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Aborto, o pecado e a misericórdia

Nos meus escritos creio que a palavra “aborto” nunca apareceu; em todo o caso, nunca tratei dessa ação. Porquê? Talvez porque quando era pequeno me foi dito que o aborto tinha sido aconselhado à minha mãe, por causa das suas más condições de saúde, quando se soube que estava grávida de uma criatura. Talvez também por outros motivos que não indaguei. Seja como for, aquilo que pensei a esse respeito foi-me inspirado pelas Santa Escrituras.

Entre os salmos que escrevi numa faixa de pergaminho e que trazia comigo estava o 139, que exprimia com as suas palavras o quanto eu, ainda adolescente, sentia: Deus conhecia-me, precedia-me, acompanhava-me e seguia-me, tendo sempre a sua mã sobre a minha cabeça. No salmo assim se reza:

«Foste Tu que plasmaste os meus rins,
teceste-me no útero de minha mãe …
Quando eu era plasmado no segredo,
bordado no profundo da terra,
os meus ossos não te eram ocultos,
os teus olhos viam o meu embrião
e os meus dias estavam escritos todos no teu livro».

Este salmo dizia que era Deus que me tinha criado, ainda que eu tivesse nascido da minha mãe, dizia-me que Ele já via o embrião que eu era. Compreendo assim melhor um texto que leio muitas vezes, a vocação do profeta Jeremias: «Antes de te plasmar no útero da tua mãe, conheci-te, antes que tu saísses à luz, santifiquei-te» (Jeremias 1,5). Não tinha vindo ao mundo por acaso, não tinha vindo ao mundo por destino, mas porque Deus o tinha querido, ou seja, quis que eu viesse ao mundo, vivesse e fosse um homem entre os outros homens. Sim, a minha mãe teve-me contra a opinião de muitos, mas na realidade mais do que a minha mãe, foi Deus que me tinha posto no mundo.



A salvação refere-se a todas as criaturas humanas, da sua conceção até à sua morte. E se esta é a nossa convicção, misericórdia é também a nossa atitude para quem contradisse esta vida no seu ventre



Também no salmo 71 havia palavras que assumia como minhas: «No útero da minha mãe já punha confiança em ti, das entranhas da minha mãe Tu me separaste» (71,6). Palavras que faziam destacar os meus sentimentos de confiança em Deus na minha vida pré-natal. Parecia-me poder dizer que desde sempre eu confiava em Deus, e que era Ele, verdadeiramente Ele, que me tinha feito vir ao mundo. Também o segundo canto do Servo do Senhor confessa esta fé: «O Senhor do seio da minha mãe me chamou, desde o ventre da minha mãe pronunciou o meu nome» (Isaías 49,1).

É impossível, portanto, pensar que um homem ou uma mulher são tais só quando nascem: são já plasmados, chamados, sustentados no seio materno, quando são só «embriões» (“golem”); já então são criaturas de Deus, aos quais Deus confiou uma missão, chamando-os pelo nome. No judaísmo esta é a visão da criatura humana, que é vida já no útero, antes de nascer.

É verdade que no Novo Testamento não há expressões novas, mas a fé do apóstolo Paulo reitera que o chamamento de Deus lhe tinha chegado no seio da sua mãe (cf. Gálatas 1,15). E a fé da Igreja confessa que Jesus, o Filho de Deus, o homem que só Deus nos podia dar, quando era ainda um embrião no útero virginal de Maria, era já uma presença divina, era já o Messias e profeta que João, também ele embrião no ventre da mãe Isabel, saudou, dançando diante dele que através de Maria encontrava (cf. Lucas 1,31.36.39-44).

Esta convicção emerge para os judeus e os cristãos como uma verdade a proclamar, sustentar e defender, porque diz respeito ao homem e ao caminho de humanização: a salvação refere-se a todas as criaturas humanas, da sua conceção até à sua morte. E se esta é a nossa convicção, misericórdia é também a nossa atitude para quem contradisse esta vida no seu ventre. Não podemos julgar: só Deus pode julgar e condenar. O aborto é um mal, é uma contradição à vida, e como perante cada ofensa à vida é preciso ter misericórdia por quem dela é responsável, também neste caso.

Não se trata de complacência: o mal continua a ser mal, e o pecado continua a se4r pecado; mas quando se olha para o pecador é preciso dizer antes de tudo: «Não sou melhor que ele. Tenho outros pecados, mas também eu sou pecador». E depois é preciso não julgar, não matar, nem moralmente, quem eventualmente matou. É preciso, antes, chorar, sofrer, e confiar sempre tudo à misericórdia infinita de Deus. A convicção cristã, no entanto, é clara, nítida, é sempre obediência ao Deus Criador e Salvador: nada mais, irmãos e irmãs cristãs.


 

Enzo Bianchi
In Monastero di Bose
Trad.: Rui Jorge Martins
Publicado em 06.05.2019 | Atualizado em 07.10.2023

 

 
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