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A sinceridade dos contos de fadas. “Capuchinho Vermelho” e “Branca de Neve” como exemplos

A experiência: diferenças entre vida e vida vivida (1)

Para procurarmos compreender o que está em jogo nos contos de fadas e, mais em geral, em qualquer ato humano autêntico de contar histórias, convém que partamos da distinção, que me parece fundamental, entre «vida» e «experiência». O traço mais evidente e incrível da vida é o seu fluir, inevitável e imparável: a “vida vive”, podemos dizer, e mesmo quando um ser vivo perece e deixa de viver, a vida não para, “continua a viver”. Por isso, a imagem do «fluxo» é totalmente apropriada para descrever aquele devir que, ainda que acompanhe tudo o que existe, é exaltado pela vida e como vida: é esta o lugar por excelência no qual o devir se revela em todo o seu tumultuoso dinamismo. Diante da mobilidade imparável de tal fluxo e do facto de a vida nunca se deter, diante da glória deslumbrante do devir enquanto vida, o ser humano apresenta-se como paragem, como descanso. O modo de ser do ser humano revela uma capacidade surpreendente de parar, de se distanciar: tem o poder de dar um passo atrás. É por este motivo que o modo de ser do ser humano nunca se esgota totalmente no facto de ser um ser vivo. Ele é capaz de parar, de se deter, de se separar do fluxo da vida, de se concentrar nos seus próprios passos e, assim, de concentrar a sua atenção em algo de particular. Por outras palavras, o sujeito humano, mesmo existindo e vivendo como qualquer outro ser vivo, é capaz de se deter, de não se deixar arrastar pela existência e pelo fluxo da vida: é capaz de refletir sem se deixar con-fundir.

É por meio de tal paragem reflexiva que se acede ao campo da «experiência». O ser humano nunca se limita a existir e a viver. Como sujeito que é, faz a experiência de existir e de viver; detem-se para re-tomar e para re-fletir sobre a existência e sobre a vida. É fazendo assim que passa da «vida» à «vida vivida». A este propósito, costuma dizer-se, justamente, que a experiência nunca é redutível ao imediato, ao instante da sensação, ou que a ordem da experiência excede sempre a ordem do mero sentir, complexificando-o. Seguindo nesta direção, devemos afirmar que o sujeito é o lugar onde se produz uma fratura ou uma contração, uma «desordem» dentro da «ordem» homogénea da vida. Se se preferir, o sujeito é um ponto de fuga daquela que se pode definir como a «vida nua» (2). Tudo isto acontece através de um movimento da “re-flexão”: a experiência é o acontecimento que permite ao sujeito humano evadir-se da circunstância que o fixa à «vida nua», ou seja, é por meio dele que ultrapassa aquele limite (“ex-peiras”) que o faz ser sempre e apenas indivíduo, ser vivo, para o fazer percorrer o caminho exigente e dramático que o constitui sujeito.



Eis por que motivo a «grande/verdadeira literatura» se revela «grande/verdadeira»: as obras que a constituem nunca procuram desdramatizar ou simplificar a trama experiencial subjetiva para irem ao encontro dos gostos dos leitores, das expetativas dos eleitores ou das exigências do mercado



O termo «experiência» deriva de dois verbos gregos: “peiros”, que significa atravessar, passar através de, e peirào, que significa tentar, provar a fazer; existe ainda o termo “peiria”, que significa tentativa, prova (“empeiria” significa, portanto, experiência ou conhecimento ou, muito simplesmente, capacidade).  De um certo ponto de vista, o latim enriqueceu essa noção, uma vez que, no termo “ex-perior”, “perior” implica a noção de perigo, de prova, de alguma coisa com a qual nos medimos e, sobretudo, através da qual somos postos à prova. Assim, na ideia de experiência está presente este aceno à passagem e à prova, ao trânsito e ao perigo. «Fazer experiência» significa passar por onde ainda não se tinha passado. Neste sentido, a experiência, mais do que «ser feita» pelo sujeito, é aquilo que «faz» o sujeito. É de dentro da experiência que o sujeito emerge. É nela que «é feito», forjado enquanto sujeito. Martin Heidegger captou com clareza este traço quando precisou:

