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Arquitetura religiosa e esplendor na lentidão

«A forma como vemos as coisas é afetada
pelo que conhecemos ou por aquilo em que acreditamos.»
John Berger, Modos de Ver, 18

 

Que relação cuidar entre a Igreja e a arquitetura? De que modos edificar hoje a casa de Deus na cidade terrena? Modos de edificar? Sim, o plural ajudará a albergar as diferenças, de casa para casa, naquele Fogo de fogos, junto do casario de cidades, vilas e aldeias ― a cidade terrena. Aprecio a travessia de montanhas, desfiladeiros e vales escuros, e caminhar sobre paredes de levadas, seguindo o silêncio ― lento e calmo ― das águas até às nascentes na floresta. Sirva o poder de sugestão das imagens, para dizer que, não obstante os apreços, evitarei esforços titânicos para subir à casa de videntes e lhes colocar as perguntas do início. Porquê? Porque não procuro aquilo que muitos, hoje, dão por perdido. E acrescento ainda: o meu alforge está vazio e não reúno colações para uma permuta aceitável.



Imagem Uma truta nadando calmamente nas águas silenciosas da levada, Ilha da Madeira | © Fotografia: Joaquim Félix


Vamos demandar oráculos? De modo algum. Porém, podemos ouvir Deus que, da sua casa, diz: «Os céus são meu trono, e a terra o escabelo de meus pés; qual seria a casa que vosoutros me edificaríeis? E qual seria o lugar de meu descanso?» (Is 66,1). A mão do Senhor precede as nossas mãos. E o seu olhar constrói o lugar do seu descanso. Ele o diz: «Porque minha mão fez todas estas coisas, e todas estas coisas foram feitas, diz o Senhor; mas para aquele atentarei, que é pobre e abatido de espírito, que treme de minha palavra» (Is 66,1-2). O universo, desenrolado de suas cortinas, é o seu santuário (cf. Is 40,22). Então, que escabelo dispor para os seus pés? No pobre, o Seu olhar edificará o descanso. No abatimento de espírito, o Senhor assume-se como habitante. E, de forma atenta, na atmosfera da recíproca e ampla hospitalidade.

Convoquemos outra passagem bíblica, para olhar como Deus olha. Recrutemo-la, agora, no Testamento novo. Jesus varre impetuosamente o Templo de Jerusalém (cf. Jo 2,13-22). Derruba as mesas dos cambistas, derramando por terra as moedas. O zelo pela casa de seu Pai não dispensou o azorrague de cordas. Porquê? Porque transformaram a casa de oração em casa de negócios. Que disse Jesus aos judeus, que o interpelaram com protesto?  «Derrubai este Templo, e em três dias o levantarei» (Jo 2,19). De qual templo lhes falava Ele? Nem mais: «do Templo de seu corpo» (Jo 2,21). Lembremo-nos sempre disto, pois Jesus «ao terceiro dia ressuscitou, segundo as Escrituras» (1 Cor 15,4).

Este par de passagens bíblicas ilumina a mistagogia que, neste momento, procurarei entrelaçar a partir do meu discernimento. Enraízo-a no ensaio «Terebinto, tenda, templo, corpo. Anamnese maiêutica a pensar nas poéticas da arquitetura religiosa contemporânea», que apresentei na comunicação final do VI Congresso Internacional de Arquitetura Religiosa Contemporânea, realizado no Porto, em 2019, pela Escuela Técnica Superior de Arquitectura da Universidade da Coruña, em parceria com a Faculdade de Arquitetura da Universidade do Porto (cf. Félix de Carvalho 2019). Desta vez, porém, não me detenho na contemplação dos quatro ícones bíblicos ― terebinto, tenda, templo e corpo ―, mas na realidade do tempo presente, em Portugal, embora também verificável noutros países, nomeadamente europeus, desde uma leitura dos sinais dos tempos, com implicações para a arquitetura religiosa. São três notas. A economia deste tríptico merecia reflexão mais profunda, o que é impossível fazer na escassez de tempo. Partilho-as, sem certezas redondas, na aceitação de maneiras outras de ler alguns sinais que vejo, admitindo que haja mais a aferir e relacionar.



Imagem VI Congresso Internacional de Arquitetura Religiosa Contemporânea, realizado no Porto, em 2019 | © Fotografia: João Lopes Cardoso


Essa primavera, vigorosa desde os anos do MRAR (cf. Alves da Cunha 2015), parece não dar passagem ao desejado verão. Nos últimos anos, foram poucas as igrejas que saíram do papel, isto é, dos esquissos. Escasseiam as condições favoráveis para construí-las. De facto, há comunidades a celebrar em auditórios paroquiais, mas já sem forças para construir a desejada igreja. Ao mesmo tempo, existem cada vez mais igrejas e capelas abandonadas. Tonino Guerra escreveu um pequeno livro, traduzido para português e publicado pela Assírio & Alvim, com o título O livro das igrejas abandonadas (Guerra 1997). Como na Emilia-Romagna, atualmente, em Portugal, poderíamos escrever sobre visitações a igrejas e capelas abandonadas. Nada que nos espante. Até porque, só em Roma, nos últimos tempos, há cada vez mais igrejas abandonadas, na ordem das várias dezenas.

Em 2020, estas igrejas, capelas, priorados e oratórios deram origem a um excelente álbum de fotografias, da autoria de Francis Meslet, publicado em livro (cf. Meslet 2020). Delas escreve Christian Montesinos, no prefácio: «Quantas são as igrejas e as capelas que dormem sob o pó do tempo? Hoje em dia os seus visitantes não são senão raros curiosos que ali chegam por um caminho errado e que, de olhos arregalados, descobrem o que há anos atrás estava cheio de vida. Abandono? Esquecimento? Ingratidão? Será que caíram sob o domínio vulgar do consumismo, dos produtos descartáveis? Tal como as áreas industriais abandonadas, testemunham uma época não tão distante assim, que moldou o nosso mundo de hoje. Eram animadas por homens e mulheres como nós. Ouvia-se o murmúrio das orações, a alegria dos cânticos religiosos. Grandes ou pequenas, acolheram homens unidos numa Fé muito simples. Para os fiéis, o seu refúgio parecia imutável, indestrutível, e os seus filhos e netos, como eles, teriam vindo meditar ali. A prática religiosa parecia natural e duraria enquanto os humanos andassem sobre a terra» (Meslet 2020, 2).



