Há qualquer coisa que não está bem na nossa maneira de ver as coisas, escreve Vinícius de Moraes em “Para viver um grande amor”. «Sofre o mundo da transformação dos pés em borracha/, das pernas em couro/, do corpo em pano e da cabeça em aço» - escreve Vinícius num passo citado pelo papa na exortação apostólica “Querida Amazónia”. «Sofre o mundo da transformação da pá em fuzil, do arado em tanque de guerra, da imagem do semeador que semeia na do autômato com seu lança-chamas, de cuja sementeira brotam solidões.»
A realidade, de qualitativa, portadora de um sentido misterioso, de uma inesgotável maravilha, torna-se apenas quantitativa, matéria inerte a medir, comprar, vender, consumir e destruir. Só a poesia, «com a humildade da sua voz, poderá salvar este mundo». Não é um apelo sentimental, mas um conselho de método. A poesia é uma forma de conhecimento, intuitiva, orgânica, sintética, alternativa às análises perpétuas de um racionalismo abstrato que secciona coisas e pessoas como matéria inerte, como na autópsia de um cadáver, em vez de se deixar investir pela sobreabundância da realidade, que supera por todos os lados a capacidade de compreender, o alcance da mente humana.
Outros célebres versos, também presentes na “Querida Amazónia”, podem fazer-nos compreender melhor a radical diversidade desta aproximação ao conhecimento: «Aqueles que pensavam que o rio fosse uma corda para jogar, enganavam-se/ O rio é uma veia muito subtil sobre a face da terra. (…)/ O rio é uma corda onde se agarram os animais e as árvores./ Se o puxarem demais, o rio poderia rebentar./ Poderia explodir e lavar-nos a cara com a água e com o sangue», escreve Juan Carlos Galeano.
“Os que creem” ecoa a irónica e profundíssima meditação de TS Eliot em “The dry selvages”, terceiro dos “Quatro quartetos”: «Não sei muito sobre deuses; mas penso que o rio/ é um poderoso deus castanho – carrancudo, selvático e intratável,/ Paciente até certo ponto, primeiro visto como uma fronteira;/ Útil, infiel, como transportador de comércio;/ Enfim só um problema para construtores de pontes./ Resolvido o problema, o deus castanho é quase esquecido/ pelos habitantes da cidade – sempre, ainda assim, implacável/ Mantendo as suas estações e iras, destrutivo, recordador/ do que os homens escolheram esquecer. Não honrado, não propiciado/ pelos adoradores da máquina, mas à espera, vigilante e à espera»."
Um rio nunca pode ser, apenas, um problema; é uma presença misteriosa, solene, portadora de vida, símbolo da misteriosa conexão de todas as coisas. «Rio das Amazonas,/ capital das sílabas d'água, pai patriarca, és/ a eternidade secreta/ das fecundações,/ chegam-te rios como pássaros», escreve Pablo Neruda em “Canto geral”, também citado na exortação apostólica.
«Num punhado de versos – comenta Daniele Gigli sobre a drástica redução cognoscitiva ilustrada em “Dry selvages” –, Eliot esboça a paradoxal condição que move a evolução humana, essa condição pela qual quanto mais o ser humano adquire capacidade técnica no habitar o mundo, tanto mais se arrisca a distanciar-se daquele sentimento elementar de si, daquela experiência de finita infinidade que do seu habitar o mundo intui e dirige o sentido».
Eis, então, no olhar das gerações que se sucedem, a passagem de uma humanidade aterrorizada pelo ser das coisas, e por isso a elas devotada, a uma humanidade tão hábil, tão presumivelmente dona de si e do mundo que habita, que procura continuamente seccioná-lo e dominá-lo. «Mas sob a ilusão da posse – continua Gigli – persiste em cada ser humano a perceção de uma inexorável alteridade das coisas, do seu terem sido dadas. Ainda que os seres humanos tenham optado por se esquecer, o deus castanho permanece atento e à espera, pronto a chamá-los à sua finitude, à pertença a um tempo e um lugar de que – por muito que os possam medir – não são donos, mas servos».
Obscuramente, confusamente, o ser humano sabe que o seu conhecimento, a sua limitada visão do mundo não chega para o tornar feliz. Preciso de alguém mais próximo de mim do que eu mesmo, de alguém que me ame como eu não sou capaz de amar, nem a mim próprio, diz, em síntese, a esplendida poesia de D. pedro Casaldáliga citada no documento: «Flutuam sombras de mim, madeiras mortas» - lê-se em “Carta de navegar (pelo Tocantins amazónico)” - «Mas a estrela nasce sem censura/ sobre as mãos deste menino, especialistas/ que conquistam as águas e a noite./ Bastar-me-á saber/ que Tu me conheces inteiramente,/ ainda antes dos meus dias».