O surto desta pandemia – a Covid-19 – recordou-nos que a fé cristã não é um antídoto contra a experiência do sofrimento, estando, por isso, permanentemente solicitada a pensar o fenómeno do sofrimento. Aí, nesse balbuciar diante do mistério, imerge a inquietante pergunta: Quem é o Deus no qual se baseia a minha fé e como é que Ele se relaciona com a história?
1. Onde estás, Deus-que-não-és-senão-Amor?
Neste turbilhão de acontecimentos e no desconcerto das emoções, que diz Deus? Porque é que não Se pronuncia? Porque é que não desfaz as dúvidas? Se a revelação cristã radicaliza a afirmação de que o ser humano não pode salvar-se a si mesmo, anunciando-nos que nasceu para nós um Salvador (cf. Lc 2,11), onde está Ele quando a humanidade sofre?
Assim, com Epicuro a questão adensa-se: «ou Deus quer tirar o mal do mundo, mas não pode; ou pode, mas não o quer tirar; ou não pode nem quer; ou pode e quer. Se quer e não pode, é impotente; se pode e não quer, não nos ama; se não quer nem pode, não é o Deus bom e, por isso, é impotente; se pode e quer – e isto é o mais certo – de onde, então, vem o mal real e porque não o elimina?» (1).
É compreensível que, em situações como a que vivemos, o ser humano interrogue Deus, por mais diversas que sejam as nomeações. Nesta tensão habitada pela ausência que insinua uma nova forma de presença, entre o dizer sem ofender o mistério, recordo a espantosa frase vertida pelo Miguel Torga: «Deus. O pesadelo dos meus dias. Tive sempre a coragem de O negar, mas nunca a força de O esquecer» (2). Por isso, como sugere E. Salmann, «deveremos ouvir o coro imenso dos gritos, das orações e das blasfémias, das invocações e das conclusões filosóficas, a gaguez e a eloquência que acompanham esta palavra» (3).
Viver à escuta de interrogações mantém-nos vigilantes no caminho, sem procurar respostas formatadas que paralisam e fecham as portas a novas possibilidades. As perguntas são o fio de ouro no meio da nossa quinquilharia que nos mobilizam a procurar sem nos cansarmos. Assim, José Augusto Mourão, com acerto, questiona: «onde estás, Deus libertador / que nos perguntam por ti e não te vemos? / Deus escondido, onde estás? / onde devemos esperar-te, Deus da surpresa? / onde apareces, Deus amigo dos pobres, / onde te acharemos, Deus libertador?» (4).
A situação pandémica motivou o surgimento de guias de oração que suplicam uma intervenção de Deus para acabar com o flagelo da Covid-19, pressupondo que, se insistirmos com fé, Ele atenderá o nosso pedido. Porém, impõe-se a questão: mas se Deus pode evitar essa adversidade, por que não o fez antes? Afinal, terá Deus uma varinha mágica para evitar o nosso sofrimento?
De facto, diante do sofrimento, preferíamos que Deus fosse um solucionador de problemas. Alguém que eliminasse o sofrimento num gesto mágico que, de uma forma ou de outra, abala todo ser humano. Neste sentido, é importante esclarecer que Deus não envia pandemias - nem acidentes, nem dor, doença ou sofrimento - para nos ensinar alguma verdade! Nem Deus envia sofrimentos ao mundo nem tão-pouco os permite, porque tal implicaria acreditar que, podendo evitá-los, Ele não o faz. Não será contraditório com essência de Deus-que-não-é-senão-Amor pensar que Ele pode evitar o sofrimento, mas, por uma suposta ‘razão misteriosa’, não o faz?
A fé cristã não pode jamais abandonar a realidade do sofrimento, nem melificar a inconveniente questão: Como falar de Deus diante da abismal história do sofrimento no mundo? Não será admissível uma superação deste fenómeno que signifique aceitação da sua inevitabilidade ou necessidade, mas, antes de tudo, uma atitude de radical manifestação do absurdo e inaceitável presente no fenómeno do sofrimento, em relação à própria Criação e ao seu Criador.
Portanto, o ser humano atingido pelo sofrimento, reconhecendo que tal não pertence a Deus, sente direito de interrogar, fazendo do sofrimento uma questão que ao próprio Deus coloca (5). Ora, no ato de questionar, além de uma questão em Deus ou um questionamento ao próprio Deus, não haverá uma presença de Deus?