Imagem Capela Cheia (nova) de Graça dentro da Capela da Imaculada (reabilitada), Braga | © Fotografia: João Lopes Cardoso


A edificação e a ruína luminosa

Agora e aqui. Não fujamos ao hodie, o hoje que vivenciamos. Evadirmo-nos dele continua a ser uma das tentações do diabo, digamos assim, em sintonia com a satírica obra, intitulada Vorazmente teu, da autoria de Clive Staples Lewis (cf. Staples Lewis 2009). Não queiramos ser seus sobrinhos aprendizes.

Semelhante a um ícone escrito de fresco, o hodie fixa os olhos em nós. E, sem se arrogar como inquiridor, pergunta-nos: «Como estais a ver a casa de Deus, nas suas igrejas?» (cf. Dianich 2009). Podemos responder como Jeremias (cf. Jr 1,4-10): «Oh, vemos ramos de amendoeira a eflorescer em igrejas novas e renovadas!». De facto, nas últimas sete décadas, Portugal vivenciou uma primavera de novas igrejas e capelas, muitas delas com reconhecidas qualidades, seja ao nível da arquitetura, seja quanto a dimensões eclesiológico-litúrgicas. Sem esforço, cada um de nós elaboraria uma generosa lista de edificações, em diferentes tipologias ― igrejas, capelas, oratórios, batistérios, casas mortuárias e ossários, etc. ―, convergindo naturalmente em algumas delas.



Imagem Capa do livro "Chiese abbandonate. Luoghi di culto in rovina" | © Fotografia: Joaquim Félix


Somos pó e ao pó voltaremos. Bem no-lo recordam, pelas Cinzas. Mas, partilharão os edifícios abençoados esta polvoreira? Com certeza. Porém, os nossos olhos não devem ficar sepultados neste pó. Montesinos aponta a uma outra dimensão, a qual partilho: «Muitas vezes (estes edifícios) parecem pobres em comparação com as catedrais e as grandes basílicas, mas merecem muito mais do que um olhar desiludido. Ao entrar nestes lugares, entrelaçam-se sentimentos curiosos. Nostalgia, terror, tristeza, fundem-se com memórias e, por vezes, arrependimentos. Vós que aqui entrais, não percais a esperança, pois estas igrejas merecem muito mais do que um olhar nostálgico e cansado. Não devemos apenas vê-las, devemos observá-las, absorvê-las para que nos possam revelar os seus Segredos. Ir além das aparências para descobrir a sua história, encontrar aí a sua vocação original e deste modo falar à vida nas nossas mentes e corações. Então elas revelarão o seu esplendor ou a sua simplicidade, os seus tesouros sepultados. Elas não são ruínas, mas relíquias. Nelas se consegue perceber as velas acesas, a respiração dos fiéis» (Meslet 2020, 2). São verdadeiros relicários que, na sua transparência densa, patenteiam ― a quem vê de verdade ― muitas outras marcas, apontadas por Montesinos, que, de forma magistral, se leem nas fotografias de Meslet.



Imagem Do interior do livro "Chiese abbandonate. Luoghi di culto in rovina" | © Fotografia: Joaquim Félix


Na área da arquitetura religiosa, em Portugal, no futuro imediato, iremos provavelmente construir menos. E, por certo, haverá cada vez mais edifícios em ruína-relicária. Alarguemos o olhar para discernir o que se passa, por exemplo, nos Países Baixos, na Bélgica, na Alemanha, em França e em tantos outros países europeus. Aumentou o número de igrejas que são desafetadas do culto. Muitas são vendidas. Outras, por sua vez, são destinadas a novas funções, algumas das quais sem quaisquer ligações ao serviço religioso. E há ainda algumas que são demolidas. Nada de novo, diremos, porque até no centro de Coimbra, só para dar um exemplo, uma igreja foi transformada em café-restaurante.

Possuímos abundante património religioso. É belo e rico. Porém, dificilmente disporemos de recursos económicos para conservá-lo na íntegra. E diga-se, para evitar pesos insuportáveis: os fiéis não poderão viver de coleta em coleta, excessivamente preocupados em reunir dinheiro para preservar os edifícios e as obras de arte. Nem o Estado, através do Ministério da Cultura e das respetivas Direções Regionais, beneficiando da ajuda dos fundos europeus, poderá providenciar todos os restauros. Sem dúvida, as Igrejas e o Estado, com o contributo indispensável do mecenato, poderão fazer muito. E vão fazendo algumas intervenções. Seria possível providenciar mais? Talvez. Contudo, há que assumir que, inevitavelmente, parte do património religioso entrará em ruína.



Imagem Templo em ruínas, Paestum, Campânia, Itália | © Fotografia: Joaquim Félix


Também a ruína necessita de ser acautelada, para que não se torne escombro. O tempo sabe esculpi-la. Nem precisamos de lhe dar conselhos. Todavia, esperançadamente o digo: a ruína pode ser luminosa. Como uma luz na memória. Muito do património religioso em ruína carece de cuidados, mesmo quando musealizado. E, todavia, nem tudo é passível de ter tal atenção. Há que ter critérios e uma exigente ordem de prioridades, a definir pelos organismos da Igreja e do Estado. Outro património será afeto a novos serviços. Se nos deliciamos ao visitar as três abadias irmãs da Provença ― Le Thoronet, Venasque, Sénanque ―, os templos em Paestum, na Campânia, ou o Vale dos Templos, em Agrigento, também nos admiraremos do critério adotado na preservação do Mosteiro de Tibães, ou do modo como os Arq. Eduardo Souto de Moura e Humberto Vieira recuperaram o Mosteiro de Santa Maria de Bouro, em Amares. Impossibilitado de alargar aqui a lista das boas práticas, sirvam estes dois exemplos para assinalar uma das atuais urgências, devido ao aumento do património abandonado. Ainda assim, de olhos alagados na luz, como quem caminha sobre relíquias, questiono: Haverá ainda, como escreveu Henry David Thoreau, «certas estradas que vale a pena percorrer, como se agora que estão em ruínas, mas conduzissem a um destino certo» (Thoreau 2018, 29)?



