Será possível ainda uma nova ‘imaginação profética’ a partir das “artes de sentido”? Que “admirável mundo novo” (Aldous Huxley) vem aí? Que novos modos de ser aparecem desta Crise de crises do nosso tempo? Que crise mais nos desassossega? Que “escuridão abafa o sol” e não deixa que a ‘Terra seja beijada pela luz’? Será que a humanidade alguma vez deixou de estar em crise? Não viveremos permanentemente no mito de um Paraíso perdido que nos dá a ilusão de um progresso linear sem sobressaltos? Não será que esse mito, a dizer verdade, se anuncia mais no tempo futuro do que na arqueologia do passado?
A oratória Paulus op. 36 (1832-36), de Felix Mendelssohn-Bartholdy (1809-1847), autor também de Elias, não é somente uma narração biográfica da conversão damascena de Saulo em Paulo, mas essencialmente o testamento artístico das convicções da fé cristã, a partir da teodramática entre o divino e o humano, o céu e terra, do Antigo e Novo Testamentos (os Salmos, Jeremias, Isaías, o livro dos Atos dos Apóstolos e as principais cartas paulinas ou o livro do Apocalipse). É teologia da palavra ou escatologia (fins últimos e abertura ao Aberto do Adveniente) paulina musicada! Para além da força que brota do estilo expressivo de Mendelssohn, resquícios visíveis e audíveis da sua predileção por Bach e por Haendel nos diversos andamentos desta obra, os ouvintes dessa Palavra aí presentes, crédulos ou incrédulos, explícita ou obliquamente, contemplaram a força de um Desejo crente que supera a mera performance técnica.
Será difícil contemplar intensamente a oratória Paulus sem entrar no espírito do mistério do ser e da razão que nela se expressa. A menos que se entenda a arte simplesmente como puro entretenimento social ou consumo cultural sem pensamento nem contemplação. A arte dá que pensar! Não é possível entender esta oratória como “arte pela arte”, sem ter em conta o seu contexto religioso, sem a inspiração original que lhe deu origem. Tal como é difícil ver os quadros do pintor El Greco, ou de Gustave Doré, sem crer no mistério que ele nos dá a contemplar, independentemente do grau de adesão a uma determinada confissão religiosa.
A obra Paulus torna-se verdadeiramente inaudível sem o fio condutor da experiência do Verbo carnal que visita e toca a carne erótica do humano. Não é uma neo-apologética encapotada que instrumentaliza a arte para fazer passar ou veicular uma mensagem edificante. É uma “sobrenatural incitação” que faz aceder o ouvinte ao mais profundo do mistério da sua existência, do questionamento do si mesmo, a partir de uma fé religiosa, sem a qual apenas restaríamos à flor da pele, sem um sentido coerente daquilo que somos e para quem somos. Podemos pensar viver como se Ele não existisse, mas a confiança (fides) na sua presença muda tudo, em particular o nosso modo de ser terrenal. Aceder a esse centro, é aceder à pulsão da antítese que nos governa, à transformação das imperfeições em beleza, de recriação no caos, que “alivia o peito da matéria que o oprime e que oprime o coração” (William Shakespeare, Macbeth).
Este ato é também uma revelação para aqueles que se deixaram enquistar em discursos vazios contra a bondade do mundo, como se Deus apenas habitasse nos templos construídos por mãos humanas. É Paulo que nos interpela: «Não sabeis vós que sois templo de Deus e o Espírito de Deus habita em vós» (1 Cor 3,16). É aqui que a experiência religiosa, fora dos subterfúgios do exercício de poder e do desejo não declarado de domínio das consciências, poderá ganhar o “bom combate” da fé, no discernimento espiritual da existência humana, e não em posicionamentos catastrofistas sem imaginação profética nem poética, que em nada correspondem à visão escatológica da esperança que nos abarca no coração da noite desesperada.
O dramaturgo inglês William Shakespeare, na sua peça Macbeth, toda ela plena de referências bíblicas e até crísticas, abre-nos uma clareira interrogativa para os nossos tempos sombrios ou de crise:
O relógio diz que é de dia;
no entanto, a escuridão abafa o sol.
É a noite que domina,
ou é o dia que se acanha,
fazendo com que a treva
cubra a face desta Terra,
que devia ser beijada pela luz?
O auditório ouvinte fez-se assembleia, corpo litúrgico para receber uma palavra sonante e eficaz, ali reunida para um banquete simbólico que sacia a fome espiritual de tantas procuras do humano contemporâneo. Assembleia heterógena, repleta de um público juvenil que aprecia a qualidade da proposta, o mel suculento que alimenta e faz desejar uma experiência crente sensível. Durante duas horas e meia esta assembleia numerosa acolheu a força da Palavra que lhes foi arrebatadora e qualitativamente anunciada. Se há dom que a arte tem, em particular Paulus op. 36, é quebrar as fronteiras engavetadas dos exclusivismos dogmáticos, abrindo-as ao encontro inesperado do Outro que está aí, em qualquer parte, e que irrompe em nós como fulguração inebriante dos sentidos do corpo. Os diversos revivalismos de um certo exercício do poder dito sacro, os moralismos inconsequentes que falsificam a carne do humano, só colocam a nu a tibieza espiritual dos falsos identitarismos que anulam a diferença humana, que não deseja beber nas fontes de um tesouro ainda por descobrir, como é, por exemplo, a tradição monástica cristã.
Faz-nos falta a ousadia de uma “imaginação profética” (Walter Brueggemann) que nos desperte a habitação destes lugares do espírito para a transformação do nosso ser em relação sonante com o ser sempre dissonante das alteridades humanas. É este o intenso apelo do Coro: «Mache dich auf! Werde Licht» (Levanta-te! Sê luz!), ao que o Coral seguinte responde: «Wachet auf! Ruft uns die Stimme» (Despertai! Chama-nos a voz das sentinelas). O poeta místico João da Cruz diz-nos no seu “Cântico espiritual”: «O seu Amado, diz ela [a alma], é esta música silenciosa, pois é nele que ela conhece e degusta esta harmonia de música espiritual». A plantação de um terebinto musical suscitará no humano o desejo de abrigo às asas do mistério da Vida, desabrigando os ídolos que exigem o sacrifício do espírito e da carne humana no altar dos excessos mundanos que também homicida o espírito criativo da Ecclesia Dei Adflicta!
E, então, todos os recomeços se tornam possíveis, pois, como diz o poeta telúrico, Miguel Torga, no seu Sísifo, e nosso também por inerência humana:
Recomeça…
Se puderes
Sem angústia
E sem pressa.
E os passos que deres,
Nesse caminho duro
Do futuro
Dá-os em liberdade.
Enquanto não alcances
Não descanses.
De nenhum fruto queiras só metade.
E, nunca saciado,
Vai colhendo
Ilusões sucessivas no pomar.
Sempre a sonhar
E vendo,
Acordado,
O logro da aventura.
És Homem, não te esqueças!
Só é tua a loucura
Onde, com lucidez, te reconheças.
P.S.: A oratória Paulus op. 36, para coro, orquestra e solistas, foi brilhantemente interpretada, sob a direção de Olaris Eltis, em dia de Fieis Defuntos, na Casa da Música, em 2019, com auditório esgotado! Dia simbólico, sem dúvida, para apresentação de uma obra grávida de luz, a abrir o novo e possível Nascimento dos humanos em tempos tão confinados.