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A imagem do «caminho» na Bíblia

A quaresma litúrgica – que de novo este ano abre caminho no turbilhão de uma quarentena pandémica – tem como traço distintivo fazer uma catequese mistagógica, uma iniciação à fé cristã no interior de uma caminhada que passa pelo deserto do sofrimento e desagua na Páscoa eterna da alegria. Adotando a imagem do caminho, a liturgia sugere o necessário crescimento da fé e da esperança que se traduzem em atos de amor. Nisso deixa-se orientar pelas sagradas Escrituras judeocristãs, que, numa longa tradição, já recorrem frequentemente à imagem do caminho, à sua intensidade antropológica, cultural e espiritual, para exprimirem o desenvolvimento da fé bíblica.



Narrar que «se pôs a caminho com eles» significava que o Jesus que tinha caminhado na história dos humanos continuava a caminhar com eles. Pondo Jesus a conversar com eles no decorrer de uma caminhada, Lucas sugeria que a fé tem ritmos longos: o fermento leva tempo a levedar, a árvore leva tempo a crescer, o fruto leva tempo a amadurecer



* A história do povo bíblico abre mesmo com a partida para um longo caminho: «Téraḥ tomou o seu filho Abrão… e saíram juntos de Ur dos caldeus para se dirigirem para Canaã» (Génesis 11,31). Faz vir Abraão do extremo sul da antiga Mesopotâmia, conduzindo-o até Haran, no norte, trazendo-o para Canaã e fazendo-o ainda descer ao Egito antes de o fazer sedentarizar em Hebron, a Ocidente do Mar Morto, numa migração épica de cerca de 3500km. Abraão calcorreou todo o antigo Próximo Oriente, mais do que os refugiados dos nossos dias. Aparentemente é um rasgo de geografia física. Na realidade, é antropologia social, um pedaço de história humana: «O Senhor disse a Abraão: deixa a tua terra, a tua família e a casa do teu pai e vai para a terra que Eu te indicar. Farei de ti um grande povo, abençoar-te-ei…» (Génesis 12,1-4). Note-se que Abraão é desinstalado, desacomodado e posto em movimento pela Palavra de Deus. O conforto da Palavra que o anima é o único que leva consigo na trouxa de peregrino. Abraão – antes de Ulisses e num plano diferente – é com ele figura arquetípica do homem viandante. Ambos são paradigma da consciência humana no interior da metáfora de uma longa viagem que responde a um chamamento divino, também a de Ulisses, que, sem saber que estava em fim de viagem, pede à deusa Atena: «Diz-me se é verdade que cheguei à minha pátria amada» (HOMERO, Odisseia, 23, 329). A súplica de Homero ao mundo divino intuía que a verdade última do nosso ser e o sentido radical da nossa vida só pode ser confirmado por uma voz transcendente. Na Odisseia de Ulisses o desejo alimenta o regresso a casa, à própria terra, ao interior de si próprio. No bíblico Abraão, o futuro era uma terra que lhe era prometida mas como meta desconhecida, como transcendente, segundo o entendimento da carta aos Hebreus: «pela fé Abraão partiu sem saber para onde ia; pela fé, peregrinou como estrangeiro para a terra prometida» (11,8-9). De facto, Abraão confessa-se «peregrino e forasteiro sobre a terra» (Hebreus 11,13 e Génesis 23,4). O caminho da fé tornou-o peregrino de terra em terra, à procura do destino para onde Deus o mandava.



Viver de fé é uma aventura por caminhos conhecidos mas também por caminhos desconhecidos, tema recorrente do livro dos Números, onde o caminho se tornou peregrinação



E desde então, as tribos de hebreus e depois o povo de Deus viviam mergulhados no espírito da promessa, entendida como feita pelo «Deus do pai» da tribo: «Foi dirigida a palavra do Senhor a Abrão numa visão nestes termos: “Olha para o céu e conta as estrelas, se as podes contar… Assim será a tua descendência… Eu sou o Senhor que te tirei de Ur dos caldeus para dar-te esta terra em propriedade…”. O Senhor fez uma aliança com Abrão nestes termos: À tua descendência darei esta terra, desde o rio do Egito até ao rio grande, o rio Eufrates» (Génesis 15,1-19). Israel aparece como um povo voltado para o futuro, procurando viver a promessa no presente eterno de Deus: o futuro era a alma do seu presente, o que fazia com que o desejo das coisas mais importantes se exprimisse no futuro e a realização se atribuísse a Deus: «tomar-vos-ei de entre as nações, recolher-vos-ei de todos os povos e levar-vos-ei à vossa terra» (Ezequiel 36,24). A fé é como a vida: tem um «partir», pode ter um «voltar». Em Abraão, a fé põe-no a partir de casa; em Ulisses, a fé fá-lo voltar a casa. Na viagem de Abraão, o grande protagonista – invisível – é Deus, que o chama e lhe garante fidelidade comprometendo-se com ele por uma aliança e desafiando-o à fidelidade correspondente. Em virtude desta espiritualidade, o sentido da viagem marcou indelevelmente a convicção do Homem bíblico, de que as suas origens estavam ligadas a um movimento migratório. Tão fundo calava essa convicção que acabou por cristalizar na consciência comunitária e no credo do Israel bíblico: «O meu pai era um arameu nómada [referindo-se a Jacob] e desceu ao Egito» (Deuteronómio 26,5).