«Fazer experiência de algo, seja de uma coisa, de um ser humano ou de um deus, significa que esse algo nos atropela, nos vem ao encontro, chega até nós, nos avassala e transforma. "Fazer" não diz aqui de maneira alguma que nós mesmos produzimos e operacionalizamos a experiência. Fazer tem aqui o sentido de atravessar, de sofrer, de receber o que nos vem ao encontro, harmonizando-nos e sintonizando-nos com ele. Algo se faz, ocorre, acontece.» (3)

Então, o que é que acontece quando se passa da «vida» à «vida vivida»? O que é que acontece dentro do campo da experiência? Uma vez que a ordem da «vida vivida» nunca coincide com a ordem da «vida nua», remete sempre para aquilo que nos perturba e que nos transforma? Entendo que Ernest Cassirer respondeu com precisão a esta questão:

«[O homem] já não vive num universo puramente físico, mas num universo simbólico. A linguagem, o mito, a arte e a religião são partes deste universo. São os vários fios que tecem a rede simbólica, a teia emaranhada da experiência humana. […]. Já não é dado ao homem enfrentar imediatamente a realidade; não pode vê-Ia, por assim dizer, face a face. A realidade física parece retroceder proporcionalmente, à medida que avança a atividade simbólica do homem. Em lugar de lidar com as próprias coisas, o homem, em certo sentido, está constantemente conversando consigo mesmo […]. Tanto na esfera teórica quanto na prática, a situação é a mesma. Nem mesmo nesta última, o homem vive num mundo de fatos indisputáveis, ou de acordo com suas necessidades e desejos imediatos. Vive antes no meio de emoções imaginárias, entre esperanças e temores, ilusões e desilusões, em seus sonhos e fantasias.» (4)

O ser humano, enquanto indivíduo vivente, obedece às leis da vida, mas, enquanto sujeito humano, habita essas leis dentro de uma «casa simbólica» desassossegada pela «imaginação, entre medos e esperanças, ilusões e desilusões, fantasias e sonhos». A experiência humana nunca é configurável como um espaço, como um uni-verso feitos de coisas e de factos. É, antes, um lugar, um multi-verso posto à prova pelos possíveis (propósitos, projetos, esperanças, sonhos, expectativas, etc.) e pelos fantasmas gerados pela imaginação (medos, fantasias, sentimentos de culpa, remorsos, etc.) de um sujeito que, desassossegado por um desejo que não pode reduzir às necessidades próprias de qualquer ser vivo (5), acaba por transformar cada coisa e cada facto naquilo que humanamente nunca é só uma coisa nem só um facto.  



Ainda que, hoje, se considere que se destinam sobretudo aos mais pequenos, os contos de fadas não são histórias para crianças



O ato de narrar e a literatura

A distinção entre «vida» e «vida vivida», com o consequente reenvio para a ideia de experiência, ajuda a compreender o sentido do ato humano de narrar, em geral, e da literatura, em particular. Narrando, o ser humano faz ressoar alguns temas da sua experiência subjetiva e traz à luz alguns traços da «trama emaranhada» que constitui a carne da própria experiência de vida. Neste sentido, enquanto narra, o ser humano também se narra, isto é, revela-se segundo um modo de ser que não é simplesmente aquele de um outro qualquer ser vivo. Por outras palavras, podemos afirmar que qualquer palavra que o sujeito use para contar uma história está, ao mesmo tempo, a contar a sua história. Essa palavra é, ao mesmo tempo e inevitavelmente, uma palavra que o narra, que é significante.