Imagem Tempio della Concordia no Vale dos Templos, Sicília, Itália | © Fotografia: Joaquim Félix


Esvaziamento das igrejas e desafios à sua adaptação

As igrejas estão a esvaziar-se de fiéis. Não precisamos de recorrer a censos, ou aos livros de Tomáš Halík (cf. Halík 2021), para constatar que existe um êxodo acelerado das igrejas. Encontramo-nos a viver «a tarde do cristianismo» Halík 2022). Oxalá corresponda ela, como ele subtitula este livro, a um «tempo de transformação». Há quem ― discernindo os sinais dos tempos, em sintonia com certas leituras do então teólogo Joseph Ratzinger, em relação ao futuro do cristianismo na Europa, e tendo presente os índices de exculturação do catolicismo em França ― pense numa caminhada em direção à sua implosão. Refiro-me ao livro, escrito em coautoria, por Danièle Hervieu-Léger e Jean-Lois Schlegel, com o título Vers l'implosion? Entretiens sur le présent et l'avenir du catholicisme, publicado em 2022.

Com honestidade, reconheceremos que a vivência comunitária do evangelho de Jesus está a transformar-se velozmente. Mais, constatamos a intensificação do êxodo das igrejas, principalmente das celebrações litúrgicas. Confesso-vos ― e, como eu, muitos o poderiam dizer ― que, por diversas vezes, me encontro a celebrar com poucas pessoas na capela-mor. A maioria dos participantes da assembleia prefere ficar a meio e nos fundos das igrejas. Mais que uma vez ― lembrado da parábola de Jesus (cf. Lc 14,10) e com delicadeza ― interpelei as pessoas: «Irmãos, sentai-vos mais acima».

Os confinamentos ligados à Covid-19 e o incentivo à visualização das missas transmitidas pelos canais de televisão terão contribuído para acelerar este processo. Vendo isto suceder, convém refletir sobre o fenómeno e apontar a vias de intervenção. Pois, caso nada se faça, as assembleias litúrgicas poderão ficar estilhaçadas nas igrejas, fragilizando a coesão afetiva da proximidade e o sentido de participação. Como resolver isto? Estou persuadido de que haverá várias possibilidades. A primeira ― porventura a mais fácil ― será a redução do número de bancos, dando preferência àqueles que se encontram mais próximos do altar e do ambão. Foi o que aconteceu, por exemplo, no restauro da igreja de S. Martinho, em Cedofeita, após o incêndio. Outra via, possível e já posta em prática em igrejas e catedrais, passará por adaptar os lugares, com ajustes na disposição do mobiliário litúrgico. Se os cristãos adaptaram as basílicas civis em lugares de culto, porque não haveremos nós de ajustar espaços demasiado amplos à realidade das assembleias diminutas do «pequeno rebanho» (Lc 12,32)?



Imagem Igreja de S. Martinho, Cedofeita, Porto; reabilitação por Arquitectos Cerejeira Fontes | © Fotografia: Joaquim Félix


Esta segunda via é aquela que mais desafios coloca. Na verdade, a reorganização das igrejas, em especial do presbitério, em função dos princípios gerais estabelecidos no capítulo V da Instrução Geral do Missal Romano, relativo à «disposição e adorno das igrejas para a celebração da Eucaristia» (cf. IGMR, nn. 288-318), tem encontrado várias dificuldades, não só quanto às linguagens adotadas para o mobiliário litúrgico, mas também na sua organização espacial em intrínseca relação.

Nesta matéria, é conveniente conhecer e refletir a bibliografia disponível e as normas em vigor. A Comissão Episcopal da Liturgia de Portugal providenciou várias obras, desde logo a Nota Pastoral A adaptação das igrejas segundo a reforma litúrgica, já na segunda edição, destinada ao conhecimento da Conferência Episcopal Portuguesa e das Comissões Diocesanas de Liturgia e Arte Sacra. Esta Nota ― como se recorda ― deverá ser considerada em conjunto com dois outros documentos produzidos em Itália, nomeadamente: I beni culturali della Chiesa in Italia, documento do Episcopado Italiano, publicado a 9 dezembro 1992, e La progettazione di nuove chiese, Nota Pastoral da Comissão Episcopal para a Liturgia, com data de 18 fevereiro 1993. Além destas orientações para a Igreja em Itália, que, por si, constituem um corpo normativo orgânico, a Comissão Episcopal da Liturgia de Portugal publicou, ainda, as Linhas orientadoras para a construção e organização de espaços litúrgicos, da Igreja alemã, com tradução elaborada por Vítor Coutinho. Além destas linhas de orientação, são conhecidas muitas outras, desde logo, as Guidelines for the Building and Renovation of Churches, publicadas em 2004, pela Comissão de Arte Sacra e de Arquitetura do Secretariado do Culto Divino dos EUA. Por conseguinte, bibliografia e normas não faltam. Podem escassear os fiéis nas assembleias litúrgicas, como vemos suceder de dia para dia, mas documentos, não. Porém, os documentos, na sua justa importância, não são tudo.



Imagem Igreja matriz de Pedraído, Fafe; restauro por Arquitectos Cerejeira Fontes com a especial colaboração de Asbjørn Andresen | © Fotografia: Joaquim Félix


