No dia 17 de Dezembro de 2006, celebra-se o centenário do nascimento de uma das figuras mais singulares da criação musical no século XX português. Numa trajectória de relativa solidão estética, a linguagem musical de Lopes Graça foi assumindo características idiomáticas próprias: reconheça-se a abundância de dissonâncias não resolvidas, com uma função colorística; a tendência para uma retórica que privilegia a situação de anti-clímax (herança de Debussy); a descaracterização de estruturas rítmicas, sempre que se tornam demasiado incisivas; os crescendi, continuados ou subitamente cortados por um pianissimo, quando estão prestes a atingir o seu auge; os elementos motívicos e temáticos, cindidos, como se tivessem perdido a capacidade de se reencontrar; a frustração da marcha harmónica, quando a sua textura se torna previsivelmente cadencial; as sonoridades deliberadamente inacabadas sempre que a textura musical se arrisca a ficar demasiado definida. Estas características visam um duplo efeito de estranhamento e de problematização – um apelo à reflexão, que é intrínseco à sua música.
A partir de 1944, começou a compor as Canções Heróicas ou de luta para o movimento operário, que não constituem repertório de concerto, mas são usadas como música de participação em comícios e manifestações de resistência democrática. Assim, Lopes Graça compunha para a sala de concertos uma música que interpelasse o ouvinte a pensar e a agir e para fora da sala de concertos uma música que se incorporasse nos movimentos de massas com a função de resistência ao regime. Lopes Graça encontra-se entre os criadores que vêem na actividade cultural um meio de construção da sociedade civil. Encontramos no seu pensamento uma ampla reflexão sobre a música enquanto bem comum. A sua arte musical afastou-se dos parâmetros da arte ornamental, assumindo as suas conotações políticas com o intuito de promover a consciência da mudança. Demarca-se, assim, da música baseada na estética da expressão e da identificação emocional, como instrumento de manipulação e propaganda.
Lopes Graça valoriza a liberdade da criação e a infinita possibilidade de renovação da música, sem se considerar um músico da vanguarda. Diz-nos que se realizou musicalmente a partir da sua sensibilidade e não de regras pré-determinadas — “em obediência a movimentos espontâneos da minha sensibilidade ou da minha óptica artística, e de acordo com as possibilidades ou recursos de que podia dispor, sem pressupor um programa prévio de indagações ou a experimentação de quaisquer direcções aprioristicamente concebidas” (Reflexões sobre a música, Lisboa: Cosmos, 1978, 143).
Esta atitude estética pode descobrir-se naquele que é o capítulo mais divulgado na sua obra: o trabalho criativo em torno de recolhas etnográficas, procurando na música tradicional portuguesa uma possibilidade de descoberta de universos musicais alternativos aos academismos. Mas essa mesma atitude se descobre numa obra singular no seu catálogo: o seu «Requiem pelas vítimas do fascismo em Portugal». Trata-se de uma grande obra de convergência onde dialogam a introspectiva e o empenhamento político, a contemplação e a intervenção, o nacional e o universal, a espiritualidade e a história.
Fernando Lopes Graça morreu, na Parede, no dia 27 de Novembro de 1994.