Para os autores do Novo Testamento, todos os caminhos do Antigo vão dar a Jesus. O caminho que ele fez aos doze anos com os pais a Jerusalém pela festa da Páscoa judaica (fez dele o jovem peregrino, aprendiz de todas as peregrinações ao coração humano



* Precisamente no Egito foi sendo aberto outro caminho, traçado em forma de êxodo libertador, feito pelos hebreus sob a liderança de Moisés, fugindo da terra da escravidão para a terra da liberdade. Essa epopeia, cuja narração enche quatro quintos do Pentateuco, deixa à vista que o conjunto de tribos aparentadas, até ali existentes em Canaã e no Egito, se tornou o povo de Israel num êxodo migratório até à «terra prometida». E, porque também atravessa o mar, encontra um paralelo na épica Eneida de Virgílio, onde o protagonista, depois da perigosa travessia do Mediterrâneo, aporta no prometido Lácio.

No êxodo bíblico, o caminho era o deserto, sem caminhos e sem GPS! Os críticos e o povo só viam deserto: propunham voltar para trás, de novo para o Egipto, para o conhecido e seguro. Moisés, ao contrário, apontava o caminho do futuro e a meta da «terra prometida», o sempre mais, o sempre melhor, na procura contínua do novo. Esse caminho não permitia olhar para trás, porque o atrás já era passado. Viver de fé é uma aventura por caminhos conhecidos mas também por caminhos desconhecidos, tema recorrente do livro dos Números, onde o caminho se tornou peregrinação: «O teu povo empreendeu um caminho maravilhoso» (Sabedoria 19,5). A peregrinação pelo deserto ensinou que quem se põe a caminho tem um rumo, não anda para trás nem à deriva, como pensava Rainer Maria Rilke: «Vivendo, olhei para diante, confiei. Quem confia permanece» (Citado por Ll. DUCH – J.-C. MÈLICH, Antropología de la vida cotidiana, 2/2; Madrid 2009, p. 153). A experiência do deserto, do vazio e da condição de peregrino ajudou a redescobrir a alegria de crer e o valor do essencial para a vida (PAPA FRANCISCO, Evangelii gaudium, 86), com mais esta lição: se é verdade que o mais desejado do caminho é a chegada, não se pode esperar pelo fim do caminho para viver bem ou melhor ou o mais importante da vida. A essência da viagem de Ulisses não está só no aportar na sua pátria: está também na superação de mil perigos, obstáculos e provas. A vida é caminho, é o caminho: já está no caminho, que às vezes é travessia do deserto, individual ou coletivo (como se percebe nesta pandemia). Caminhar é que é viver. A vida faz-se ao caminhar.



Modelo de caminhante é também Maria de Nazaré que, tendo caminhado fisicamente com Jesus no seio para levar a promessa da Vida aos familiares mais próximos, foi peregrina da fé à medida que ia aprofundando o mistério de Jesus ao longo da vida



* Fortemente simbólico é o caminho andado pelo carmelita profeta Elias, desde o norte de Israel, «quarenta dias e quarenta noites até ao monte de Deus, o Horeb», depois de confortado pelo “anjo do Senhor”, que «lhe disse: levanta-te e come, pois o caminho que tens à frente é muito longo» (1Reis 19,3-8). Era uma viagem às fontes do êxodo paradigmático, desde a meta até onde ele tinha tido o momento mais intenso: a fundação do povo de Deus e a aliança de Deus com o povo. Era o caminho para o silêncio do Sinai e para os acontecimentos fundadores da narrativa da fé bíblica; era o caminho para a interioridade e para Deus.

 

* Outro caminho é o de Babilónia para Jerusalém, um segundo êxodo, o do Israel exilado de volta à liberdade e à «pátria tão bela e perdida, lembrança tão cara e fatal», inspirador de cânticos novos e do voo do pensamento – «va, pensiero, sull’alli dorate» – de todos os escravos e estrangeiros para as suas origens.

 

* Para os autores do Novo Testamento, todos os caminhos do Antigo vão dar a Jesus. O caminho que ele fez aos doze anos com os pais a Jerusalém pela festa da Páscoa judaica (Lucas 2,41-52) fez dele o jovem peregrino, aprendiz de todas as peregrinações ao coração humano. O caminho feito por Jesus, da Galileia até Jerusalém, onde levou ao ponto culminante a obra da salvação humana, simboliza o caminho da sua vida, ao longo do qual, segundo Lucas, Jesus se foi revelando, ensinando, educando, realizando prodígios, acolhendo e integrando os desvalidos na sociedade, antes de fazer o caminho para o Calvário, carregado com a cruz do amor. Foi o caminho mais inclusivo, porque o sumo Excluído perdoou aos que o matavam (Lucas 23,34) e porque, «elevado da terra, atraiu todos a si» (João 12,32).