Tendo presente várias experiências, na qualidade de colaborador em equipas de trabalho, posso partilhar convosco algo que tem ajudado a alcançar resultados positivos, assim os creio, pela reflexão própria e, sobretudo, a audição de outras pessoas. Além de conhecer as normas e linhas de orientação, é fundamental constituir bem as equipas de trabalho, quanto possível, de forma multidisciplinar, e em articulação com as Comissões Diocesanas de Liturgia e Arte Sacra. Daí a importância em constituir bem, repito, estas Comissões com pessoas competentes. Friso isto, não para as avaliar aqui sem mais, mas para reforçar a altíssima responsabilidade dos seus membros. Quer as equipas de trabalho, quer as Comissões Diocesanas não podem ser formadas como grupos de amigos, nem incorporar pessoas em manifesto ― ou escondido ― conflito de interesses eclesiásticos, ideológicos, económicos, profissionais ou políticos. O trabalho será feito em regime de aberto diálogo crítico, primeiro em equipa e depois em discussão com o demais povo de Deus diretamente ligado aos lugares a intervir, com a apresentação dos fundamentos desde as diversas áreas. Nessa medida, tem-se mostrado decisivo abrir a reflexão pelo estudo das especificidades de cada lugar, na sua identidade única, conhecendo ao detalhe a sua história e as suas transformações em cada época. A par disso, é fundamental, entre outros aspetos, ter claros os objetivos para a nova intervenção. Em seguida, costumo sugerir que se estudem pelo menos dez intervenções (o número é indicativo, pois podem ser mais), nomeadamente em catedrais, igrejas e capelas, para analisar como, em cada um desses lugares, se constituíram as respetivas Comissões e se desenvolveu a sequência dos trabalhos, com a respetiva fundamentação teológico-litúrgica. Neste sentido, é comum estudar a reorganização de espaços litúrgicos,por exemplo, de certas catedrais italianas ― de Alba, Parma, Pisa, Pádua, Belluno-Feltri, entre outras ― e francesas, incluindo o exigente processo de restauro da catedral de Notre-Dame, em Paris, após o recente incêndio. E, claro que também, de catedrais, igrejas e capelas noutros países. Sem deixar de valorizar, como melhor se possa, a tipologia de tais edificações em sintonia com a do espaço que se pretende edificar, restaurar ou reabilitar.



Imagem Nova disposição do mobiliário litúrgico na catedral de Alba, Itália; por Massimiliano Valdinoci | © Fotografia: Joaquim Félix


O trabalho das Comissões é fundamental; todavia, interferências exógenas podem determinar mudanças abruptas em relação à reorganização litúrgica dos espaços, por melhor fundamentada que tenha sido. Considere-se, por exemplo, o que aconteceu na catedral de Reggio Emilia, apontada pelos monges da Comunidade de Bose ― onde se realizaram vários Congressos Internacionais sobre muitos temas da arquitetura e das artes para a liturgia ― como uma das melhores intervenções em Itália. Mudam-se os bispos, mudam-se as disposições. A alteração deu aso a uma acesa discussão nos meios de comunicação social da região, com artigos de pessoas de renome, e, inclusive, à publicação de um livro do bispo emérito, no qual fez a apresentação do processo de reorganização do mobiliário litúrgico da catedral, ocorrido durante o exercício do seu ministério como ordinário do lugar.

Com as devidas distâncias, pois não foi por causa da sucessão episcopal e existem motivos distintos ― note-se bem ―, estaremos a lembrar-nos da igualmente flamejante discussão acerca do que sucedeu na catedral de Santarém, com a introdução do novo mobiliário litúrgico, obra do atelier dos monges do Mosteiro de Singeverga, com a colaboração ― na execução das obras ― de Paulo Neves. Valeria a pena, creio eu, fazer um estudo de caso. Seria ótimo que alguém reunisse tudo o que foi escrito e dito, desde os esclarecimentos da diocese de Santarém aos mais variados artigos de opinião surgidos na imprensa, incluído o de D. Carlos Azevedo, e à avalanche de comentários nas redes sociais, como todos aqueles que se encontram no Facebook do Secretariado Nacional para os Bens Culturais da Igreja. Reuni-los, sim, para estudá-los. Donde provém tanta agressividade nas palavras de certas pessoas? Por mais que haja opiniões diversas, e até dúvidas, que, aliás, dão testemunho da salutar diversidade, não seremos capazes de nos respeitar nas múltiplas sensibilidades, em relação às artes, no contexto da catolicidade da Igreja? Mas estará alguém a pensar que, atualmente, será possível obter o conforto da unanimidade, nesta como noutras matérias?



Imagem Reversão da disposição do mobiliário litúrgico, exceto do altar, na catedral Reggio Emilia, Itália, após a sucessão episcopal | © Fotografia: Joaquim Félix


Este desenvolvimento, que partiu da urgência em adaptar as igrejas às assembleias de fiéis cada vez mais reduzidas, faz-me rematar o assunto com palavras de uma das lições de sabedoria, proferidas pelo organista francês Jean-Pierre Leguay, numa tertúlia realizada no Seminário Conciliar de Braga. A aplicação ― recordo ― é para se fazer mutatis mutandis. A propósito de problemas e polémicas, da sua aparição e resolução, disse-nos o seguinte, como assim resumi numa breve crónica, publicada no Site do Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura: «Fundamental é a preparação e a dinâmica que a sustenta: o trabalho em equipa, antes de mais. Porque os problemas não são indispensáveis nem automaticamente presentes. Nessa matéria, referiu os maravilhosos 23 anos de experiência na paróquia de Notre-Dame-des-Champs, e como os desafios eram suplantados. Segundo testemunhou, para isso concorrem o respeito e a relação de amizade entre todos e o reconhecimento das competências de cada um. Para ele, é indispensável saber o que cada um tem a fazer durante as celebrações, como os leitores. Isto dá muito trabalho. Mas, quando começam as interferências, a invasão dos campos, tudo se perverte. Porque, como por diversas vezes insistiu, quando não se trabalha em equipa, começam os problemas de outra ordem. Ao contrário, em equipa há mais probabilidade de tudo correr bem, nada é desprezível» (Félix de Carvalho 2023).

 

Prumas para uma manhã de outono

A última nota do tríptico será declinada em várias prumas. Alguns pensarão que serão brumas. Insisto, porém, que as designo prumas. Finas e pontiagudas, são como prumas de pinheiros. E são para uma manhã de outono, não para uma fogueira de S. Martinho. Entenda-se por isto o que cada um desejar. Já vereis ao que me refiro. Após as duas atenções acerca da Igreja em metamorfose pela ação do Espírito ― para acautelar a ruína e pensar em adaptações devidas ao esvaziamento ―, desenvolvidas nas duas notas precedentes, desejaria apontar, de forma breve e incisiva, outros desafios na área da arquitetura religiosa contemporânea.