2. Conduz-nos Deus, de questão em questão
O cristão deverá ser aquele que transporta todas estas acutilantes inquietações até Deus. Numa tendência que afirma a impossibilidade da presença de Deus no sofrimento, inclinemo-nos para a direção oposta: onde está o sofrimento, aí está Deus, sem que Ele lhe dê sentido ou o justifique. Deste modo, é possível estabelecer diferentes trajetos sobre o sofrimento que os seres humanos seguem e, ao mesmo tempo, sobre Deus, não por acréscimo, mas por legítima inerência (6).
Assim, assistimos, neste processo de questionamento acerca da inconveniente questão do sofrimento, a uma essencial mutação do próprio ato de questionar. De facto, a partir de uma atitude de questionar, contra Deum, que considera Deus como responsável pelo sofrimento, ou numa linha contrária, a atitude pro Deo, a defesa de Deus, queremos abeirar-nos de um questionar, in Deo, que procura colocar a questão ao próprio Deus, passando por uma pergunta ad Deum, o ser humano envolve-se num diálogo com Deus, numa interrogação que, cum Deo, é colocada ao próprio sofrimento.
2.1.Contra Deum
A primeira, mas também a mais antiga e universal atitude de protestar contra o problema do sofrimento, baseia-se na culpabilização de Deus, responsabilizando-o pelo sofrimento. Nesta perspetiva, Deus é encarado como responsável direto ou indireto porque não podia ou queria impedir o sofrimento. Assim, não existe ou não pode existir, a menos que o consideremos malvado ou inútil.
2.2. Pro Deo
Numa linha contrária à anterior, mas tão clássica e tradicional como a primeira, que surge, não raras vezes, como discurso dos crentes provocado pelo contra Deum, consiste na defesa de Deus diante da incómoda existência do sofrimento. É a atitude pro Deo, que procura inocentar Deus de toda a responsabilidade do sofrimento. Ao considerar esta perspetiva, logo transparece intenção de esta querer inocentar Deus demasiado rápido. Será necessário fazê-lo tão rapidamente, dando a sensação de que não queremos de modo algum ver Deus na questão do sofrimento?
Aliás, o Deus de Job, de Jacob e de Jesus nunca deu sinais de predileção por discursos melífluos. Como tal, esta atitude não associa a si o grito do ser humano, a quem Deus reconhece a possibilidade de, num primeiro momento, lhe protestar. Este grito, em forma de protesto, que o ser humano dirige a Deus talvez manifeste uma maior confiança do que a daquele que empreende silenciar apressadamente esse lamento.
As duas atitudes anteriores eliminam Deus do problema do sofrimento. A forma de pôr a questão de Deus acaba, paradoxalmente, por exclui-lo: interroga-se Deus, por vezes mesmo com violência, mas sempre à distância, sem nunca O implicar verdadeiramente na questão. Assim, faz-se o exercício de acusar ou defender Deus, mas, enquanto o fazemos, desprezamos a questão do sofrimento, que era precisamente o que estava em reflexão.
2.3. In Deo
Na verdade, crer em Deus é acreditar na sua presença, no próprio questionar desta tremenda interrogação, afirmando que Ele não tem que ser excluído. É sobretudo acreditar na manifestação de Deus na questão: passar a questão por Deus, colocá-la em Deus, in Deo.
Deus-em-si não está inserido na questão do sofrimento porque Ele não é a sua causa, mas este Deus-em-si, fazendo-se Deus-para-nós, fez do sofrimento a sua causa: Ele tomou sobre si esta lancinante questão e, a partir de então, podemos vê-la recolocada n’Ele. Aliás, os temas do Cordeiro de Deus e da Descida aos Infernos, limitando-nos somente a estes, recordam-nos que Deus não procurou ser poupado a tais provações.
2.4. Ad Deum
Assim sendo, o ser humano reconhece o seu direito de colocar as inconvenientes questões acerca do fenómeno do sofrimento em Deus. Todavia, como poderá fazê-lo? O teólogo A. Gesché, que fomos seguindo atentamente, afirma que a resposta a esta inquietação é-nos manifestada por três testemunhas privilegiadas, Jacob, Job e Jesus, que colocaram a questão em Deus: questio ad Deum. As três referidas testemunhas dirigiram-se a Deus: não somente para interrogar ou para lhe rezar, mas também para exprimir a sua repulsa ou aceitação, sempre num contínuo diálogo com Deus. Esta é uma atitude que jamais se detém no fenómeno do sofrimento, mas, inversamente, faz dele uma pergunta a Deus, mutando o paradigma do “ele” (presente na atitude contra Deum e na pro Deo) para o “tu”, ou seja, da discussão do monólogo interior (eu discuto sobre Deus) à discussão de diálogo (eu falo a Deus do mal).
