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Entrevista

Luís Miguel Cintra: Todo o artista é um pregador

Pela segunda vez Luís Miguel Cintra leu, na Capela do Rato, livros da Bíblia. Após o livro do Apocalipse, em Junho, o padre Tolentino Mendonça desafiou-o para a leitura do Eclesiastes. Uma experiência que tem conduzido o encenador ao íntimo da natureza humana e da vida atual.

Entrevista à Agência Ecclesia:

Quando o padre Tolentino Mendonça o desafiou a ler o livro do Eclesiastes na Capela do Rato, respondeu-lhe nunca o ter lido. Ele aconselhou-o a ler dizendo que ia adorar. E hoje? O que lhe parece?
Que ele tinha razão. É impressionante a quantidade de temas que aparecem no Eclesiastes relacionados com a efemeridade da vida e das várias vaidades - um tema muito tratado ao longo do tempo, que me interessa e me toca pessoalmente.
É um tema muito querido a toda a época barroca mas aparece no Eclesiastes em toda a sua força e de forma muito cruel. O livro mesmo diz – não sabemos nada do que ali vai acontecer. Tanta coisa acontece de mal no mundo, porque havemos de nos esforçar e trabalhar? Porque havemos de querer saber? A resposta é terrível. Não temos razão. A única razão é o prazer do quotidiano, do dia e do momento presente e isso é obra de Deus. A única hipótese que temos é confiar em Deus e viver o que Deus nos deu, agradecidos.
É terrível. É quase como se estivéssemos a negar o valor da iniciativa humana. Ao mesmo tempo é fantástico como reflexão sobre a pequenez do homem perante a imensidade do conceito de Deus.

É também o conceito da liberdade...
Sim, o conceito da liberdade aparece constantemente porque o homem pode fazer o que quiser e tem de encontrar um valor para o que faz. O único valor que persiste é o da sua pequenez perante a imensidade de Deus e também o valor da confiança do homem em Deus.
A valorização da vida individual perante a imensidade do que significa a vida humana em geral, ao longo dos séculos e de todos os tempos toca-me especialmente.

O texto começa com a frase «Vaidade das vaidades, tudo é vaidade». Esta expressão poderia ter sido formulada pelo encenador Luís Miguel Cintra?
Sim. Creio que na época em que vivemos estamos sempre a ouvir o contrário. Tudo o que é efémero, tudo o que não tem passado ou futuro é mais valorizado. Isso assusta-me, tal como assusta o autor do Eclesiastes, porque é pouco para dar um sentido à vida humana. No fundo temos de ter consciência da efemeridade da vida, consciência da morte para dar um valor a si próprio, aos outros e à vida de todos, integrado numa trajetória mais vasta e que nos transcende.
Lembrarmo-nos de que o que alimenta o nosso dia-a-dia é a vaidade - no sentido efémero, do que não tem valor em si próprio - é muito importante para encontrar um rumo para a nossa vida.

Um encenador é também um pregador?
Qualquer artista é. Um artista, seja ele qual for – escritor, pintor, cineasta – está a fazer uma intervenção política, está a dirigir-se à cidade, ao conjunto de cidadãos. Há algo de pregador nisso.
Lembro-me de o realizador Manuel de Oliveira me ter dito que se representa no cinema como se esquecêssemos que aquilo vai ser visto por outras pessoas. Como se estivéssemos num mundo imaginário e alguém espreitasse pelo buraco da fechadura.
Nos filmes de Manuel de Oliveira os atores olham diretamente para dentro da câmara, o que em si despista muitos atores. Uma vez ele disse-me: «Lembre-se que quando está a olhar para a câmara, está a olhar para o público que o vê numa sala de teatro». E quando ele me disse isto, fez-se luz. Percebi que isto é verdade.
A apresentação de um filme ou espetáculo é uma ação nossa que se dirige a um próximo. O artista é de alguma forma um pregador porque tem uma responsabilidade pública e social tremenda.
Lembrei-me disto em toda a minha vida. Sempre trabalhei com sentido de missão, coisa que é difícil perceber nos espetáculos atualmente, mas que não me sai da cabeça. Quando estou a fazer um espetáculo penso no público não como um comprador de bilhetes, mas como uma pessoa igual a mim, com quem eu gostaria de dialogar e provocar. Este respeito pelo público é algo muito importante para um artista, mas facilmente esquecido porque a arte é encarada como mercado, logo o público é um comprador a quem se pode enganar.
Mas se a ideia de pregador supõe alguém que tem uma verdade e que a transmite a outras pessoas, essa ideia repugna-me. Nunca penso em mim numa situação de autoridade. Já experimentei fazer sermões do padre António Vieira, sei o que é o poder de um púlpito, o que só aumenta a responsabilidade dos pregadores e, aproveitando a imagem, a responsabilidade dos artistas.
Aí condeno completamente os artistas que consideram o público inferior e se consideram como portadores da verdade. Acho que o artista não é um pregador nesse sentido, mas um provocador por natureza de outras liberdades e de outras consciências.