Imagem Capela Sogn Benedetg, Sumvitg, Suíça, projetada por Peter Zumthor | © Fotografia: Joaquim Félix


a) Arquitetura funerária cristã

As câmaras municipais têm providenciado a construção, com financiamento e arquitetos próprios, de capelas mortuárias, columbários, ossários e, também, de outras estruturas cemiteriais e crematórios. É um serviço público. E, nisso, devemos agradecer. Tais edificações estão sujeitas a uma legislação, que determina restrições em relação, por exemplo, à confessionalidade religiosa, quanto ao uso dos sinais de identificação. De facto, elas destinam-se a todos os mortos, quer tivessem ou não professado em vida uma religião. Sem alinhar na crítica fácil, penso que grande parte destas edificações apresenta uma arquitetura, sob alguns aspetos, desqualificada. Em grande medida, isso poderá dever-se à reduzida disponibilidade económica. Além disso, o recurso a modelos padronizados também não abona muito. Porém, não será somente isto que estará em causa.

Porque assinalo esta pruma? Porque nós cristãos, desde há dois mil anos, dispomos de uma grande tradição arquitetónica, que valoriza os lugares e as simbólicas associadas à fé na ressurreição dos mortos. E, também, dimensões do viver crente, na confiança com que se encara o derradeiro momento, a morte, seja a própria seja a dos outros, segundo a esperança e a confiança nas palavras de Jesus, morto e ressuscitado. Recordemos, desde logo, o que sucedida na arte paleocristã.

Estou persuadido de que, nesta matéria tão sensível, não podemos ignorar o que se passa ― encolhendo os ombros e folgando os bolsos, como se estivesse simplesmente em causa uma despesa da qual nos libertamos ―, pois estaremos a sacrificar muito da nossa escatologia cristã. Não digo que, em todas as comunidades, nos tenhamos de empenhar para construir capelas-ossários, como aquela que se encontra no Cemitério de Nossa Senhora das Angústias, em S. Martinho, no Funchal, com desenho do arq. Raúl Chorão Ramalho. Ou, então, como a Casa da Paz, construída em S. Paio de Antas, Esposende, desenhada pelo arq. pe. José Manuel Oliveira Ribeiro.Cito estas duas construções com qualidades relevantes, mas há muitas outras.Daí que, na plausibilidade desta temática fazer sentido, como creio, volte a perguntar: Não teremos que investir mais na qualidade da arquitetura funerária? Como desenvolver esta tradição?



Imagem Ossário no Cemitério de Nossa Senhora das Angústias, S. Martinho, Funchal, projetado pelo arq. Raúl Chorão Ramalho | © Fotografia: Joaquim Félix


A chamada de atenção ― gostaria de clarificar ― não se circunscreve só à adoção da simbólica cristã. Até porque a arquitetura não se restringe ― longe disso! ― ao somatório de camadas simbólicas. Estou a pensar, por exemplo, na criação de uma atmosfera cuidada, desde a aproximação ao edifício e a sua implantação, ao seu ambiente interior, com janelas de céu, praças de silêncio e até mesmo silenciários, paisagens selecionadas através de aberturas ― a nascente ou a poente, ao mar ou aos montes, conforme as redondezas, em sintonia sálmica, etc. ―, à liminaridade das passagens e às modulações da luz ― escuro, penumbra, sombras e claridades ―, o eventual oferecimento de música ― com os dispositivos de audição individual ― e de literatura exequial e de ajuda à oração e ao luto ― a formar uma pequena biblioteca de armário ―, com outras infraestruturas de apoio à higiene e à frugal experiência agápica, etc. Não será importante valorizar mais tão significativo momento, neste lugar ― ainda que depois se passe a uma segunda ou terceira estação, na igreja e/ou no cemitério ― para velar a pessoa falecida, em cadáver ou cinzas, e dar apoio espiritual, na consolação humana e do Espírito, aos seus familiares e amigos, e aos irmãos e irmãs da comunidade? Daí a insistência na pergunta: Como conferir qualidade à espessura e ao alcance da arquitetura funerária, que abriga e atende este momento limite, a vivenciar sem pressas de fechar o caixão ou pegar no vaso das cinzas e despachar os mortos? Perguntas outras não faltarão. E quem não as terá? Oxalá nos ajudemos nestas celebrações do mistério pascal.



Imagem Capela funerária no Cemitério de Nossa Senhora das Angústias, S. Martinho, Funchal, projetado pelo arq. Raúl Chorão Ramalho | © Fotografia: Joaquim Félix


b) Sentido pela comunidade

A segunda pruma refere-se aos cuidados a ter com a assembleia santa, promovendo o sentido pela comunidade. Em relação a esta dimensão, não falta bibliografia, até porque foi o tema do VI Congresso Litúrgico Internacional realizado no Mosteiro de Bose, de 5 a 7 de junho de 2008 (Boselli 2009). Outras indicações podem colher-se em muitas obras e artigos, desde logo no livro Espaços de igrejas e imagens de Igreja: o significado do espaço litúrgico para uma comunidade viva, da autoria de Klemens Richter, com tradução, de Vítor Coutinho, para português (Richter s.d.).



Imagem Final da missa de domingo in albis, na igreja de S. Félix e Sta. Régula, Zurique, Suíça, projetada pelo arq. Fritz Metzger | © Fotografia: Joaquim Félix


b) Sentido pela comunidade

A este propósito, para ser mais testemunhal, partilho convosco o que sucedeu, no domingo in albis do ano 2022, na igreja de S. Félix e Sta. Régula, em Zurique, na Suíça. Encontrando-me ali, no contexto do estudo de edifícios da arquitetura religiosa contemporânea, senti-me muito sensibilizado na missa da comunidade portuguesa. Mas, já antes, tinha colhido uma imagem extraordinária da assembleia branca. Sim, porque estava a terminar a celebração da comunidade suíça, na qual várias crianças tinham comungado pela primeira vez; no fundo, como ditei num haiku: «comendo a flor da farinha/ a sua alegria /embranquece a assembleia» (Félix de Carvalho 2024). Estremeci, também, por celebrar numa das igrejas desenhadas pelo arquiteto suíço Fritz Metzger, que, como saberemos, exerceu a sua influência nos primeiros anos do MRAR, em Portugal (cf. Alves da Cunha 2015). E, sentindo, em ação litúrgica, o que tantas vezes tinha sido apenas fruto de leituras, resolvi partilhar com a assembleia este aspeto ― o sentido da comunidade ― na homilia. Transcrevo apenas o ponto 10: «A comunidade ― sim, a comunidade ―, no seu testemunho credível, ajuda-nos a chegar à fé na ressurreição de Jesus.

