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Tiranias, massacres e fugas

Em Mt. 2, 13-18, encontramos a chamada «fuga para o Egito», bem como o massacre dos bebés masculinos de Belém e territórios confinantes. Este relato é especial para os cristãos porque faz parte da sua tradição sagrada. No entanto, como facto histórico, é algo de tristemente comum. Historicamente, o massacre anunciado pelo anjo de Deus a José e que origina a fuga da Família para o Egipto é algo de nada especial como facto.

Não é necessária qualquer erudição historiográfica para se saber que, de certo ponto de vista, a história da humanidade é, em grande parte, pontuada por massacres de todos os tipos. O ponto de vista aqui em causa é o da relação entre tiranos e tiranizados. Esta relação constitui, numa terrível contradição com o melhor possível para a humanidade – sobretudo a humanidade como criada pelo Deus da Bíblia –, o eixo histórico (não confundir com historiográfico), isto é, o eixo real da atividade que tem constituído o movimento da humanidade ao longo dos tempos.

Tristemente, a história da humanidade pode ser escrita como a história da relação entre tiranos – cujas tiranias assumem formas várias, mesmo disfarçadas de oligarquias ou de democracias – e tiranizados. A relação de Herodes com a ameaça – para ele, mundana – representada pelo bebé anunciado pelos Reis do Oriente é, também ela, uma comum relação de tirania. Como tirano, Herodes antecipa a acção do futuro Homem, agora bebé, como uma outra tentativa tirânica que terá de se debater com a sua própria a fim de a substituir, pois tal é a lógica da tirania. Nenhum tirano pode admitir concorrência contra si pelo poder que detém.



A “ilusão” do tirano, de todos os tiranos que existiram e existem, não deixando de o ser, por meio das consequências concretas, realíssimas, que introduz no comum da vida do mundo humano, cria realidade, cria a realidade histórica, social e política da também realíssima escravatura nossa de cada dia que assolou e assola o mundo humano



Deste modo, o tirano tem de preventivamente eliminar toda a possível concorrência. A ordem que Herodes dá para massacrar todos os infantes até dois anos de idade presentes em Belém e arredores pertence à mais pura lógica defensiva do poder, lógica que é a única capaz de manter o tirano no comando absoluto.

A lógica motora da tirania, isto é, do tirano, pois, na realidade, só há tiranias porque há tiranos, consiste em querer o aspirante a tirano – e, se bem sucedido, depois efetivo tirano – todo o bem para si, todo o bem já concretizado, mas, sobretudo, todo o bem possível. É pela erótica exclusiva do bem possível que o tirano existe, que o tirano é tirano.

O tirano apenas aceita partilhar – é trata-se de literalmente «partilhar», nunca de «dar» – o bem necessário à possibilidade de existência de esses que o servem. Mas, ainda assim, esse mesmo bem nunca é pertença daqueles em que está depositado como «coisa deles», é, ainda, do tirano, delegado nos seus servidores. Reside aqui a fundação ontológica e antropológica da escravatura (que não é fundamentalmente um fenómeno social ou político, mas ético-ontológico), pois, se todo o bem pertence ao tirano, então, o bem próprio das pessoas que o servem também é dele.



Talvez a ilusão mais perigosa e perniciosa seja a que ocorre quando se pensa que a tirania só existe em modo politicamente grandioso



A tirania funda-se, assim, na redução de todo o direito ao bem cósmico à posse exclusiva do tirano. Poder-se-á dizer que tal não é mais do que uma ilusão do tirano, que, na realidade, as coisas não se passam assim. No entanto, esta “ilusão” do tirano, de todos os tiranos que existiram e existem, não deixando de o ser, por meio das consequências concretas, realíssimas, que introduz no comum da vida do mundo humano, cria realidade, cria a realidade histórica, social e política da também realíssima escravatura nossa de cada dia que assolou e assola o mundo humano, com consequências, aliás, sobre o resto do mundo.