O ser humano narra para dar, contemporaneamente, voz e forma à sua própria experiência. Como já tentei esclarecer, a experiência nunca se esgota no conjunto das reações que o seu organismo, enquanto indivíduo vivo, põe em ato, diante de estímulos que lhe vêm do ambiente envolvente, do circuito funcional em que vive. A experiência, convém insistir, não é constituída por um conjunto de atos, mas por um sistema de gestos, sendo que estes trazem sempre consigo, como se estivessem grávidos, as marcas dos sonhos e das esperanças, dos temores e dos medos, das incertezas e das perplexidades que inevitavelmente acompanham qualquer sujeito quando responde (convém ter presente que responder não é reagir) àquilo que lhe vem ao encontro na vida. Por isso, todo o homem e toda a mulher, na medida em que são um sujeito único e não um indivíduo genérico, revelam-se «intérpretes» e não simplesmente um «executor» ou «atualizador» das potencialidades presentes na vida; são um «escritor» e não simpresmente um «escrivão», ainda que, como é óbvio, nem todos os seres humanos transformem o ato de narrar numa profissão que se oriente para a publicação de contos e de romances.

Avanço a seguinte hipótese: A «grande literatura», ou, mais corretamente, a «verdadeira literatura», é o lugar, o «depósito», onde são decantados e salvaguardados os testemunhos que dizem respeito a alguns aspetos essenciais, a algumas vontades fundamentais da experiência humana. É em relação à ideia de experiência que interessará compreender a afirmação de Roland Barthes, segundo a qual a literatura «sabe muito sobre os homens» (6), ou seja, aquilo que a literatura sabe sobre os seres humanos é precisamente que a sua vida nunca é simplesmente «nua», uma vez que não podem deixar de a viver dentro da «trama emaranhada» de uma experiência que, como vimos, é sempre «constitutivamente subjetiva»: está sujeita a sinais, a sonhos, a fantasmas, a medos, a remorsos, a expectativas, a imaginações, a esperanças, a ilusões, a propósitos, a sentimentos de culpa, etc. Eis por que motivo a «grande/verdadeira literatura» se revela «grande/verdadeira»: as obras que a constituem nunca procuram desdramatizar ou simplificar a trama experiencial subjetiva para irem ao encontro dos gostos dos leitores, das expetativas dos eleitores ou das exigências do mercado.  



Para que o lobo/o mal vença, afirmando-se, desse modo, como o horizonte da experiência humana (a transformação do mundo inteiro em «bosque»), é necessário que haja alguém a responder-lhe, a corresponder-lhe, a ir-lhe ao encontro e a escolhê-lo. Ora, esta eventualidade, é bom reconhecê-lo, não é remota, dado que o lobo/o mal é atraente e tem fascínio



As razões pelas quais se decide escrever uma história e publicar um romance são praticamente infinitas. Há quem escreva para dar voz ao que sente «no íntimo da alma», convencido de que essa interioridade merece alcançar o exterior, o «grande público»; há quem escreva, porque acha que deve comunicar uma determinada mensagem aos leitores; há quem escreva para contar a história da própria vida e/ou da própria família, com a convicção de que vale absolutamente a pena; há quem escreva para defender uma causa ou uma ideia; há quem escreva por amor à arte e à beleza; há quem escreva porque se sente no dever de deixar para a posteridade uma sua marca; há quem escreva para curar a própria alma e consolar os aflitos; há quem escreva simplesmente para ter sucesso e tornar-se famoso. Pode afirmar-se que, na maior parte dos casos, quem escreve, esperando conseguir publicar o «próprio romance», o faz movido pelo impulso de uma necessidade incontrolável de se exprimir (Paul Valéry afirmava que a maior parte dos pretensos escritores não tem propriamente nada de novo a dizer, embora deseje ardentemente dizê-lo a todos). Eis por que jornalistas, magistrados, atores, políticos, futebolistas, apresentadores televisivos e outros acabam por se autoconvencerem do dever que têm de escrever «um romance». Consequentemente, muita literatura nasce de «quem ama impressionar e deixar-se impressionar», de quem, repetindo-o continuamente, sobretudo se tem público à sua frente, declara «amar a cultura acima de qualquer outra coisa», acabando, desse modo, por transformar tudo em «máscaras e enganos», num «mudo de enganos e de trapaças mútuas». As tramas tornam-se retorcidas, inverosímeis. Transformamo-nos, não em testemunhas, mas em chacais da atualidade (os infortúnios mais dolorosos do dia a dia tornam-se a matéria procurada para histórias cuja única finalidade é a de intercetar a morbosidade dos leitores: trata-se das famosas histórias/romances que não hesitam por um momento a declarar, orgulhando-se disso, que «nascem de uma história verdadeira»). Nestes casos, as personagens tornam-se encarnações vazias de estereótipos; encandeiam-nos com a paixão pelas mensagens universais e pelos valores espirituais, mas deixam-nos cegos diante da esplêndida concretude dos particulares.