É neste sentido que gostaria de citar as palavras de um arquiteto ― responsável pelo desenho desta igreja ―, que, por muitos motivos, concebeu aqui uma autêntica parábola “da qualidade de vida no corpo de Cristo” (F. Debuyst). Sim, pela eclesiologia praticada na forma da construção. O arquiteto chamava-se Fritz Metzger. Há umas décadas, a propósito das igrejas por ele desenhadas, escreveu o seguinte: “Devemos mudar o nosso modo de pensar, introduzindo o sentido da comunidade, o interesse pelos outros, o interesse pela Igreja. Queremos participar nas celebrações com maior consistência, e tornarmo-nos sempre mais uma comunidade. Isto dará à vida religiosa um tom persistente e profundamente comunitário. A velha época e a velha Igreja significam muitas vezes separação e isolamento. A nova Igreja e a nova época exigem empenho, partilha, comunidade. A nossa religião é a religião da comunidade. Para isto deverá apontar o mundo. Quem vive da comunidade será salvo; quem a vive mal está perdido”». Esta homilia encontra-se inédita, pois não foi publicada no jornal digital 7MARGENS. Todavia, no próximo mês de novembro, poderão aceder-lhe, como aliás a outras num Homiliário, que intitulei Teorbas dos Tempos. Será publicado pela editora Officium Lectionis.



Imagem A abóbada baixa cobre todo o espaço da assembleia na igreja de S. Félix e Sta. Régula, Zurique, Suíça, projetada pelo arq. Fritz Metzger | © Fotografia: Joaquim Félix


c) Arquitetura imprevista e quase-esquecida

Além do património arquitetónico religioso em ruína-relíquia, também há lugares sui generis que, metamorfoseados, se revelam em esplêndida arquitetura imprevista. Poderia nomear muitos deles. Neste momento, porém, gostaria de evidenciar a Ermida do Cristo do Silêncio (2003-2005), situada na Casa de Oração de Santa Rafaela Maria (Quinta de Santo António, Serra do Louro, Palmela), das Escravas do Sagrado Coração de Jesus. É uma obra da autoria do arq. Bernardo Miranda. Quem esperaria que, daquele lugar desvitalizado, surgisse a oportunidade para uma ermida, através de um processo de regeneração? Encontra-se devidamente apresentada, inclusive pelo seu autor (cf. Miranda 2022), pelo que me isento de fornecer-vos mais informação.



Imagem Ermida do Cristo do Silêncio, Quinta de Santo António, Serra do Louro, Palmela, projetada pelo arq. Bernardo Miranda | © Fotografia: Joaquim Félix


Um pouco por toda a Europa, vão surgindo obras semelhantes, muitas vezes suportadas por ruínas e vestígios arqueológicos. Cito apenas uma, para que se possa abrir a imaginação em função de oportunidades que, de vez em quando, surgem. Refiro-me em concreto à basílica di Siponto, na província da Puglia (Itália), antiga cidade que foi abandonada, após vários terramotos ocorridos no século XIII. Pois bem, sobre as ruínas da antiga basílica, Edoardo Tresoldi ― cenógrafo, escultor e artista ― desenvolveu uma espécie de reconstrução (onde a arte reconstrói o tempo em malha de arame. Esta intervenção foi já premiada com a medalha de ouro da arquitetura italiana, criada na Trienale di Milano, em colaboração com o Ministério da Cultura de Itália. Distinção que aparece na sequência de outra: o prémio Arqueológico Riccardo Francovich de 2016.



Imagem ‘Reconstrução’ em Siponto, Puglia, Itália, sobre as ruínas da antiga basílica; obra de Edoardo Tresoldi | © Fotografia: Joaquim Félix


De regresso a Portugal, vemos capelinhas abraçadas por heras, silvas e ervas selvagens, como sucede, por exemplo, em Abação, Guimarães, ou num dos montes de Refoios, Ponte de Lima; esta já habitada por eucaliptos. Ou, ainda para referir uma outra ruína, muito bela aliás na sua simplicidade: a antiga igreja de S. João da Ramalheira, em Aboim, Fafe, junto ao trilho PR7, abrigada por uma das maiores manchas florestais de carvalho-alvarinho da Europa.



Imagem Visita à antiga igreja de S. João da Ramalheira, em Aboim, Fafe, junto ao trilho PR7 | © Fotografia: Joaquim Félix


Para além destas ruínas, algumas em total abandono, existem outras, pertencentes a privados ou a paróquias e suas associações de fiéis, que se encontram por norma de portas fechadas. Que fazer com estas arquiteturas quase-esquecidas? Creio que se poderia valorizá-las mais, inserindo-as em trilhos, por exemplo. Ou então, enquadrá-las no contexto da pastoral paroquial, como sucede em Antime, Fafe, onde se está a restaurar a capela de S. Brás.

Embora ainda com as obras em curso, imaginai esta capela com a sinopse: uma caixa retangular de pedra. Um só banco, suspenso no interior, de apoios invisíveis, corre as quatro paredes. No centro da capela, o mobiliário litúrgico dispõe-se na diagonal: o altar cúbico ao centro, o ambão junto à única janela, e a cadeira do celebrante principal perto da porta maior. Quando abertas as duas portas, atinge-se a máxima visibilidade do altar; tendo em conta que, nas concentrações maiores, há pessoas reunidas fora. Ainda dentro, o atelier do Mosteiro de Singeverga entalhou dois nichos ― um para S. Brás e outro para S. Tiago, ambos pertencentes ao antigo programa iconográfico da capela ― em madeira de cedro, tal como o mobiliário litúrgico. Ao fundo, uma pia com água e, para as velas naturais, uma caixa de areia. Água e fogo. Fora, sobressai a mesma economia, sóbria e honesta: um carvalho alvarinho, na cabeceira; uma parede vegetal, de cerca de cinco metros de altura, nos limites do adro, com janelas dirigidas a paisagens selecionadas; uma mesa da esperança e um lajedo de eira em granito.

