nossa interioridade convida-nos à reflexão profunda. De certo modo, rezar é aprender a ver com o coração, como diz o Alcorão: «Todavia, a cegueira não é a dos olhos, mas a dos corações, que estão em vossos peitos!» (22,46). A oração e a súplica também dão ao ser humano a possibilidade de distinguir entre o amor profano e o amor divino.

Na minha vida, tive muitas experiências profundas de oração: na mesquita al-Ahmad do meu bairro, em Buenos Aires, na mesquita Istiqlal, na Indonésia, e num lugar chamado EyüpSultan, na Turquia. Porém, a mais vinculativa foi a experiência vivida na mesquita al-Aqsa, em Jerusalém. Na tradição islâmica, o profeta Maomé subiu ao Céu a partir dali, naquilo a que nós, os muçulmanos, chamamos «a viagem noturna»; nesse percurso, pôde conhecer os factos da vida futura, encontrar-se com Jesus, Moisés e Abraão – que a paz esteja com todos eles – e aproximar-se do trono de Deus; e depois, num ato de misericórdia, pôde voltar a desempenhar a sua missão no meio dos homens. Sobre essa viagem existem várias exegeses, mas creio que poderíamos vê-la simbolicamente, no seu conjunto, como uma oração perfeita: aproximar-se de Deus, recordar os profetas e regressar para servir no meio dos homens.

 

Publicado em 19.02.2015

 

Título: Superar o muro
Autores: Antonio Spadaro, Omar Abboud, Abraham Skorka, papa Francisco
Editora: Paulinas
Páginas: 208
Preço: 14,00 euros
ISBN: 978-989-673-435-0

 

 
Imagem Capa | D.R.
O arcebispo Bergoglio era uma figura conhecida e respeitada. Era um homem relutante em aparecer, mas presente e atento, não só às necessidades particulares da Igreja, mas também às situações que diziam respeito ao país em geral
Tenho muitas recordações, maravilhosas e até edificantes [de Bergoglio enquanto arcebispo de Buenos Aires]. Em certos momentos difíceis da minha vida soube pronunciar a palavra certa que me permitiu enfrentá-los melhor. Foi sempre atento e afetuoso
Um senhor que parecia muito culto, e que se exprimia numa linguagem muito erudita, perguntou-lhe porque é que a delinquência estava sobretudo concentrada nos bairros pobres da cidade. Bergoglio olhou-o fixamente e respondeu-lhe: «Sabe uma coisa, o que acontece de facto nos outros bairros é que têm advogados melhores.»
O maior desafio, às vezes, não é sentarmo-nos com aqueles que praticam uma religião diferente, mas convencer aqueles que praticam a nossa
O modo como a história passada se desenrolou não é da nossa responsabilidade: é uma espécie de herança, ao passo que é nossa responsabilidade o modo pelo qual se desenvolverá o futuro. Nesse sentido, temos o dever de construir uma herança
O martelo pode ser usado para construir ou para destruir. O mesmo livro sagrado pode ser lido para construir o amor e pode ser usado para construir a guerra. A diferença é estabelecida pelo homem e pelo seu modo de se colocar diante dos outros
Numa época marcada por conflitos a vários níveis, corre-se o risco de que quem toma muito a peito o diálogo apareça como uma figura débil. Como me sinto eu, enquanto muçulmano, ao ver que em alguns países islâmicos matam os cristãos? Não posso evitar a vergonha
A religião deve ter uma forte componente de empenho social. Também aprendi isto com o papa Francisco, ao ouvi-lo falar da necessidade de sair, de nos pormos a caminho para ir ao encontro dos outros. Para nos encontrarmos de verdade com eles
O que dá um valor efetivo À oração é a pureza de intenção. O mesmo acontece quanto aos outros pilares da religião: o testemunho de fé, o jejum, o contributo social ou “zakat” e a peregrinação. A intenção pertence ao mundo da realidade interior da pessoa, ou seja, ao âmbito que você e Deus conhecem
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