Contra tais tentações, a grande/verdadeira literatura permanece fiel à experiência subjetiva, mesmo quando e, talvez, sobretudo, independentemente de qualquer visão tranquilizadora, emerge e se impõe em toda a sua verdade inquietante.



«Os contos modernos para crianças evitam sobretudo os problemas existenciais, ainda que estes sejam questões cruciais para todos nós […]. As histórias «inócuas» não mencionam a morte ou a velhice, nem os limites da nossa existência ou o desejo de uma vida eterna. O conto de fadas, pelo contrário, confronta a criança sem rodeios com as exigências básicas do homem»



A palavra aos contos de fadas: uma ficção verdadeira

Os contos de fadas são manifestações da grande/verdadeira literatura. Como tal, mesmo sendo ficção, dão voz a alguns traços essenciais das vivências subjetivas da mais profunda experiência humana. Este tipo de ficção tem sempre uma relação estreita e direta com a verdade da experiência humana. Ainda que, hoje, se considere que se destinam sobretudo aos mais pequenos, os contos de fadas não são histórias para crianças. Há muito que os estudiosos o sublinharam:

«O conto de fadas não é uma história para as crianças. Durante séculos, foi um ingrediente importante das atividades de entretenimento dos adultos. Se é, hoje, entendido como produto típico da infância – existe, de facto, uma produção editorial especializada dirigida às crianças – isso é fruto de um processo de infantilização cujo início se pode identificar, de forma bastante precisa, nos exercícios de transcrição e de reelaboração dos irmãos Grimm, a partir dos primeiros anos do século XIX.» (7)

Por conseguinte, mesmo quando se dirigem a crianças ou quando são lidos às crianças, os contos de fadas falam sempre do ser humano, de alguns fios e nós que constituem a «trama emaranhada da experiência humana».

Ora, este «processo de infantilização» foi muitas vezes acompanhado por um «processo de simplificação»: por vezes, com o objetivo/desculpa de proteger as crianças de histórias julgadas demasiado «fortes» e de imagens julgadas demasiado «cruas», acabou por raiar a banalização. A edulcoração típica das transcrições e das encenações da Walt Disney parecem-me confirmar esta tendência nefasta para a desdramatização. Bruno Bettelheim confessou:

«[…] tornei-me profundamente desgostoso com muita da literatura destinada a desenvolver o espírito e a personalidade da criança, porque não estimula nem alimenta os recursos de que ela mais necessita, em ordem a enfrentar os seus difíceis problemas interiores […]. A esmagadora maioria da restante chamada «literatura infantil» tenta divertir ou informar, ou ambas as coisas. Mas a maior parte destes livros são tão frívolos de substância que muito pouco de significativo se aprende com eles […]. A pior caraterística destes livros para crianças é que eles burlam a criança naquilo que ela pode ganhar através da experiência da literatura: acesso a um sentido mais profundo e àquilo que é mais significativo para ela nesse estádio de desenvolvimento […]. Os contos modernos para crianças evitam sobretudo os problemas existenciais, ainda que estes sejam questões cruciais para todos nós […]. As histórias «inócuas» não mencionam a morte ou a velhice, nem os limites da nossa existência ou o desejo de uma vida eterna. O conto de fadas, pelo contrário, confronta a criança sem rodeios com as exigências básicas do homem […]. Contrariamente ao que acontece nos modernos contos para crianças, tanto a maldade como a virtude se encontram omnipresentes nos contos de fadas […]. O mal não deixa de ter os seus atrativos – simbolizado pelo poderoso gigante ou pelo dragão, pelo poder da bruxa, pela astuta rainha em Branca de Neve – e muitas vezes está temporariamente em ascendência.» (8)