Do perfume de cedro, no interior, ao aberto do jardin clos, no exterior, imaginai. Imaginai, sim, as crianças a serem iniciadas à vida cristã, com os gestos e as palavras de Jesus, acompanhadas por catequistas; e os vizinhos e demais peregrinos a usufruir do lugar, até na corresponsabilidade pela sua conservação. Um marco na paisagem! Que assinalará? Vamos ver! ― dirão aqueles que, erguendo os olhos, para lá olharem.



Imagem Altar em cedro no centro da capela de S. Brás, em Antime, Fafe, obra concebida pelo atelier do Mosteiro de Singeverga | © Fotografia: Vítor Araújo


d) Por uma arquitetura de portas abertas e bruxuleante

Infelizmente, muitos edifícios religiosos em Portugal encontram-se de portas fechadas. Conhecemos vários motivos: desde logo, a falta de capacidade para a vigilância dos lugares e o elevado custo que isso implicaria. Poderia recorrer-se ao voluntariado, como sucede, por exemplo, em igrejas de Itália. Como tantas outras pessoas, eu próprio fui acolhido por jovens em férias escolares, na catedral de Pavia, e por pessoas reformadas, na igreja de Santa Maria Novella, em Florença; neste caso, recordo, com uma extraordinária apresentação. Porém, em Portugal como noutros países, não é fácil encontrar voluntários para tais serviços. Recordar-nos-emos por certo do programa Igreja Segura, Igreja Aberta, da iniciativa e coordenação do Museu da Polícia Judiciária, a fim de prevenir o roubo de peças de arte sacra das igrejas portuguesas. Porém, onde é aplicado?

Em atenção ao especial contributo para a evangelização, e desde logo ao serviço do turismo cultural e religioso, penso que se haveria de providenciar, com o contributo dos arquitetos e dos técnicos de sistemas de vigilância, mais vias de acesso ao interior das igrejas. Nesse sentido aprecio o que se proporcionou na capela de S. Francisco, próxima do Theatro Gil Vicente, em Barcelos, por onde passam imensos peregrinos do caminho de Santiago de Compostela: aberta a porta exterior, uma caixa de vidro, semelhante a um para-vento, permite entrar ligeiramente e contemplar o interior da capela. Nem tudo terá de ser assim, obviamente. Como franquear mais as igrejas? Eis a questão.



Imagem Igreja de S. João Batista, Fusio, no cantão italiano (Ticino) da Suíça, desenhada por Mario Botta | © Fotografia: Joaquim Félix


Sem ter de responder de forma imediata, gostaria de exaltar uma obra contemporânea que foi pensada para permanecer aberta durante vinte e quatro horas por dia. Trata-se da igreja de S. João Batista, em Fusio, no cantão italiano (Ticino) da Suíça. Foi desenhada por Mario Botta, conhecido arquiteto. Surpreendente em muitos aspetos, da filosofia subjacente ao tipo de materiais usados, ela permanece aberta dia e noite. E, por sinal, há quem a enumere entre as mais belas igrejas de montanha.

A outra haste desta pruma designei-a por bruxuleante. Que desejo apontar com o atributo? Penso sobretudo na relação entre a arquitetura e o cosmos, glosando ― se assim posso concretizar ― a obra do pe. Pierre Teilhard de Chardin (cf. Teilhard de Chardin 1997 e 2010). Essa relação pode ser explorada a partir da luz natural, sim, mas também, tendo em conta os desafios colocados sobretudo pela ecologia integral, do impacto dos materiais de construção, da sustentabilidade, etc. Ambas as temáticas ― cosmos e luz ― foram refletidas em dois congressos internacionais realizados no Mosteiro de Bose, em 2014 (cf. Boselli 2015) e em 2015 (cf. Boselli 2016), respetivamente. Nos livros de Atas, ambos coordenados por Goffredo Boselli, apresentam-se, com excelentes fotografias, dezenas de igrejas, capelas e até catedrais, onde essa relação foi explorada ao detalhe.



Imagem "Igreja de Vidro", Baranzate, Milão, projetada por Angelo Mangiarotti, Bruno Morassutti e Aldo Favini | © Fotografia: Joaquim Félix


De forma despretensiosa, gostaria de acrescentar a esse elucidativo elenco, que conta já com igrejas e uma capela em Portugal ― a de Santa Maria, em Marco de Canaveses, do arq. Álvaro Siza Vieira; a de Santo António, em Portalegre, do arq. João Luís Carrilho da Graça; e, inclusive, da capela Árvore da Vida, em Braga, dos Arq. António e André Cerejeira Fontes ―, a Igreja de Vidro, em Baranzate, nas proximidades de Milão, projetada nos anos 50 do século XX por Angelo Mangiarotti, Bruno Morassutti e Aldo Favini. Porque a menciono? Simplesmente por isto: como todas as suas paredes são em vidro fosco, as árvores exteriores executam um teatro de sombras, para espanto de quem se encontra dentro da igreja, sem com isso se distrair; antes, sente-se em comunhão com a criação. De facto, os concelebrantes, em atenção a esta presença sensível da criação, sentem que podem cantar melhor os louvores (no Sanctus) ao Senhor, por exemplo, conforme os termos finais do prefácio da Oração Eucarística IV explicitam: «Com eles, também nós e, pela nossa voz, a criação inteira, aclamamos o vosso nome, cantando com alegria» (Católica 2022,679).

Sempre neste registo, como não mencionar a capela da casa de retiros, no Seminário do Bom Pastor, em Ermesinde, onde, na sua singeleza, a certas horas da tarde, toda ela fica bruxuleante, com as sombras do bosque no lado poente? O mesmo se passa com os reflexos luminosos da lagoa no tapete ― que se estende do adro ao interior ― da igreja de S. Francisco da Pampulha, em Belo Horizonte, no Estado de Minas Gerais, desenhada pelo arq. Oscar Niemeyer. Enfim, saliento, ainda pelo diálogo entre a arquitetura e a natureza, o conjunto de Capelas do Vaticano construídas, no parque florestal da ilha de S. Giorgio Maggiore, por ocasião da Bienal de Veneza, em 2018, entre as quais a desenhada pelo arq. Eduardo Souto de Moura. Recordo perfeitamente como vi uma jovem a fazer esta leitura e, inclusive, a tirar as medidas à altura da capela, a partir da escala do seu corpo.



