Uma página solene (Lucas 3, 1-6), quase majestosa, dá este domingo, segundo do Advento, início à atividade pública de Jesus. Um longo elenco de reis e sacerdotes traçam o mapa do poder político e religioso do tempo, e depois, inesperadamente, a mudança de rumo, a reviravolta.
A Palavra de Deus voa para longe do templo e das grandes capitais, do sacerdócio e das câmaras do poder, e chega a um jovem, filho de sacerdote e amigo do deserto, do vento sem obstáculos, do silêncio vigilante, onde cada sussurro chega ao coração.
João ainda não tem 30 anos e já aprendeu que as únicas palavras verdadeiras são as que se tornam carne e sangue. Que não se tiram de um bolso, já prontas, mas das entranhas, que te fazem sofrer e rejubilar.
Eis que a Palavra de Deus vem sobre João, filho de Zacarias, no deserto. Não é o anunciador que leva o anúncio, é o anúncio que o leva, que o persegue, que o impele: e percorria toda a região do Jordão.
A Palavra de Deus está sempre em voo à procura de homens e mulheres, simples e verdadeiros, para criar inícios e processos novos. Endireitai, aplanai, tapai… Aquele jovem profeta algo selvático descreve uma paisagem áspera e difícil, que tem os traços duros e violentos da história: toda a violência, toda a exclusão e injustiça são montes a abater.
A abater é também a nossa geografia interior: um mapa de feridas nunca curadas, de abandonos sofridos ou infligidos, os medos, as solidões, o desamor… Há trabalho a fazer, um trabalho enorme: aplanar e tapar, para se ser simples e linear. E se eu nunca for uma auto-estrada, não importa, serei uma pequena vereda ao sol.
Evangelho que conforta: mesmo que os poderosos do mundo ergam barreiras, cortinas de mentiras, muros nas fronteiras, Deus encontra o caminho para chegar até mim e pousar-me a mão no ombro, a palavra no colo, nada o detém.
Quem conta verdadeiramente na história? Quem mora num palácio? Herodes será recordado apenas porque tentou matar aquele Menino; Pilatos porque o condenou. Conta verdadeiramente quem se deixa habitar pelo sonho de Deus, pela sua Palavra.
A última linha do Evangelho é belíssima: cada ser humano verá a salvação. Cada ser humano? Sim, exatamente isto. Deus quer que todos sejam salvos, e não se deterá diante de ravinas ou montanhas, nem sequer perante a tortuosidade do meu passado ou dos cacos da minha vida.
Uma das frases mais impressionantes do Concílio Vaticano II afirma: «Já que por todos morreu Cristo (32) e a vocação última de todos os homens é realmente uma só, a saber, a divina, devemos manter que o Espírito Santo a todos dá a possibilidade de se associarem a este mistério pascal por um modo só de Deus conhecido» (Gaudium et spes, 22).
Cristo alcança todo o ser humano, todos os seres humanos, e o amor é a sua estrada. E não há nada genuinamente humano que não chegue ao coração de Deus.