Quem está em palco tem noção de cada pessoa sentada no público ou há uma diluição?
Depende dos espetáculos porque há uma qualidade de cada sala. Cada dia de espetáculo sente-se a sala de forma diferente. O público forma um grupo com características próprias. A consciência individual é difícil.
Eu penso no público como um conjunto de indivíduos todos diferentes entre si. E concebo-os como se eles fossem, pelo menos, tão inteligentes como eu. Se não são, paciência, mas eu espero sempre que o público seja alguém com quem eu gostaria de conversar.
Não tenho desprezo por ninguém nem por diferentes graus de instrução, gosto muito de conversar com pessoas portadoras de culturas diferentes da minha. Não estou a falar de cultura, mas de inteligência, de sensibilidade. Há qualidades no ser humano que me merecem tanto respeito como o seu nível cultural.

E nas provocações, vai tendo respostas?
Muitas. O espetáculo recente, baseado num texto de Gil Vicente, o «Miserere», chocou muita gente e foi rejeitado por pessoas com uma cultura paralela à minha. Pessoas que conhecem muito bem Gil Vicente e aqueles textos, com noções desenvolvidas de teologia, rejeitaram o espetáculo. Outras mais ingénuas mas mais generosas na forma de se abrirem ao mundo e ao que é proposto foram profundamente tocadas pelo espetáculo. Isso é engraçado.
Era um espetáculo de natureza religiosa, o texto é de natureza teológica. Mas pessoas que não tinham nenhuma espécie de formação religiosa foram tocadas pelo espetáculo. Houve pessoas que me apareciam a chorar no fim. Interpreto essa reação, mesmo entre pessoas que se julgam ateias, como a existência uma necessidade de explicação da vida que transcende o que vivemos. Há uma necessidade de absoluto no ser humano, caso contrário não se tinham inventado tantas religiões ao longo da História.

E o religioso vai passando nessas pequenas provocações?
Não é o meu único objetivo, mas encaro o meu trabalho no teatro como devendo ser sempre provocatório. Às vezes a provocação é amável. Há espetáculos que não incomodam o espetador. Mas há espetáculos que abrem ao espetador zonas de sensibilidade que ele normalmente não pratica – um tipo de humor diferente, uma imagética diferente, uma forma de representar a que não está habituado.
Isto provoca uma experiência diferente e, sendo feito de uma forma muito simples, pode conduzir o espetador a outros mundos.

A busca do absoluto pode ser feita nas diversas formas de arte? Através do teatro, por exemplo?
Claro que sim. É uma das razões pelas quais gosto de ser ator. A nossa vida tem as limitações que cada vida tem. Todas elas. Um ator tem a possibilidade de experimentar, de pensar, de lhe passar pelo corpo experiências de vida imaginárias pelas quais nunca passaria. E não só isso, mas conceitos de humanidade que são banidos da nossa época.
Para um ator representar um herói romântico é uma experiência diferente e que o obriga a confrontar-se com uma noção de ser humano, de esperança no futuro e na humanidade, com graus de paixão pela liberdade que ele nunca experimentou. E que me consolam no meu anseio de absoluto. Dão-me a possibilidade de uma ideia muito mais generosa para o ser humano do que aquela que é dado viver no quotidiano.

O livro do Eclesiastes seria um bom texto para levar à cena?
A literatura no geral, sem ser a literatura dramática, causa-me problema na sua transposição para teatro. Claro que se pode fazer teatro com tudo mas um romance é um romance, um poema é um poema e uma peça de teatro é uma peça de teatro.
Os livros da Bíblia não são peças de teatro. Acho importante que se conserve na Bíblia o caráter de livro sagrado.  É ali que está a matriz de todo o Cristianismo. Faz-me impressão manipulá-lo cenicamente, dessacraliza-o.
Lê-lo em voz alta, como tenho feito, parece-me importante. Lê-lo em conjunto com outros mesmo sem debate, é uma forma de se conhecer melhor o cânone dos livros sagrados. Confesso que não tenho muita vontade de o levar à cena. Mas já interpretei uma parte da Bíblia, do Livro de Job, no filme de Manoel de Oliveira «O meu caso». Gostei muito de o fazer, mas foi diferente, não foi o livro integral.
Gil Vicente, por exemplo, reescreveu a Bíblia em «Breve sumário da história de Deus». É uma peça deslumbrante com episódios da Bíblia. Acho mais certo.

Tem descoberto o texto bíblico nestes vários desafios de ler em público?
Eu tive uma educação cristã muito séria, do mais católico possível. Cheguei a querer ser catequista quando era muito jovem. Não é um livro desconhecido. Mas o Antigo Testamento e determinados textos, que não os Evangelhos do Novo Testamento, conhecem-se mal.
A Bíblia é composta por muitos mais textos que de facto é importante conhecer porque os Evangelhos estão integrados num conjunto de textos de natureza muito diferente, que conferem um outro valor aos próprios Evangelhos. Isso é que ultimamente tenho lido, a outra Bíblia que não conhecia tanto.