2.5. Cum Deo
Neste sentido, a teologia, após adotar a lógica da fé (in Deo descobre o ad Deum) como a possibilidade e o direito do crente interpelar Deus. Esta atitude faz-nos descobrir que a questão é de Deus, não somente uma desconcertante questão do ser humano. O fenómeno do sofrimento surpreendeu toda a Criação; por isso, não pode suscitar qualquer compromisso, senão ser prontamente combatido. Ora, neste processo, o ser humano descobre que o combate que trava, visto ser o mesmo de Deus, trava-o com Deus, cum Deo. Aliás, recordando as três testemunhas acima mencionadas, poderemos constatar a atitude cum Deo.
Após escutar o impressionante procedimento de Job, Deus afirmará que ele, ao contrário dos seus amigos, colocou bem a questão. Logo depois de reconhecer e admitir a defesa de Jacob, Deus chamá-lo-á por um novo nome que assinalará e santificará o seu combate (Israel, porque lutaste com Deus – cf. Gn 32,29).
Portanto, o grito do ser humano não é somente legítimo como também coincide com o próprio clamor de Deus, mas também possibilita a Deus manifestar-se absolutamente como é: Aquele que se opõe ao sofrimento. Assim sendo, o fenómeno do sofrimento não poderá ser nunca mais uma objeção contra Deus, porque Ele mesmo se converteu em objeção contra esse acutilante fenómeno.
3. O sofrimento de Deus
Neste sentido, recusando os falíveis discursos de justificação, a única resposta possível ao sofrimento é decisivamente uma declarada oposição, na certeza de que este combate não é somente meu, é também o de Deus.
O clamor do ser humano coincide com o de Deus, porque Ele mesmo se confronta com o fenómeno do sofrimento. Assim, Deus, em Jesus Cristo, comove-se com o sofrimento, padecendo com as vítimas, sendo que Ele mesmo se faz vítima. Ora, assim sendo, o inadiável discurso teológico sobre o sofrimento pode assumir a abertura à afirmação sobre o sofrimento do próprio Deus, revelado e presente, como Deus crucificado, em Jesus Cristo.
Portanto, Deus, em Jesus Cristo, vem ao nosso encontro, sente as nossas dores e acompanha-nos amorosamente no nosso sofrimento. Todavia, o sofrimento não é uma objeção contra Deus, porque não é uma afeição passiva, mas um deixar-se afetar ativo. Se Deus se compadece, tal não significa a sua desdivinização, nem a divinização do sofrimento. Deus sofre não por necessidade, mas porque aceita livremente sofrer, mediante uma decisão determinada pelo Amor, pois, como notou Dostoiévski, é o amor que «salva tudo» (7). Assim, só um «Deus sofredor pode salvar-nos» (8).
No romance O idiota, Dostoiévski põe nos lábios do ateu Hipólito a seguinte pergunta ao príncipe: É verdade que o príncipe disse, uma vez, que a beleza salvaria o mundo? Meus senhores – gritou bem alto – o príncipe afirma que a beleza salvará o mundo! Que beleza salvará o mundo? O príncipe fez silêncio (9). A pergunta fica em suspenso, mas o silêncio do príncipe, em profunda atitude de compaixão junto de um jovem de 18 anos, que está prestes a morrer de tuberculose, indicia que a beleza que salvará o mundo é o amor que partilha a dor (10).
(1) Transmitido por Lactantius, De ira Dei, 13,9 (PL 7, 121).
(2) Miguel Torga, Diário XIV (Coimbra:1984).
(3) E. Salmann, Contro Severino. Incanto e incubo del credere, Piemme, Casale Monferrato 1996, 195.
(4) José Augusto Mourão, O Nome e a Forma (Lisboa: Pedra Angular, 2009), 23-24.
(5) Cf. João Duque, “O mal – Deus em questão (?)”, Didaskalia, nº 29 (1999): 324- 330.
(6) Este itinerário é inspirado na proposta do teólogo belga Adolphe Gesché, El mal – El hombre (Salamanca: Sígueme, 1995), 20-41.
(7) Fiódor Dostoiévski, Os Irmãos Karamazov (Lisboa: Presença, 2009), 71.
(8) Dietrich Bonhoeffer, Resistencia e sumisión. Cartas y apuntes desse el cautiverio (Salamanca: Sígueme, 2008), 207.
(9) Cf. Fiódor Dostoiévski, O idiota (Lisboa: Presença, 2001), 396.
(10) Carlo Maria Martini, Quale bellezza salverà il mondo? (Milão: Centro Ambrosiano, 1999), 11.
Obra de José Rodrigues (det.) | Vila Nova de Cerveira | © P. Joaquim Félix