No entanto, talvez a ilusão mais perigosa e perniciosa seja a que ocorre quando se pensa que a tirania só existe em modo politicamente grandioso, através de atos que nos façam lembrar um qualquer Hitler de qualquer tempo e espaço, idos ou nossos contemporâneos.

Não é assim a realidade da tirania. Esta ocorre, simbolicamente situada, entre algo como a mítica morte de Abel por Caim e o histórico já mencionado Hitler. Simbolicamente, porque real e historicamente ocorre sempre que isso que o símbolo aludido nos mostra: o literal roubo de possibilidades de um ser humano a outro ser humano. Então, como figura simbólica, o acto de Caim assume grandeza paradigmática em termos de acto de tirania: Caim roubou a Abel toda a sua possibilidade.



É em termos religiosos judaico-cristãos que o parasitismo humano assume características de verdadeira blasfémia anti-divina, pois Deus pôs a sua criatura humana como possível criador de um trilho ontológico próprio que o encaminhasse voluntariamente para o encontro com o Criador



Tal é trágico em termos puramente antropológicos e laicos, porque tal ato aniquila Abel como possível, impedindo-o de concretizar todo o acervo de possibilidades que acompanhava o seu ser até que Caim teve a sua intervenção aniquiladora. Percebe-se, assim, que a tirania é má, ontologicamente má, fundamentalmente porque aniquila as possibilidades próprias de esse contra quem se ergue.

Por outro lado, ao apropriar-se do que não lhe compete ontologicamente como possibilidade própria, o tirano torna-se tecnicamente um parasita. Em forma de possível justiça poética, reside precisamente neste parasitismo o modo mais radical de eliminação do tirano, pois, se este não souber administrar bem o seu parasitismo, como todos os outros parasitas que são de algum modo imoderados dentro da imoderação do parasitismo, tal imoderação, levando à aniquilação de isso que parasita e de que depende, acarretará a sua própria aniquilação. É este um mecanismo de retroação muito pertinente em termos de equilíbrio ecológico desde sempre presente na natureza e que se aplica também à especificidade humana.

Todavia, é em termos religiosos judaico-cristãos que o parasitismo humano assume características de verdadeira blasfémia anti-divina, pois Deus pôs a sua criatura humana como possível criador de um trilho ontológico próprio que o encaminhasse voluntariamente para o encontro com o Criador. Sem metáfora: o ser humano foi criado como capaz de bondade, em tudo semelhante ao Criador salvo na grandeza ontológica absoluta.



Talvez a «fuga para o Egito» não seja propriamente uma fuga, mas a retirada estratégica de um santo general que reserva o seu infante exército para batalhas ainda mais duras e perigosas



O caminho a trilhar poderia ser sempre feito escolhendo entre bens, sem que qualquer dos bens disponível incoativamente fosse um «bem-menor»: não há «bens-menores» no mundo inicialmente criado por Deus; são todos bens-maiores, porque são todos perfeitas criaturas de Deus.

É, então, o acto tirânico de Caim que inicia o contra-trilho humano da tirania. Caim é Hitler e Hitler é Caim. Eu, tu, ele, nós, vós, eles, se escolhermos o ato de Caim, sempre que escolhemos o acto de Caim, construindo a tirania nossa de cada dia, somos Hitler.

Então, segundo o modo tirânico – falta da necessária caridade – como a humanidade trilha a sua realidade concreta, como nos podemos surpreender com a maldade que parece imperar? Ou será que, ainda assim, não é mesmo a maldade que impera?

Talvez a «fuga para o Egito» não seja propriamente uma fuga, mas a retirada estratégica de um santo general que reserva o seu infante exército para batalhas ainda mais duras e perigosas, as batalhas da caridade adulta.


 

Américo Pereira
Universidade Católica Portuguesa, Faculdade de Ciências Humanas
Imagem: Choat/Bigstock.com
Publicado em 17.05.2019

 

 
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