Gostaria de ler em público mais algum livro da Bíblia?
Há um livro, que é "best–seller" de todas pessoas, mesmo que não sejam cristãs, que é o Cântico dos Cânticos. É deslumbrante como pura poesia. Não é um livro tão profundamente trágico como os que li até agora [Apocalipse e Eclesiastes].

Como encara este cruzamento entre a Bíblia e estes atos públicos de cultura?
Acho que são muito importantes. Devemos lembrar que a origem do Cristianismo está num conjunto de homens que resolveram fundar uma religião depois da experiência, de conhecer ou ouvir falar, da passagem de Cristo na terra.
Essas pessoas inventaram uma religião na sua própria época. Deixaram um legado com princípios e rituais que foram sendo transformados ao longo dos séculos. É natural que com a expansão do Cristianismo, quem o dirige tenha uma necessidade de conservação, caso contrário seria fácil haver dispersão.
Por outro lado, a necessidade de adaptação e renovação à época contemporânea é urgentíssima. E não vejo nisto uma tarefa dos ministros da Igreja. Acho que a responsabilidade dos leigos é tão grande como a dos religiosos. Creio que essa responsabilidade devia existir nos cristãos atuais.
Os leigos deveriam perceber que é mais difícil a modificação dentro da Igreja a partir dela própria do que através dos próprios leigos. A Igreja tem um peso histórico atrás de si que é muito difícil libertar-se. Há muitos erros, como muitos religiosos reconhecem, na prática da Igreja, mas é mais difícil para eles modificá-la.
Tenho tomado consciência, e é-me simpático perceber, que há grupos de leigos que se estão a organizar.
No ano passado, de férias em Roma, entrei na Basílica de Santa Maria, em Trastevere. Deparei-me com uma celebração de vésperas de leigos que me deixou boquiaberto. O caráter religioso manifestava-se de forma diferente. Eram pessoas novas, desempoeiradas, muito contentes de estarem em conjunto e celebravam vésperas de acordo com a sua vida quotidiana. Ao fim da tarde, em vez de irem ao café, estavam ali. Liam textos, cantavam cânticos e sobretudo, gostavam muito de estar umas com as outras, em nome de princípios comuns. Pude depois perceber que se tratava de um grupo especialmente ativo, responsável politicamente. Acho importante que isto comece a acontecer.
Em Espanha falei, a diferentes pessoas, do site do Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura, e ficaram de boca aberta. Fiquei com a sensação de que a fama, e provavelmente a prática da Igreja em Espanha, é muito mais conservadora do que o que se passa em Portugal. Um espetáculo como «A Dança da Morte», promovido em Portugal pela própria Pastoral da Cultura, em Espanha teve outro tratamento. Em Segóvia, o bispo não deixou que fosse representado dentro da catedral.
Hoje, num mundo em que tudo se sabe, pode vir a desempenhar uma função não exclusiva a Portugal.

Os leigos não serão cristãos envergonhados?
É capaz de haver muita gente envergonhada. Mas são coisas muito delicadas e que não podem ser tratadas da mesma forma como tratamos assuntos políticos.
O Papa esteve cá recentemente e eu indignei-me muito com a mistura dos assuntos. O Papa é uma figura simbólica de uma zona extremamente íntima e livre das pessoas, eu vou à missa se me apetecer, sigo os preceitos da Igreja se quiser. A visita do Papa a Lisboa parecia a visita de um chefe de Estado. Custa-me pensar na religião dessa forma. É uma das zonas mais livres da experiência humana.
Deveríamos ter algum recuo em relação à Igreja e não deveríamos pedir às pessoas que se manifestem imediatamente como cristãos. Porquê? Não precisam. Deve ser feito de acordo com aquilo que as pessoas sentem necessidade. São questões delicadas.
A educação que se teve, a experiência religiosa que se associa a pessoas que não se gostou, contatos com padres que não se portavam bem, zonas que a Igreja proíbe, isso pode afastar pessoas da prática religiosa.
Compete à consciência das pessoas aceitar ou não. Há uma confusão que considero ser preciso esclarecer em termos muito mais simples e mais humildes, aceitando as imperfeições e as contradições das pessoas. Isso faz parte da vida.
Não é preciso tornar em lei o que o Cristianismo anulou como lei. O cristianismo não é o mesmo que o Judaísmo com as suas tábuas da lei, nem tem uma noção de Deus cruel como antigamente. É uma outra coisa. Não vamos desesperar-nos por as pessoas não aparecerem a dizer que são cristãs.

 

Entrevista conduzida por Lígia Silveira
In Agência Ecclesia
© SNPC | 03.11.10

Luís Miguel Cintra

























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