Imagem Jovem tirando as medidas à Capela de Eduardo Souto de Moura, na ilha de S. Giorgio Maggiore, por ocasião da Bienal de Veneza, em 2018 | © Fotografia: Joaquim Félix


Estas capelas e as demais igrejas sugerem, porventura, que, mais do que multiplicar motivos da criação nos programas iconográficos, sobrecarregando-os de cargas estéticas, seria importante, na arquitetura religiosa contemporânea, estabelecer melhores relações de comunicação entre o interior e o exterior dos edifícios, através de registos e modulações de permeabilidade.



Imagem Capela concebida por Nornan Foster com Tecno Terna Maeg, na ilha de S. Giorgio Maggiore, por ocasião da Bienal de Veneza, em 2018 | © Fotografia: Joaquim Félix


Conclusão

Apresentado o tríptico, com a última nota a abrir-se em quatro prumas para uma manhã de outono, sinto que as perguntas do início começam a ter vislumbres de respostas. Sem ser necessário subir à presença de videntes, recebemos das duas passagens bíblicas (Is 66, 1-2 e Jo 2,13-22) a iluminação para agora concluir com Louis Bouyer: «A maneira como construímos as nossas igrejas constituirá a manifestação por excelência da qualidade da nossa vida eclesial, da nossa vida de comunhão no corpo de Cristo» (Bouyer 2007, 12). Vida, sim, no Seu corpo sacramental, como bem a apresentou Nicolau Cabasilas, na sua obra: A vida em Cristo (Cabasilas 2020).

Existem dimensões outras da arquitetura religiosa que, seguramente, mereceriam ser relevadas. Tendo em conta, porém, a pluralidade de vozes dos «prestigiados especialistas» (cf. Programa), que, nesta 18ª Jornada Nacional da Pastoral da Cultura, se farão ouvir com justa pertinência e a partir de preciosas experiências, encaminho-me para a consideração final, sem deixar de referir uma preocupação, em sintonia com os esforços, de estudo e preservação, realizados pelo arq. João Alves da Cunha: a descaracterização de igrejas construídas ao tempo do MRAR. Na verdade, ele chamou a atenção, com imagens, para várias destas alterações, na conferência que fez no Congresso Internacional Sobre a problemática dos seminários católicos, realizado em Braga, no ano de 2022, aquando da celebração dos 450 anos da criação do Seminário Conciliar de Braga.

Eis a consideração final, que vai conduzir a uma metáfora musical: em meu entender, a arquitetura litúrgica só atinge plenamente o seu clímax, em esplendor, quando cumpre a sua missão, em especial, mas não exclusivamente, nas celebrações litúrgicas. Por isso, muito gostaria de explorar uma metáfora sugerida pela reflexão de Byung-Chul Han, desenvolvida no seu livro intitulado Do desaparecimento dos rituais (Han 2020). Sem calma, no seu entender, os rituais estiolam-se, desaparecem mesmo. Para Byung-Chul, «os rituais podem definir-se como técnicas simbólicas de instalação num lugar. Transformam o estar-no-mundo num estar-em-casa. Tornam o mundo um lugar fiável. São no tempo o que uma habitação é no espaço. Tornam habitável o tempo. Mais, tornam-no vivível como uma casa é habitável. Ordenam-no. Organizam-no» (Han 2020, 12). Porém, a compulsão e a rejeição da rotina destroem a ressonância dos rituais, o tempo sublime, a hospitalidade da casa. E, nessa angústia, produzem o horror vacui nas pessoas e a desintegração da comunidade. «E para a religião é essencial a calma contemplativa», como evidencia ele (Han 2020, 47).



Imagem Calma contemplativa na concatedral de Taranto, Puglia, Itália; obra de Gio Ponti | © Fotografia: Joaquim Félix


Qual será então a metáfora que este pensamento, aqui sintetizado em demasia, pode oferecer? É uma metáfora musical. Com honestidade, primeiro, pensei nas composições de Arvo Pärt, pela claridade espiritual que delas haurimos em ressonância, numa abordagem minimalista, que permite o assombro, o silêncio contemplativo e a meditatio. Todavia, depois, influenciado pelo livro Falar piano e tocar francês, da autoria de Martim Sousa Tavares, pensei ser mais pertinente a metáfora musical que constitui a interpretação de Boléro, de Maurice Ravel, dirigida por Sergiu Celibidache. Refiro-me, em particular, à gravação feita, em 1971, num concerto realizado pela Orquestra Sinfónica da Rádio Nacional Dinamarquesa.

Como apreciaria ver os celebrantes principais a conduzir as celebrações naquela lentidão que permite abrandar o ritmo da performance litúrgica, em paulatino crescendo de intensidade. Sim, como maestros que, desde a beleza lenta da arquitetura do lugar e da gramática ritual dos santos mistérios, promovem a participação sinfónica de todos os fiéis da assembleia, no «respeito pela preservação de uma saudável ecologia do espírito» (Sousa Tavares 2024, 149). E, acrescento eu, da ecologia integral.

De forma incomum, dou por terminada esta comunicação, sugerindo a escuta profunda, em santo silêncio, dos 17 minutos e 42 segundos que tem de duração esta metáfora musical, digo, do filme a preto e branco com a interpretação de Boléro, dirigida por Sergiu Celibidache. Eis o esplendor na lentidão:









Referências:
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- Thoreau, Henry David. 2018. Caminhada. Tradução de Maria Afonso. Lisboa: Antígona.




Vídeo da intervenção do P. Joaquim Félix na 18.ª Jornada Nacional da Pastoral da Cultura, 14.9.2024








 

Joaquim Félix de Carvalho
Intervenção na 18.ª Jornada Nacional da Pastoral da Cultura, 14.9.2024, Fátima
Imagem de topo: Uma árvore anuncia a primavera à capela de Notre-Dame-du-Haut, em Ronchamp, Haute-Saône, França; obra do arq. Le Corbusier | © Fotografia: Joaquim Félix
Publicado em 20.09.2024

 

 
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