A figura do «espelho» revela a sua absoluta centralidade: num certo sentido, a Rainha já o sabia (este final pertence à ordem da vida), mas é como se o tivesse esquecido, como se tivesse querido esquecê-lo. Porém, agora, emerge Branca de Neve que a obriga a recordá-lo (esta memória pertence à ordem da experiência da vida)



Os contos de fadas não temem a experiência humana. Pelo contrário, o seu maior mérito, como o de toda a grande/verdadeira literatura, é o de lhe dar testemunho, enquanto dá voz a verdades, a algumas verdades, que provêm do que há de mais profundo e inquietante na experiência subjetiva da vida humana. Neste sentido, «os contos de fadas não tentam descrever o mundo exterior e a “realidade”»; «nenhuma criança sã» acredita «que os contos de fadas descrevem o mundo realisticamente». «A “verdade” dos contos de fadas é a verdade da nossa imaginação e não a da causalidade normal» (9) de causa e efeito. Para clarificar a natureza desta «verdade» (experiencial), referir-me-ei brevemente, e já em forma de conclusão, a dois dos contos de fadas mais conhecidos.

Em O Capuchino Vermelho, quando o lobo pergunta à criança «onde mora a tua avozinha?», recebe dela, como resposta, uma descrição extremamente precisa do lugar para onde se dirige. Os estudiosos interrogaram-se sobre o sentido desta resposta e sobre a razão do lobo não devorar imediatamente a menina. «Mesmo uma criança de quatro anos não pode deixar de se interrogar sobre o que pretende Capuchinho Vermelho quando, em resposta ao lobo, lhe dá informações específicas para chegar à casa da avó. Qual é a finalidade de informação tão pormenorizada – interroga-se a criança – senão para ter a certeza de que o lobo encontrará o caminho?» (10). De facto, o que vem ao de cima no diálogo entre o Capuchinho Vermelho e o Lobo é o fascínio evidente que a menina – revela, por isto mesmo, que já não é simplesmente uma criança – demonstra pelo lobo.

«Toda a gente gosta de Capuchinho Vermelho, porque, embora virtuosa, tem tentações [...]. Se não houvesse dentro de nós alguma coisa que nos fizesse gostar do lobo mau, ele não teria qualquer poder sobre nós […]. Creio que é à equação inconsciente, criada pela criança, da excitação, violência e angústia sexuais que Djuna Barnes alude quando escreve: “As crianças sabem alguma coisa que não podem exprimir; gostam de Capuchinho Vermelho e do lobo na cama”.» (11)

Vemos como reemerge a distinção entre «vida» e «vida vivida». Avanço, assim, com a seguinte interpretação: o ensinamento essencial que se pode retirar deste conto é de que não basta seguramente um lobo para fazer o «bosque». O «bosque» mais perigoso é aquele que é definido, não tanto pela existência do lobo, do sedutor, ou pela presença do engano e da prepotência, mas pelo facto de que a lógica do lobo se consiga impor e que seja assumida como a única possível. Neste sentido, o «bosque» não é o lobo – no fundo, é uma das muitas criaturas que é possível encontrar num bosque – mas a «lógica do lobo» e, mais precisamente, a adesão pessoal à lógica do lobo. Por isso, para que um bosque se torne «o bosque» é preciso que, de algum modo, alguém se decida pelo lobo, que se entregue livremente nas suas mãos.

O conto de fadas, enquanto conto, nunca se limita a descrever a realidade, a vida,de forma realista. Neste sentido, não tem qualquer interesse em reafirmar o que já é evidente: o lobo existe, o sedutor existe, o engano e a prepotência existem, ou seja, o mal existe. Reconhecendo tal evidência, esta narração ficcionada deixa perceber alguma coisa infinitamente mais subtil e dramática a propósito da mais profunda experiência subjetiva da vida: para que o lobo/o mal vença, afirmando-se, desse modo, como o horizonte da experiência humana (a transformação do mundo inteiro em «bosque»), é necessário que haja alguém a responder-lhe, a corresponder-lhe, a ir-lhe ao encontro e a escolhê-lo. Ora, esta eventualidade, é bom reconhecê-lo, não é remota, dado que o lobo/o mal é atraente e tem fascínio.

