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Édipo, o humilde

Em Dezembro passado, ao apresentar a ópera-oratória “Oedipus Rex” (Stravinsky) o Teatro Nacional de São Carlos, talvez sem o ter programado, coroava uma sucessão de peças clássicas (Medeia no Teatro Nacional D. Maria II e Filoctetes na Cornucópia e, um pouco menos [mas já] clássicas, o Cerejal e a Gaivota na Cornucópia) de que puderam beneficiar os lisboetas.

A tragédia de Édipo presta-se, como as restantes de Sófocles, a inúmeras interpretações. Das várias que tive oportunidade de confrontar, uma, no entanto, mais sugerida que afirmada, parece-me de rejeitar. HUGH LLOYD-JONES, na introdução às tragédias de Sófocles compiladas na fabulosa “Loeb Classical Library” sugere que os Deuses gregos, por corresponderem a forças que vemos actuar no mundo, mas cujo sentido, muitas vezes injusto, nos escapa, poderiam legitimar, (chegando a sustentar que legitimaram) o abandono por alguns da fé numa divindade. Não fica dito, mas implícito, que não pode existir um Deus (não podem existir Deuses) quando as forças que pretensamente domina (dominam) se ordenam para gerar tamanha injustiça e sofrimento.

Um homem que sustente que Deus não existe está longe da verdade. Um outro que sustente que Deus é injusto está igualmente longe da verdade. Estão, aliás, no lado oposto ao da verdade. Um outro ainda que sustente que Deus não é uno também está longe da verdade. Mas está mais próximo que os dois primeiros.

Sustentar que Édipo é um dos dois primeiros homens não encontra qualquer fundamento nas tragédias de Sófocles, sobretudo se o Rei Édipo for lido em articulação com o Édipo em Colono (como parece óbvio fazer).

Édipo nem só por um momento deixa de acreditar na divindade, em seres qualitativamente diferentes e superiores a ele próprio. Nem por um só momento Édipo se arroga a força eficiente para a sua própria existência, nem tampouco a atribui ao acaso.

Se assim acontecesse, a trama com que se tece o drama de Édipo teria dado a Sófocles as oportunidades suficientes para o expressar. Basta ter em conta a descrença apresentada por Jocasta até a verdade se precipitar como uma torrente: “Ouve bem o que este homem te vai dizer e repara, depois de o ouvires, até que ponto devemos acreditar nos divinos oráculos” diz-lhe Jocasta quando lhe anuncia a morte de Pólibo. Mas rápida e amargamente vem a descobrir que Pólibo não é pai de Édipo, e que o terrível oráculo ainda paira sobre o seu marido.

Tampouco se pode afirmar que Édipo acuse as divindades de injustiça. Não devemos confundir esta pretensa acusação com o grito de perplexidade e incompreensão soltado quando acaba de conhecer a terrível verdade em toda a sua extensão: “E, afinal, eis-me aqui, agora, abandonado dos deuses, filho miserável de impurezas, que engendrou na mulher a quem devia a vida. Se existe um mal pior que o próprio mal, este coube-me a mim, Édipo”. O pecado de Édipo é a descrença, e nisso não é diferente de quem crê num Deus uno e infinitamente justo, bom e misericordioso, mas nem sempre.

E assim vemos que Édipo peca na exacta medida em que pecamos sempre que, confrontados com as tristezas mundanas, duvidamos das promessas celestiais. A promessa celestial para Édipo não era una, mas isso não invalida que este herói a prossiga com a humildade que admiramos nos santos.

É esta humildade que podemos testemunhar durante a acção do Rei Édipo e de Édipo em Colono. No Rei Édipo, a incompreensão ainda o domina quando agradece a Creonte o ter-lhe permitido um último encontro com as filhas: “Bem-aventurado sejas e, em recompensa de as teres feito vir até aqui, que os deuses te protejam, como a mim não me protegeram”. Mas no Édipo em Colono, e apesar dos sofrimentos terrenos, Édipo já se prepara para abraçar o desconhecido serenamente, com a esperança de conhecer a felicidade.

A herança de Édipo não pode ser então a da descrença nos deuses ou na sua justiça. Deve antes ser a da vontade de aderir à graça que recebe quem crê apesar do infortúnio. E essa vontade, Édipo demonstra-a, com tenacidade. E demonstrando-a, merece ser coroado como Édipo, o Humilde.


 

Francisco Mendes Correia
Atualizado (mudança de grafismo da página) em 17.10.2023

 

 
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