Os Atos dos Apóstolos falam desse caminho simbólico/real a ser percorrido pelos seguidores do Jesus que se autodefiniu como “Caminho”. Essa grande imagem deu mesmo nome ao movimento das primeiras comunidades cristãs, designadas “Caminho”



* Modelo de caminhante é também Maria de Nazaré que, tendo caminhado fisicamente com Jesus no seio para levar a promessa da Vida aos familiares mais próximos (Lucas 1,39-56), foi peregrina da fé à medida que ia aprofundando o mistério de Jesus ao longo da vida.

 

* Eternamente significativo é o caminho de dois discípulos para Emaús, em que «Jesus se pôs a caminho com eles», suscitando o regresso a Jerusalém (Lucas 24): o caminho da aldeia desconhecida para a cidade que era o centro dos acontecimentos políticos, sociais e religiosos de Israel, o caminho da desesperança para a alegria, da desolação para a vida nova, do pretérito imperfeito sem sentido (na opinião deles) para o futuro perfeito que proclamava a ressurreição do Senhor. Narrar que «se pôs a caminho com eles» significava que o Jesus que tinha caminhado na história dos humanos continuava a caminhar com eles. Pondo Jesus a conversar com eles no decorrer de uma caminhada, Lucas sugeria que a fé tem ritmos longos: o fermento leva tempo a levedar, a árvore leva tempo a crescer, o fruto leva tempo a amadurecer. No momento do «partir do pão» não teria havido condições para os discípulos reconhecerem Jesus vivo sem a caminhada da fé com que ele os conduziu através das Escrituras, repassando-as e reinterpretando-as. Ritmo longo! «Começando por Moisés e continuando por todos os profetas, explicou-lhes em todas as Escrituras o que a ele dizia respeito». Mas aqui o sentido definitivo do caminho está no final, no encontro que «reconheceu» Jesus «no partir e no repartir do pão», depois de ele lhes ter «falado no caminho e lhes ter interpretado as Escrituras… Voltaram a Jerusalém e… contaram o que tinha acontecido no caminho e como o tinham reconhecido no partir do pão» (Lucas 24,32-35).



Apesar das contrariedades e dos fantasmas que se nos apresentam nos caminhos da vida, impõe-se retomar diariamente o caminho, tomar iniciativas, enfrentar os imponderáveis e problemas de bordo, numa procura em que cada resposta se converte numa nova pergunta



* Os Atos dos Apóstolos falam desse caminho simbólico/real a ser percorrido pelos seguidores do Jesus que se autodefiniu como “Caminho” (João 14,6). Essa grande imagem deu mesmo nome ao movimento das primeiras comunidades cristãs, designadas Caminho. Paulo ia precisamente em perseguição de «seguidores do Caminho» (Atos 9,2; ver 18,25.25; 19,9.23; 22,4; 24,14.22), sem saber que estava a fazer o seu caminho para Jesus: «indo a caminho, perto de Damasco, de repente envolveu-o uma luz vinda do céu» (Atos 9,2-3). Pela luz a brilhar no caminho, aquele que tinha como estratégia excluir todos os cristãos enquanto seita a riscar do livro da vida, tornou-se o maior agente de inclusão depois de Jesus. E difundiu a adesão a ele empreendendo três deslumbrantes viagens principais, que nada ficam a dever às grandes epopeias clássicas, em coragem e ousadia, em desafio aos elementos da natureza, em enfrentar perigos por terra e mar, à procura da transcendência e para realização da felicidade humana.

Enfim, a imagem do caminho é uma constante da história da salvação e da espiritualidade bíblica para expressar a busca de Deus por meio da fé, o fio que liga Deus à história de Jesus e à história humana. É uma categoria hermenêutica para interpretar a história de cada crente à procura dos outros e das realidades últimas e definitivas.

 

«Caminhante, não há caminho: o caminho faz-se ao andar!» Compreendemos este alerta do poeta Antonio Machado e as aberturas que ele proporciona: que, apesar das contrariedades e dos fantasmas que se nos apresentam nos caminhos da vida, impõe-se retomar diariamente o caminho, tomar iniciativas, enfrentar os imponderáveis e problemas de bordo, numa procura em que cada resposta se converte numa nova pergunta. Mas, em perspetiva cristã, também podemos pensar que há Caminho: é o que se conhece ao andar, «o Caminho que pela Verdade leva à Vida» (João 14,6), descobrindo, especialmente na quaresma, que «estreita é a porta e apertado o caminho que conduz à vida» (Mateus 7,14).


 

Armindo dos Santos Vaz
Biblista, Professor catedrático jubilado da Faculdade de Teologia da Universidade Católica Portuguesa
Imagem: Nik_Sorokin/Bigstock.com
Publicado em 22.02.2021 | Atualizado em 07.10.2023

 

 
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