 

Por outras palavras, é como se o conto não se limitasse a advertir: «atenção, existe o lobo» – no fundo, todos sabem que existe sempre um lobo no bosque, que existe violência e mal. De forma mais subtil, dá a entender: «atenção, não te entregues ao lobo, não te abandones ao seu fascínio». Talvez o Capuchinho Vermelho dê ao lobo o endereço exato do lugar para onde se está a dirigir, precisamente, porque quer ser encontrado por ele. Talvez o Capuchinho Vermelho goste do lobo. Confirmando as preocupações manifestadas pela mãe, a menina – convém repeti-lo, já não é uma menina – ficou fascinada pelo lobo, tal como acontece a qualquer pessoa que, apesar de todos os bons sentimentos que esteja pronta a encenar, se deixa efetivamente atrair pelo mal, ainda que, por palavras e racionalmente, não deixa de criticar e de recusar.



Cada conto de fadas é um espelho mágico que reflete certos aspetos do nosso mundo interior e os passos exigidos pela nossa evolução da imaturidade à maturidade. Para aqueles que mergulham naquilo que o conto de fadas pode comunicar, este torna-se uma lagoa profunda e mansa que, ao princípio, parece refletir somente a nossa própria imagem; porém, por trás desta, depressa descobrimos as lutas interiores da nossa alma



Em Branca de Neve, o que vê a Rainha de tão perturbador e de insuportável quando surge a criança, depois de ter feito sete anos? Para tentar responder, precisamos de parar brevemente diante da figura do «espelho mágico». A característica essencial deste espelho é a de dizer sempre a verdade. Ora, tratando-se de um espelho, essa verdade nunca será totalmente estranha à Rainha que se olha nele (o espelho diz uma verdade que lhe diz diretamente respeito, que a olha olhos nos olhos), mesmo que, depois, de um outro ponto de vista, se trate também de uma verdade que a Rainha ainda não conhece ou da qual, de forma mais precisa, ainda não tomou ou ainda não quis tomar plena consciência.

Qual é então essa verdade, a trágica verdade que o espelho comunica à Rainha? É precisamente a mesma que se manifesta, mas de modo invertido, à Branca de Neve: passou a ser ela a mulher jovem, a mulher fértil, enquanto o tempo da Rainha já passou. O seu ciclo fechou-se. Ora, a notícia deste fim alcança a Rainha no preciso momento em que se apresenta o início do ciclo de Branca de Neve. A verdade comunicada pelo espelho é, pois, uma verdade experiencial, cujo carácter trágico vai muito para lá da derrota num qualquer concurso de beleza (12). A Rainha, que não teve filhos, já não os poderá ter; não foi mãe e nunca mais o poderá ser. É a memória da maternidade que não realizou que a visão da juventude de Branca de Neve reativa na mente da Rainha. Poderá continuar a reinar como rainha (assim o repete o espelho: «Rainha, a mais bela aqui és tu…»), mas já não como mãe. Ela, que ainda não foi mãe, na verdade, já não o poderá ser. Mãe, só outra mulher o poderá ser: Branca de Neve poderá sê-lo («…mas Branca de Neve é mais bela do que tu»).

Em resumo: é de inveja que se trata e não de ciúme. A Rainha mais do que ter ciúmes da beleza de Branca de Neve, na verdade, tem inveja da fertilidade que está a desabrochar nela, daquela juventude cuja visão lhe traz à mente o que ela poderia ter sido, mas que já não poderá vir a ser (13). A figura do «espelho» revela a sua absoluta centralidade: num certo sentido, a Rainha já o sabia (este final pertence à ordem da vida), mas é como se o tivesse esquecido, como se tivesse querido esquecê-lo. Porém, agora, emerge Branca de Neve que a obriga a recordá-lo (esta memória pertence à ordem da experiência da vida).

Na conclusão do seu estudo fundamental sobre o mundo encantado dos contos de fadas, Bettelheim afirma:

«Cada conto de fadas é um espelho mágico que reflete certos aspetos do nosso mundo interior e os passos exigidos pela nossa evolução da imaturidade à maturidade. Para aqueles que mergulham naquilo que o conto de fadas pode comunicar, este torna-se uma lagoa profunda e mansa que, ao princípio, parece refletir somente a nossa própria imagem; porém, por trás desta, depressa descobrimos as lutas interiores da nossa alma – a sua profundeza e os caminhos que temos de seguir para obtermos paz dentro de nós mesmos e paz com o mundo em geral, o que constitui a recompensa das nossas lutas.» (14)



* Texto escrito originalmente em italiano. Tradução de José Frazão Correia SJ. Integra a edição de outubro 2023 da revista “Brotéria”.
(1) Este ensaio retoma alguns temas que já procurei aprofundar, sobretudo em Contro la cultura. La letteratura, per fortuna (Milão: Vita e Pensiero, 2017) e em Le fiabe non raccontano favole. Una difesa dell’esperienza (Milão: Vita e Pensiero, 2023).
(2) Uso a expressão «vida nua» para sublinhar como, na nossa experiência subjetiva (somos sujeitos, não simplesmente indivíduos), «vestimos», «habitamos» a vida com medos, esperanças, sonhos, etc. Entendo remeter, por isso, para a questão central de como habitamos a vida. Dentro do horizonte biblico judaico-cristão, poderíamos interrogar-nos sobre os nomes que damos aos vários aspetos da existência (Génesis 2, 19-20).
(3) Martin Heidegger, A caminho da linguagem (Petrópolis: Vozes, 2003), 121.
(4) Ernest Cassirer, Ensaio sobre o Homem. Introdução a uma Filosofia sobre a cultura (São Paulo: Martins Fontes: 1994), 50.
(5) A propósito da diferença entre necessidade e desejo, remeto para Silvano Petrosino, Il Desiderio. Non siamo figli delle stelle (Milão: Vita e Pensiero, 2019).
(6) «[…] o saber que ela mobiliza nunca é inteiro nem derradeiro; a literatura não diz que sabe alguma coisa, mas que sabe de alguma coisa; ou melhor; que ela sabe algo das coisas — que sabe muito sobre os homens». Roland Barthes, Aula inaugural da cadeira de semiologia literária do Colégio de França (São Paulo: Cultrix, 1980), 9.
(7) Giuseppe Gatto, La fiaba di tradizione orale (Milão: LED, 2012), 163.
(8) Bruno Bettelheim, Psicanálise dos contos de fadas (Lisboa: Bertrand Editora, 2018), 11-18.
(9) Ibidem, 183-184, cursivo meu.
(10) Ibidem, 265-266.
(11) Ibidem, 265-270, cursivos meus. O texto de Djuna Barnes a que se refere Bettelheim intitula-se Nighytwood (Nova Yorke: New Directions, 1937).
(12) «O facto de a rainha consultar o espelho acerca do seu valor – isto é, da sua beleza – repete o velho tema de Narciso […]. É o pai narcisista quem se sente ameaçado pelo crescimento do filho, porque isso significa que aquele está a envelhecer […] (B. Bettelheim, cit., 309). Porém, permaneço com a convicção de que a verdade que o espelho comunica à Rainha seja muito mais terrível do que aquele que diz respeito a estar agarrada ao seu narcisismo: trata-se da evidência de algo irrecuperável, de uma clara e segura antecipação da própria morte. Evidentemente, qualquer ser humano, antes de terminar, de perecer, encontra esta verdade: antes de perecer encontra a morte, faz a experiência de perder algo de irrecuperável. Há muitos espelhos que trasmitem esta verdade que, ainda que seja conhecida, constantemente, se evita «olhar de frente?)».
(13) O ditado segundo o qual «a inveja é mulher» pode ser compreendido apenas a este nível. Para lá de qualquer banal concurso de beleza e de qualquer simplificação machista, o fim do ciclo menstrual é uma inequívoca antecipação da morte e, como tal, é confirmação daquela impotência radical, daquele já não poder, que está sempre na origem do tormento da inveja.
(14) B. Bettelheim, op. cit., 467, cursivo meu.


 

Silvano Petrosino
Universidade Católica de Milão
In Brotéria, outubro 2023
Trad.: José Frazão Correia SJ
Imagem: everest comunity/Bigstock.com
Publicado em 11.10.2023

 

 

 
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